RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
CONTRATO DE SEGURO
NULIDADE
ANULABILIDADE
Sumário


I - Tendo a seguradora invocado a irresponsabilização pelos danos do acidente, têm legitimidade passiva para a acção não só o condutor e o proprietário do veículo causador do sinistro, na perspectiva do Autor, como ainda o Fundo de Garantia Automóvel.

II – Após a vigência do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, há que interpretar o artigo 429º, do Código Comercial, como sendo de anulabilidade a “nulidade” nele prevista para as falsas declarações do segurado.

Texto Integral

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PROCESSO Nº 1462/06

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A”, divorciado, residente na Rua …, nº …, 1°, Esq, em …, propôs acção declarativa de condenação com processo sumário contra “B”, “C”, residentes na …, n° …, em …, “D”, com sede na Av. …, n° …, em … e “E”, com sede na Av. …, n° …, em …, pedindo a condenação solidária dos RR. a pagarem-lhe a quantia de € 8.768, 15 para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes do acidente de viação ocorrido em 12 de Maio de 2001 na Estrada da …, …, consistente em o seu veículo de matrícula …-…-RF, conduzido por “F”, ter sido embatido na retaguarda pelo veículo de matrícula …-…-BO, conduzido pela Ré “C”, justificando a demanda de todos os RR. pelo facto de a “D” declinar a sua responsabilidade com base na nulidade do contrato de seguro titulado pela apólice nº …, por a respectiva titular ser a Ré “B” com base em falsas declarações, posto que o …-…-BO era propriedade da Ré “C” e por esta habitualmente conduzido, tendo aquela figurado como titular com a finalidade de ser pago um prémio mais baixo, dado ter a “C”, à data da respectiva celebração, menos de 25 anos e ser recém encartada.

Contestaram todos os RR. da seguinte e resumida forma:

“B” e “C”: são partes ilegítimas, dado que a responsabilidade se encontra efectivamente transferida para a Ré seguradora pelo aludido contrato, tanto mais que, na sequência do acidente, a “C” teve que adquirir um novo veículo, aceitando a seguradora a transferência do seguro para este;
Impugnam, à cautela, a natureza e o montante dos danos cujo ressarcimento é reclamado,

“E”:
Impugna, por desconhecimento, os factos constantes da p. i, e particularmente os invocados danos no alternador, na bomba, ventoinha e ABS, atenta a parte em que o veículo do A. foi embatido, observando, em todo o caso, que a eventual indemnização a seu cargo implica a dedução da franquia legal de € 299,28.

“D”:
Invoca a nulidade do Seguro essencialmente pelas razões já acima referidas e alega desconhecer a natureza e o montante dos danos.

O A. respondeu à matéria das excepções alegando que demandou todos os RR. por não lhe ser possível saber de quem é a efectiva responsabilidade.

Convocada a audiência preliminar e frustrada a tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador julgando improcedente a arguição da ilegitimidade das Rés “B” e “C”, a que se seguiu o estabelecimento dos factos assentes e a organização da base instrutória.
Instruído o processo, teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida a decisão de fls. 216-218 sobre a matéria de facto.
Por fim, foi proferida a sentença que, absolvendo a “D”, condenou as Rés “B” e “C”, pelos danos patrimoniais, no pagamento ao A. da quantia de € 3.948,15, acrescida de juros à taxa de 7% desde a citação até efectivo pagamento, e, de forma solidária, o “E”, com o limite resultante da aplicação do artº 21º, n° 3 do DL nº 522/85 de 31 de Dezembro.

Inconformados, recorreram os referidos RR. formulando as seguintes conclusões:

“E”:
1- A seguradora, embora seja essa a letra do artº 429° do C. Comercial, não pode, quando tem conhecimento de um sinistro, vir invocar a nulidade do seguro.
2- Desde a promulgação do Código Comercial, interpretações diversas sucederam ao estabelecido na letra daquele preceito, a nulidade, construindo a doutrina a distinção entre uma nulidade absoluta e uma nulidade relativa, conceitos que, em 1966, foram plasmados no novo Código Civil com as denominações de nulidade e anulabilidade, respectivamente.
3- Todos os factores de desenvolvimento económico e social devem ser tomados em conta na interpretação das vetustas normas do C. Comercial, não sendo de olvidar que a doutrina da interpretação jurídica nos fala, constantemente, da interpretação actualista.
4- As seguradoras têm meios para controlar, no momento da celebração do contrato, a maior parte das declarações dos tomadores de seguro, e devem fazê-lo, sendo a identidade do contraente, idade, identificação do veículo e do seu proprietário, n° e data da carta de condução, elementos que a seguradora deve verter no contrato a partir da verificação de documentos que deve exigir.
5- Se a seguradora não exigir os documentos, e aceitar o contrato nas condições em que o mesmo foi celebrado por meras razões comerciais, não pode, depois de lhe ser comunicado um sinistro, declinar a responsabilidade com fundamento em falsas declarações, porque aí está a venire contra factum proprium.
6- Para além de que o contrato não será nulo, mas anulável, pelo que se ressalvam os efeitos já produzidos até à decisão judicial que decrete a eventual anulabilidade do contrato (ex nunc).
7- Não apresentando a seguradora qualquer documento comprovativo de ter comunicado ao tomador do seguro a respectiva anulação, antes da data do sinistro.
8- Na verdade. É o próprio artº 14° do DL 522/85 que diz não poder a seguradora opor ao terceiro lesado algum vício contratual que não tenha oposto anteriormente ao próprio tomador do seguro.
9- Condenando o “E” no pagamento de juros à taxa de 7%, violou a sentença o disposto no artº 559° n° 1 do C. Civil e a Portaria nº 291/03, de 8 de Abril que fixou, a partir de 1 de Maio de 2003 os juros de mora na taxa de 4%.

10- Rés “B” e “C”:
1- As RR. são partes ilegítimas porque a acção deveria ter sido intentada apenas contra a seguradora para a qual havia sido transferida a responsabilidade civil.
2- O contrato de seguro, quando ocorreu o acidente, isto é em 12/05/2001, encontrava-se plenamente válido, não tendo nunca a seguradora nem então, nem depois, nem em qualquer data, comunicado à tomadora do seguro a respectiva anulação, conforme estatuído no artº 14° do Dec.Lei n° 522/85 de 31 de Dezembro.
3- Como se encontrava também válido para além daquela data, isto é, esteve válido até 26/11/01, data a partir da qual as alegantes entenderam contratar outro seguro com outra-seguradora, por se terem "saturado" do comportamento da “D”.
4- A seguradora só veio invocar a nulidade depois de 26/11/2001, quando as recorrentes outorgaram o referido novo seguro.
5- O artº 429° do C. Comercial, referencia uma invalidade do tipo nulidade secundária ou situação anulável e não tipicamente a nulidade, pelo que a douta sentença violou os artº.s 286º e 287° n° 1 do C. Civil.
6- Desta forma, o contrato é apenas anulável e só a partir da decisão que a decrete produzirá efeitos.
7- Foi o mediador quem aceitou o seguro às alegantes e sugeriu o procedimento que tomaram.
8- O referido mediador aceitou o seguro conforme lhe era admitido pela seguradora, por meras razões comerciais não podendo esta vir, posteriormente à eclosão de um sinistro e de tal lhe ser comunicado, declinar a sua responsabilidade com o fundamento de o seguro ter sido outorgado com eventuais declarações falsas das alegantes.

Consideram violados pela sentença os artºs 14°, 29 n° 1 al. a) do Dec. Lei n° 522/85 de 31 de Dezembro insistindo pela sua absolvição.

Contra-alegou a Ré “D” pugnando pela confirmação da sentença, por se ter dado por verificada a nulidade do contrato de seguro.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.

Na douta sentença foi dada como assente a seguinte factualidade:
1- Em 25 de Novembro de 1997 foi celebrado o contrato de seguro entre a Ré “D” e “B”, ora 1ª Ré, titulado pela apólice n° …, que cobria o risco de responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros, de matrícula …-…-BO.
2- Aquando da celebração deste contrato foi indicado como condutor habitual do veículo a referida Ré.
3- Em 12 de Maio de 2001, pelas 13h45, na Estrada da …, em …, e no sentido Sul-Norte, ocorreu um acidente de viação em que interveio o veículo de marca Mercedes de matrícula …-…- RF, conduzido por “F”, o qual é propriedade do A., e o veículo marca Renault Clio matrícula …-…-BO, conduzido pela Ré “C”.
4- 0 Mercedes encontrava-se parado junto ao eixo da via e, com o respectivo sinal activo, pretendia entrar na Rua do …, quando foi embatido na retaguarda pela frente do veículo Renault.
5-A condutora do Renault ignorou a presença do Mercedes e a respectiva
sinalização para mudança de direcção.
6- Do embate resultaram danos na retaguarda da viatura pertencente ao A (há lapso quanto à expressão conduzido pelo A. perante o que consta em 3)
7 - Com a reparação do veículo despendeu o A. a quantia total de € 3.843,15.
8- Falta completar a reparação com a colocação de uma antena eléctrica no montante de € 85 e uma borracha no vidro traseiro no montante de € 20.
9- A Ré “C”, em Maio de 2001, após o acidente em causa, e por consequência deste, foi obrigada a adquirir um novo veículo automóvel - concretamente adquiriu um Fiat com a matrícula …-…- PX.
10- A R. “D” transferiu o referido contrato … para o veículo …-…-PX.
11- 0 veículo …-…-BO embateu na parte de trás do lado esquerdo no veículo
marca Mercedes.
12- 0 veículo Mercedes circulava mas sem as condições mínimas para o fazer.
13- Na altura do acidente era a “C” quem conduzia diariamente o veículo.
14- As declarações prestadas à R., referidas em 2, tiveram como único objectivo um desagravamento do prémio de seguro.

Vejamos então.
Como se viu das conclusões da alegação em ambos os recursos e que, como se sabe, delimitam o respectivo âmbito, não estão em causa as questões da culpa na produção do acidente, atribuída exclusivamente à Ré “C”, nem do montante dos danos apurados e em que os apelantes foram condenados, com a ressalva feita pelo “E” quanto à taxa de juros, mas apenas as de saber se o contrato de seguro outorgado entre a Ré “B” e a Ré “D” é nulo ou anulável e, em caso afirmativo, se pode a seguradora eximir-se ao pagamento da indemnização com base nos referidos e eventuais vícios.
Antes de mais convirá frisar, a propósito da mais uma vez invocada ilegitimidade das Rés “B” e “C”, que a questão não podia deixar de ser resolvida como foi no saneador, ou seja, no sentido da sua legitimidade processual, atenta a configuração que o autor deu à relação material controvertida, no contexto do n° 3 do artº 26° do C.P.Cvil. Com efeito, perante a negativa da seguradora em assumir a responsabilidade no âmbito do contrato de seguro celebrado com a primeira, tinha o autor que as demandar para, no caso de ser acolhida a posição da seguradora (como, aliás, veio a acontecer), obter o ressarcimento dos danos por parte daquele que fosse, a final, considerado responsável pelo mesmo. De modo que, ultrapassada a questão da legitimidade processual, passa a entrar-se no domínio da chamada legitimidade substancial, ou seja, já não se trata de saber se podem ou não estarem juízo, mas se sobre elas recai ou não o dever de indemnizar. É disso que se tratará a seguir.
Refira-se que a douta sentença, longe de discorrer minimamente sobre a problemática da invalidade do negócio jurídico, limita-se a constatar que não se declarou à seguradora que a viatura BO era habitualmente conduzida pela Ré “C”, que a Ré “B” apenas teve como objectivo obter um desagravamento do prémio de seguro e (embora a factualidade disponível o não revele minimamente) a afirmar que a omissão em causa influiu "fundamentalmente" nas condições do contrato tudo para, enquadrando a situação na previsão do artº 429° do C. Comercial, concluir, sem mais, inexistir seguro válido que assegure a responsabilidade civil pela utilização do referido veículo.
Com o que, salvo o devido respeito, não se pode concordar.
Com efeito, são inteiramente de acolher os fundamentos doutamente invocados pelos apelantes e expostos, com especial clarividência, na alegação do “E”.
Como introdução, digamos que se depara este pano de fundo:
A Ré seguradora, com visíveis e legítimos objectivos comerciais, aceitou mais um seguro que o seu mediador intermediou e, entre 1997 e a data em que foi abordada para assumir as responsabilidades dele decorrentes, recebeu, tranquilamente, os inerentes prémios, deixando, permita-se a expressão, correr o marfim. Sem que os factos esclareçam outras razões que não o interesse comercial, aceitou, já depois de ocorrido o acidente ora em apreço (o que não quer dizer que dele tivesse já conhecimento), que um seguro subscrito pela Ré “B”, se transferisse para a Ré “C”, relativamente ao veículo por esta adquirido em substituição do Renault Clio BO. Mas, uma vez abordada para assumir as referidas responsabilidades, invocando artº 4290 do Código Comercial, concluiu que podia ficar com os prémios, recebidos durante cerca de quatro anos, e declinar aquelas.
Tentaremos demonstrar-lhe que não pode ser assim.
Antes de mais, vem-se entendendo quase unanimemente na doutrina e na jurisprudência, sobretudo a partir da imposição do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, através do Dec. Lei n° 522/85 de 31 de Dezembro, que uma interpretação actualista do artº 4290 do C. Comercial conduz a que a nulidade ali prevista se traduza afinal em mera anulabilidade, figura então desconhecida na doutrina, pois que só consagrada pelo Código Civil vigente. Com efeito, como se escreve no acórdão da Relação de Coimbra de 3 de Maio de 2005, in CJ, Ano XXX, Tomo 3. pag. 5-8, sendo embora certo que o artº 429° do C. Comercial fere de nulidade o contrato de seguro quando o proponente preste falsas declarações ao preencher a proposta, "não existindo subjacente ao vício um interesse público relevante no sentido da nulidade do contrato, tem-se entendido que as aludidas falsas declarações tornam o contrato simplesmente anulável".
De qualquer forma, mesmo que de nulidade se tratasse, da mera conjugação do art. 286º do C. Civil com o art. 14° daquele Dec.Lei. resulta que, enquanto que no âmbito do primeiro daqueles preceitos, as nulidades operam ipso iure, são invocáveis por qualquer pessoa interessada, são insanáveis pelo decurso do tempo ou mesmo mediante confirmação e podem ser decretadas oficiosamente pelo tribunal, já o segundo restringe a oponibildade de quaisquer excepções aos lesados em consequência de acidente de viação (a invocação de nulidades ou anulabilidades constitui defesa por excepção), esclarecendo que só o pode fazer relativamente a momento anterior à data do acidente. Ou seja, tem de demonstrar, ou que o seguro já caducara por alienação do veículo em data anterior ao acidente (remissão para o n° 1 do artº 13°), ou que, também em data anterior, resolvera o contrato ou opusera a sua invalidade ao tomador.
Por outro lado, se o n° 2 do art° 2° do referido Dec. Lei permite expressamente que qualquer pessoa, diferente do dono ou do condutor do veículo, celebre contrato de seguro relativamente a este, está implicitamente a afirmar que não é essencial a correspondência entre o proprietário ou o condutor e o tomador do seguro e a impedir a seguradora de se negar a assumir a responsabilidade com esse fundamento, posto que o que o legislador pretendeu foi assegurar que, relativamente a todo o veículo, exista um seguro em vigor, para que o lesado veja assegurado o direito ao ressarcimento dos danos emergentes de acidente.
E é nesta perspectiva que bem se salienta no acórdão da Relação de Lisboa de 5 de Novembro de 2002. in CJ, Ano XXVII, Tomo V, pago 9, que o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel tem uma verdadeira fisionomia de contrato a favor de terceiro, visando a lei, nesse tipo de contrato, sobretudo, a defesa e protecção das vítimas de acidente de viação, não constituindo fundamento bastante para a sua anulação a declaração inexacta do segurado de que o veículo seria habitualmente conduzido por pessoa com mais de 25 anos e encartada há mais de cinco anos. Por outro lado, "não se pode dizer que há agravamento do risco em função do declarado pelo segurado: Os acidentes podem ocorrer em qualquer idade do condutor, independentemente dos anos de carta que o mesmo tenha". Daí que, quando o segurado induz em erro a seguradora quanto ao condutor habitual do veículo, não está a aumentar a probabilidade de acidente, mas tão só a diminuir o prémio de seguro.
Mas porque assim é, não podendo a seguradora declinar a sua responsabilidade perante o lesado, nada impede que exija do tomador do seguro a diferença entre o prémio efectivamente pago e aquele que seria devido se a declaração fosse exacta.
Tudo para concluir pela procedência de ambas as apelações e pela responsabilidade exclusiva da seguradora pelas consequências do acidente, no exacto montante estabelecido na sentença, que por ela não foi impugnado.

Por todo o exposto, revogando a sentença recorrida na parte respeitante aos responsáveis pelo ressarcimento dos danos emergentes do acidente, absolvem os apelantes “B”, “C” e “E” do pedido e condenam a seguradora “D” a pagar ao A. a quantia nela fixada ou seja a de € 3.948,15, acrescida dos juros nos termos também nela fixados.

Custas pela apelada.
Évora, 16 de Novembro de 2006