ACÇÃO DE REGISTO
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
PROPRIETÁRIO CONFINANTE
Sumário


1 – O proprietário confinante, goza de legitimidade, para requer a rectificação da inscrição no registo predial, por alegada inexactidão de áreas, de um prédio do qual não é proprietário, mas com o qual, o registado em seu nome, confina.

Texto Integral

ACORDAM 0S JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


José …………, residente na Av. da República, n.º 28º, 4º, ……………, requereu em 17/12/2002 na Conservatória de Registo Predial de ………, a rectificação de registo do prédio urbano descrito sob o n.º 3651/020523, da freguesia de …………, pedido este, que viria a ser indeferido com fundamento na falta de legitimidade do reclamante para requerer a rectificação de registo de prédio do qual não é proprietário.
Desta decisão do Conservador do Registo Predial veio o reclamante José ………… recorrer para o Tribunal Judicial da Comarca de ………. que manteve a decisão do Conservador.
Inconformado, veio, agora interpor o presente recurso e apresentar as respectivas alegações, terminando, por peticionar o provimento do mesmo e, em consequência, a revogação da decisão recorrida, formulando as seguintes “conclusões”: [1]

1ª - A douta decisão recorrida julgou improcedente a rectificação do registo, mantendo a decisão do Exmo. Senhor Conservador da Conservatória do Registo Predial de ……………, julgando o recorrente parte ilegítima para requerer a rectificação do registo do prédio em causa;
2ª - Fundamenta a douta decisão recorrida, tal como consta na decisão do Exmo. Sr. Conservador, que o recorrente não tem legitimidade porquanto:
-São as normas do artigo 120, 121, e 36 do Código do Registo Predial que preceituam sobre a legitimidade em processo registral e não, a regra geral do art. 26 do Código do Processo Civil;
-O recorrente apresentou pedido de rectificação do registo do prédio descrito sob o nº 3651/020523, da freguesia de …….., alegando que António …………, ao requerer o registo de aquisição daquele prédio incluiu nele terreno que pertencia ao prédio descrito sob o nº 745/890627 também da freguesia de …………, de que o recorrente e requerido são comproprietários, pelo que o interesse do recorrente recai sobre o prédio de que é comproprietário e não sobre o prédio que pediu a rectificação, concluindo assim, que o recorrente não tem legitimidade para requerer a rectificação de um prédio que lhe é alheio.
3ª - Dispõe o nº 1 do artigo 121 do Código do Registo Predial que os registos inexactos e os registos indevidamente lavrados devem ser rectificados por iniciativa do conservador, logo que tome conhecimento da irregularidade, ou a pedido de qualquer interessado, ainda que não inscrito. Estabelece ainda o artigo 123 do C.R.P., que o requerimento inicial apresentado pelos interessados, não tem de ser articulado... e o nº 1 do seu art. 127, que sempre que o pedido se prefigure como manifestamente improcedente o conservador indefere liminarmente o requerido, por despacho fundamentado de que notifica o requerente, nº 1 do art. 127.;
4ª - Recebido o pedido, o Exmo. Senhor Conservador não o indeferiu liminarmente, tendo, antes pelo contrário, ordenado a citação do requerido, nos termos do disposto no art. 129º do C.R.P., para deduzir oposição, marcou e realizou a conferencia de interessados, realizou a produção de prova, e ordenou, a produção de alegações finais.
5ª – Nunca o Exmo. Senhor Conservador entendeu, em fase alguma existir dúvidas quanto à questão da legitimidade do reclamante para formular tal pedido.
6ª - Por outro lado, é manifesta a legitimidade do recorrente para apresentar o pedido de rectificação de tal registo
7ª - O artigo 121 do C.R.P,. além da rectificação oficiosamente promovida pelo conservador, também permite que seja pedida por qualquer interessado, ainda que não inscrito.
8ª - O citado artigo 36 do Código do Registo Predial sobre a regra geral da legitimidade dispõe que “ Têm legitimidade para pedir o registo os sujeitos, activos ou passivos, da respectiva relação jurídica e, em geral, todas as pessoas que nele tenham interesse. (sublinhado nosso) Mesmo com base apenas nas aludidas disposições legais do Código do Registo Predial, o recorrente tem legitimidade para pedir a rectificação do registo do aludido prédio, pois é manifesto o seu interesse.
9ª - Se o requerido António ………….., ao requerer a seu favor o registo do prédio urbano, objecto de rectificação, incluiu nele terreno que pertence ao prédio nº 7457890627, da freguesia de ………….., do qual o recorrente é comproprietário, a legitimidade e o interesse deste para requerer a rectificação de tal registo é manifesta; Se o requerido está a retirar área do prédio de que o recorrente é comproprietário para o prédio urbano que levou a registo, é evidente que o recorrente tem interesse nesse prédio.
10ª - Pretendendo António …………, retirar abusivamente e ilegalmente 461, 46 m2 do prédio de que o recorrente é comproprietário, imputando tal área no prédio urbano que levou a registo, objecto de rectificação, que confina com aquele, é pois, evidente, que este prédio não é alheio ao recorrente.
11ª - Nem de outro modo fazia sentido, caso contrário o prejudicado com tais actos, nunca poderia reclamar, deixando ao puro arbítrio do Exmo. Sr. Conservador, a abertura oficiosa do processo de rectificação, quando detectasse erros nos registos por si lavrados, quando os fosse conferir, o que será complicado, por já não ter em seu poder os títulos que serviram de base aos registos, uma vez que são restituídos ao apresentante, para já não falar nos outros erros e inexactidões que não são tão notórios. E obviamente que o interessado que tinha conseguido obter o registo a seu favor e em seu benefício não iria dar conhecimento da veracidade dos factos que ele próprio tinha defraudado e ocultado.
12ª - Sem essa possibilidade de pedir a rectificação poderiam ocorrer situações de muito difícil solução, e não é esse certamente o espírito da lei.
13ª - Dispõe ainda o art. 120º do C.R.P. que o processo previsto neste capítulo visa a rectificação dos registos e é regulado pelos artigos seguintes e, subsidiariamente com as necessárias adaptações, pelo Código de Processo Civil.
14ª - Sobre o conceito de legitimidade estabelece o art. 26 do C.P.C. que o autor é parte legitima quando tem interesse directo em demandar; o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção. A legitimidade deve aferir-se pela titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
15ª - Ora, se António …………, ao requerer a seu favor o registo do prédio urbano, objecto de rectificação, incluiu nele terreno que pertence ao prédio nº 745/890627, da freguesia de ……………., de que o reclamante é comproprietário, a legitimidade deste para requerer a rectificação de tal registo é manifesta.
16ª – Acresce a isto, com a revisão da lei processual civil, acentuou-se a prevalência do fundo sobre a forma, privilegiando-se a decisão de mérito sobre a decisão baseada em questões processuais, tal como decorre da 2ª parte do nº 3 do art. 288 do C.P.C.; exclui-se a absolvição da instância nos casos em que a falta do pressuposto processual (ilegitimidade), quando este se destina à tutela do interesse de uma das partes, nenhum motivo obste a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser inteiramente favorável a essa parte;
17ª - Tal procedimento deve ser observado, por razões de economia processual, e por as decisões judiciais deverem privilegiar as questões de fundo sobre as questões de forma. Não existindo assim razões para abertura oficiosa de novo processo de rectificação, para apreciação da mesma matéria.
18ª - Sendo certo, que do processo constam todos os elementos para uma decisão da questão de fundo;
19ª - Pelo que a douta decisão recorrida não é justa de direito, e violou o disposto nos artigos 36º, 120 e segs. do CRP, bem como os artigos 26 e 288 do C.P.C.
***
António ……………, proprietário do prédio em relação ao qual se pretende a rectificação do registo, contra alegou pugnando pela manutenção do decidido.
O Conservador do Registo Predial, notificado da interposição do presente recurso e do teor das respectivas alegações nada disse.
O Mmo. Juiz a quo, instado a fazê-lo, proferiu despacho tabular de sustentação do agravo.
Corridos estão os legais vistos.
***

Apreciando e decidindo

Como se sabe o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso, tendo por base as disposições combinadas dos artºs 660º n.º 2, 661º, 664º, 684º n.º 3 e 690º todos do Cód. Proc. Civil.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá com interesse, apreciar:
- Se, como defende o recorrente, lhe assiste legitimidade, para requer a rectificação da inscrição no registo predial de um prédio do qual não é proprietário, sendo apenas comproprietário de prédio confinante, ao qual, afirma se pretendeu, com a aludida inscrição registral, retirar uma área de 461,46 m2.
Com interesse para apreciar e decidir esta questão essencial temos, em síntese, o quadro factual seguinte:
O recorrente, em 17 de Dezembro de 2002, apresentou na Conservatória do Registo Predial de ……….., pedido de rectificação de registo do prédio urbano descrito sob o nº 3651/020523, da freguesia de ……………, alegando que António……….., ao requerer a seu favor, o registo daquele prédio, incluiu nele terreno que pertence ao prédio nº 745/890627, da freguesia de …………. do qual o recorrente com os outros herdeiros de seu pai, Manuel……….., são comproprietários de 5/6 e o referido António………, de 1/6;
O pedido de rectificação tem por base as áreas do prédio, sustentando o recorrente que a área constante do registo sob o n.º 3651/020523, excede em mais 461,46 m2 a área real do prédio, provindo tal excesso de superfície, do aludido prédio confinante descrito sob o nº 745/890627.
*
A legitimidade para requerer actos registrais, nomeadamente de inscrição e de rectificação, tem de ser apreciada e verificada à luz das normas que regem tais actos insertas no Código do Registo Predial e só, subsidiariamente, à luz das normas gerais insertas no Cód. Proc. Civil.
A rectificação do registo predial e a respectiva tramitação processual encontra-se prevista no Capítulo II do Título VI do Código Registo Predial, que trata da rectificação do registo, aí se referindo, no artº 121º n.º 1, que “os registos inexactos e os registos indevidamente lavrados devem ser rectificados por iniciativa do conservador logo que tome conhecimento da irregularidade, ou a pedido de qualquer interessado, ainda que não inscrito”, salientando-se, também, no artº 36º, no Capítulo I do Título III, que trata do Processo de Registo, no que concerne á regra geral de legitimidade, que “têm legitimidade para pedir o registo os sujeitos activos ou passivos, da respectiva relação jurídica e, em geral, todas as pessoas que nele tenham interesse”.
É pois, tendo por base estes comandos legais que haverá que aferir-se da legitimidade do ora recorrente para pedir a rectificação do registo.
Desde já, dizemos que não perfilhamos da opinião consignada na decisão recorrida.
Muito embora o recorrente não seja sujeito activo ou passivo da relação jurídica que esteve subjacente à inscrição registral n.º 3651/020523, não podemos deixar de reconhecer que ele, na forma como configura o sustentáculo para o pedido de rectificação, tem interesse na realização desta, uma vez que a alegada inexactidão referente à áreas do prédio pertencente a António ………… põe em causa a área do prédio confinante do qual é comproprietário, pelo que em nossa opinião assiste-lhe legitimidade para formular o pedido de rectificação ao abrigo da previsão do aludido artº 121º n.º 1 do Cód. Registo Predial quando nele se refere “a pedido de qualquer interessado, ainda que não inscrito”, exprimindo-se o interesse pela utilidade derivada da procedência do pedido de rectificação, consubstanciada no facto, tal como é configurada a pretensão, de não se ver aumentada a área registral do prédio a que respeita o registo, á custa da diminuição da área do prédio confinante do qual o recorrente, é um dos comproprietários.
Assim, ao contrário do que se refere na decisão recorrida, assiste ao recorrente legitimidade para formular o pedido de rectificação de registo, que só não lhe foi reconhecida, pelo Conservador, já na decisão final do processo de rectificação e após realização da instrução [2] sem, no entanto, não deixar de reconhecer a existência de dúvidas relativamente à área do prédio em questão e, por tal, propor-se a dar início a novo processo de rectificação por sua própria iniciativa.
Nestes termos haverá que reconhecer a razão do recorrente, concedendo provimento ao recurso.
******

DECISÂO
Pelo exposto, nos termos supra referidos, decide-se conceder provimento ao agravo, atenta a legitimidade que detêm o recorrente para formular o pedido de rectificação do registo e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, ordenando que o Sr. Conservador, no âmbito deste processo de rectificação instaurado, conheça da questão de fundo.

Custas pelo recorrido.


Évora, 11/05/2006
Mata Ribeiro
Rui Moura
Rui Vouga




______________________________

[1] - O recorrente limita-se a fazer o resumo, em dezanove artigos, da matéria explanada nas alegações, sem apresentar umas verdadeiras conclusões tal como a lei prevê, as quais devem ser sintéticas, concisas, claras e precisas – v. Ac. STJ de 06/04/2000 in Sumários, 40º, 25 e Cardona Ferreira in Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra Editora, 3ª edição, 73.
[2] - Quer o Conservador nos despachos interlocutórios, quer o titular inscrito que foi citado no âmbito do processo puseram em causa a legitimidade do ora recorrente para formular o pedido de rectificação.