CHEQUE SEM PROVISÃO
DESCRIMINALIZAÇÃO
Sumário


1. A Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto de 2005, em vigor desde 29 de Setembro do mesmo ano, veio modificar o regime jurídico do cheque sem provisão, actualizando o valor limite que a instituição de crédito sacada é obrigada a pagar, não obstante a falta ou insuficiência de provisão, elevando-se o valor de € 62,35, fixado em 1997, para € 150,00 e descriminalizando-se a conduta até ao mesmo valor.

2. Por isso, a emissão e entrega de cheques de valor não superior a €150,00, considerados unitariamente, após a entrada em vigor da Lei n.º 48/2005, deixou de merecer a tutela penal, em vista do disposto no n.º2 do art. 2.º do Código Penal combinado com os art. 8.º n.º1 e 11 n.º 1 alínea a) do Decreto-lei 454/91, na redacção dada pelos diplomas acima referidos, cuja interpretação se deve fazer em conformidade com a referência feita, no preâmbulo desse diploma legal, "a uma despenalização de cheques sem provisão nessas condições", isto é, aos cheques cujo montante o banco sacado deve pagar, não obstante a inexistência ou insuficiência de provisão.

3. De facto, independentemente da unificação de condutas delituosas, quando for o caso, o legislador, manifesta inequivocamente o propósito deliberado de excluir da tutela penal a emissão e entrega de cheques (considerados singularmente) até determinado valor, mas aqui com a contrapartida – para os lesados - da obrigação de a instituição de crédito sacada pagar o cheque, chamando-se, assim, estas instituições a um procedimento mais rigoroso na entrega de módulos de cheques.

4. A referência ao facto do cheque se destinar ao pagamento de quantia superior a € 150,00, apenas quis deixar claro que a tutela penal reduziu-se aos cheques destinados ao pagamento de dívidas actuais, excluindo dela a emissão de cheques para satisfação de obrigação futura ou destinados a servir de mera garantia de cumprimento. Assim, no caso de emissão de vários cheques, o que releva para efeitos de criminalização ou descriminalização é o valor titulado por cada cheque, ou seja, a quantia para cujo pagamento o cheque serviu, e não o valor do prejuízo causado ao tomador que pode ser superior ou inferior ao quantitativo declarado no cheque.

FRC

Texto Integral


Acordam, precedendo conferência, na Relação de Évora:

I
1. Nos autos de processo comum n.º …do 1.º Juízo criminal do Tribunal Judicial da comarca de …, o arguido J.B., melhor identificado nos autos, foi acusado da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos art. 11.º n.º 1 al. a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro.

2. Recebida a acusação, a senhora juíza, na primeira data que foi designada para a realização do julgamento, a requerimento da defesa do arguido, por seu despacho de fls.55 e 56, julgou descriminalizada a conduta do arguido e, em consequência, julgou extinto o procedimento criminal contra aquele.

3. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de tal despacho, pugnando para seja revogado o despacho recorrido, declarando-se a sua nulidade, e seja ordenada a designação de data para julgamento, extraindo da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

I - Na audiência no dia 2006.01.17, sob requerimento do ilustre advogado de defesa do arguido, a Mma. Juiz, determinou que constituindo objecto da acusação, a emissão pelo arguido de dois cheques, na importância de 150 € cada, por força da Lei n°48/2005, de 29 de Agosto, que alterou o art. 11-1-a) do D.L. 454/91, de 28.12, se verificou uma descriminalização e os factos imputados deixaram de ser punidos, assim se extinguido o procedimento criminal.

II - Entende o Ministério Público que a descriminalização operada pela lei, se restringe a quantia não superior a 150 €, pelo que não tem impacto na acusação do Ministério Publico, uma vez que o arguido se encontra acusado pela prática de um só crime de emissão de cheque sem provisão, factualmente materializado na emissão de dois cheques no valor de 150 € cada, logo no total de 300 €, sendo este ultimo o valor a considerar, para efeitos de descriminalização.

III - Na verdade, emitidos e entregues, vários cheques sem provisão, como foi o caso, no mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, como foi o caso, e por força de uma única resolução criminosa, como foi o caso, estamos perante um só crime de emissão de cheque sem provisão.

IV - Por outro lado, a consideração de que haverá um só crime de emissão de cheque sem provisão, mesmo estando em causa vários cheques, implica que o valor a considerar, para efeitos da quantificação do prejuízo resultante do crime (que é actualmente um crime de resultado) deva ser o da totalidade dos cheques, i.é, da quantia a que serviam de pagamento.

V - Logo, tendo os cheques sido emitidos para pagamento do valor de 300 €, o valor do resultado prejuízo é de 300 €, quantia muito acima do valor considerado descriminalizado na versão actual do D.L. 454/91 de 28.12., que é até 150 €.

VI - A ser correcto o entendimento que perfilhamos, obviamente que a fundamentação da decisão, está minado por um erro de direito, pelo que deve ela ser declarada nula e ordenar-se a designação de data para julgamento.

VII - A decisão violou o disposto no art.11-1-a) do D.L. 454/91 de 28.12.

4. O recurso foi admitido por despacho de 2 de Fevereiro de 2006 (fls. 65).

5. O arguido respondeu ao recurso, nos termos constantes de fls.69 e 70, propugnando pela manutenção do despacho recorrido.

6. Não houve sustentação do despacho recorrido por parte da senhora juíza e nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o “Visto”.

7. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.

8. Sabido que, nos termos prevenidos no art. 412 n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), o objecto do recurso é extremado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação e ponderando que, in casu, os poderes de cognição deste Tribunal ad quem se encontram franqueados à reapreciação da matéria de direito, importa decidir apenas se o despacho recorrido é nulo e se a conduta imputada ao arguido se encontra ou não descriminalizada, face à alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto.
II
9. As ocorrências com relevo para a decisão são as seguintes:

A) O arguido foi acusado pelo MP que lhe imputou a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. pelo art. 11°, n.º 1, al. a) do DL 454/91 de 28.12, na redacção introduzida pelo DL 316/97, de 19/11, com base nos seguintes factos:

No dia 15 de Dezembro de 2003, o arguido assinou e entregou ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social - Delegação de …, para pagamento das contribuições relativas aos meses de Outubro e Novembro de 2003, os cheques n.º … e …, cada um deles na importância de € 150,00, sacados sobre a conta n.º …. do …I.

Apresentados a pagamento na agência de … da Caixa Geral de Depósitos de …, foram os referidos cheques devolvidos por falta de provisão, verificada em 23 de Dezembro de 2003.

Com a recusa do pagamento dos mesmos ficou a queixosa sem ver satisfeito o seu crédito, ficando lesada no seu património em montante equivalente às quantias neles inscritas.

Ao emitir e abrir mão dos cheques sabia o arguido que na conta sacada não possuía fundos que permitissem o pagamento das quantias neles inscritas.

Agiu o arguido voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta era proibida por lei penal.

B) – O despacho recorrido é do seguinte teor:

O arguido vem acusado de no dia 15 de Dezembro de 2003, preencher assinar e entregar ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, delegação de …, para pagamento das contribuições relativas aos meses de Outubro e Novembro de 2003, dois cheques na importância de 150 € cada, sacados sobre uma conta do …, conforme constante a fls.27 dos autos.

Assim, uma vez que se trata de dois cheques de montante de 150 € cada, entendo que a recente alteração da Lei n°48/95, de 28 de Agosto, se verificou uma descriminalização e os factos imputados deixaram de ser punidos.

Pelo exposto, e nos termos do art. 2 do C. Penal, entendo que a conduta do arguido foi descriminalizada nos termos dos artigos supra referidos e, consequentemente, extinto o procedimento criminal. Notifique e deposite”.

10. Liminarmente dir-se-á que o despacho recorrido não é nulo, nem o ilustre recorrente aponta sequer as causas em que assenta o seu pedido de declaração de nulidade. Na verdade, o despacho em causa observa os requisitos formais dos actos escritos e estão especificados os motivos de facto e de direito em que assenta (cf. art.94 e 97 n.º3 e 4 do CPP).

Se o tribunal recorrido decidiu mal é questão que iremos abordar de seguida.

A solução para a enunciada vexata questio tem de partir nuclearmente da intervenção e aplicação dos princípios: - conjunto de valores e regras essenciais sedimentadas na dogmática, e pressupostos permanentes no enquadramento e na leitura das hipóteses controversas.

Em matéria penal (e no direito sancionatório em geral), há princípios vectores, imanentes, que comandam a teoria do direito penal, desde a formulação à interpretação das referidas normas: o princípio da legalidade e as especificidades da interpretação das normas de direito penal, nomeadamente a proibição da analogia.

O princípio da legalidade, com inscrição constitucional (art. 29 n.º1 da Constituição) significa, no conteúdo essencial, que “não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege)” – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, “Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, 2004, pag. 165).

Na elaboração que tem sido desenvolvida a propósito das noções utilizáveis na integração do princípio, tem-se entendido que a clareza da estatuição (norma, lei escrita, antecedente preciso) está preenchida quando o indivíduo possa saber, a partir do texto pertinente, e se necessário com recurso e o auxílio da interpretação dos tribunais, quais os actos ou omissões que constituem a infracção e pelos quais pode ser criminalmente responsabilizado, mesmo que para tal tenha de recorrer a um conselho esclarecido para avaliar, com adequado grau de razoabilidade, as consequências que podem resultar de determinado acto.
De todo o modo, toda a interpretação possível em direito penal tem de ser “ideologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e, por outro, que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assume no sistema” – cf. Figueiredo Dias, obra citada, a pag. 178.

O arguido foi acusado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11.º n.º1, alin. a) do DL 454/91, de 28 de Dezembro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 316/97, de 19 de Novembro, 323/2001, de 17 de Dezembro, que, ao tempo da sua emissão, preceituava:

Quem causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:

a) Emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a € 62,35 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;

(…) se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.

A Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto de 2005, em vigor desde 29 de Setembro do mesmo ano, veio modificar o regime jurídico do cheque sem provisão, actualizando o valor limite que a instituição de crédito sacada é obrigada a pagar, não obstante a falta ou insuficiência de provisão, elevando-se o valor de € 62,35, fixado em 1997, para € 150,00 e descriminalizando-se a conduta até ao mesmo valor.

Afigura-se-nos, por isso, que a emissão e entrega de cheques de valor não superior a €150,00, considerados unitariamente, após a entrada em vigor da Lei n.º 48/2005, deixou de merecer a tutela penal, em vista do disposto no n.º2 do art. 2.º do Código Penal combinado com os art. 8.º n.º1 e 11 n.º 1 alínea a) do Decreto-lei 454/91, na redacção dada pelos diplomas acima referidos, cuja interpretação se deve fazer em conformidade com a referência feita, no preâmbulo desse diploma legal, "a uma despenalização de cheques sem provisão nessas condições", isto é, aos cheques cujo montante o banco sacado deve pagar, não obstante a inexistência ou insuficiência de provisão.

Aliás, este diploma, na sua versão primitiva, aponta nesse sentido. Com efeito, dispunha-se no n.º 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, o seguinte:

"1 - Será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral da punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial:

a) Emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo 8.º (5000$00) que não for integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme relativa ao Cheque;”

Igual orientação se colhe do preâmbulo do DL n.º 316/97, onde se refere que deixa de ser tutelado penalmente o cheque que não se destine ao pagamento de quantia superior a 12.500$00, ora actualizada para 150 Euros.

No mesmo sentido vai a Resolução do Conselho de Ministros que aprovou o plano de acção para descongestionamento dos tribunais, onde se afirma que a proposta de lei “tem como objectivo restringir o âmbito da incriminação do crime de emissão de cheque sem provisão, determinando que deixa de ser penalmente tutelado o cheque que não se destine ao pagamento de quantia superior a 150 euros. Correlativamente, estabelece-se a obrigatoriedade de pagamento, pelas instituições de crédito, dos cheques que apresentem falta ou insuficiência de provisão inferior àquele valor”.

De facto, independentemente da unificação de condutas delituosas, quando for o caso, o legislador, manifesta inequivocamente o propósito deliberado de excluir da tutela penal a emissão e entrega de cheques (considerados singularmente) até determinado valor, mas aqui com a contrapartida – para os lesados - da obrigação de a instituição de crédito sacada pagar o cheque, chamando-se, assim, estas instituições a um procedimento mais rigoroso na entrega de módulos de cheques.

Também na proposta de autorização legislativa que esteve na base do Decreto-Lei n.º 454/91, estipulava no seu art. 3.º n.º1, alin. a) o seguinte:
1 - Fica igualmente o Governo autorizado a considerar como autor de crime de emissão de cheques sem provisão quem:

a) Emitir e entregar a outra pessoa cheque superior a 5000$00 que não seja integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme relativa ao Cheque.

A referência ao facto do cheque se destinar ao pagamento de quantia superior a € 150,00, apenas quis deixar claro que a tutela penal reduziu-se aos cheques destinados ao pagamento de dívidas actuais, excluindo dela a emissão de cheques para satisfação de obrigação futura ou destinados a servir de mera garantia de cumprimento. Assim, no caso de emissão de vários cheques, o que releva para efeitos de criminalização ou descriminalização é o valor titulado por cada cheque, ou seja, a quantia para cujo pagamento o cheque serviu, e não o valor do prejuízo causado ao tomador que pode ser superior ou inferior ao quantitativo declarado no cheque. [1]

Pelo exposto, em vista da alteração legislativa e do disposto no art. 2.º n.º2 do Código Penal, não merece qualquer censura o despacho recorrido.

A posição sustentada pelo Digno Magistrado do Ministério Público não pode ser acolhida já que afronta o princípio da legalidade, uma vez que, no quadro legal vigente, se cada um dos cheques em causa, que titulam a quantia de €150,00, for apresentado a pagamento, a instituição sacada está obrigada a pagá-los, não obstante a falta de provisão (cf. art. 8.º n.º1 do citado DL 454/91), sendo certo também que o legislador, para casos como o dos autos, não deixou de salvaguardar o direito dos lesados que não deduziram pedido de indemnização civil no âmbito do processo penal cujo procedimento se extinga em virtude da descriminalização operada (cf. art. 2.º da citada Lei n.º 48/2005).
III

11. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se integralmente o despacho recorrido.

Não são devidas custas, por delas estar isento o Ministério Público (art.522 n.º1 do CPP).


(Processado por computador e lido e revisto pelo relator que assina e rubrica as demais folhas)


Évora, 2006.06.06
Fernando Ribeiro Cardoso




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[1] - Neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 12.5.98, proferido no Rec.25095/00, sumariado in www.dgsi.pt/jtrl, nos seguintes termos: “Tendo a arguida emitido 6 cheques, cada um deles de valor inferior a 12500 escudos, para pagamento de uma única dívida de 54375 escudos, sendo por isso acusada por um único crime, ainda assim há que considerar descriminalizada a conduta ao abrigo do DL 316/97 de 19.11, pois o que releva é o valor de cada cheque e não o valor do prejuízo causado que pode ser superior ou inferior ao quantitativo declarado no cheque”.