CAPACIDADE JUDICIÁRIA
CURADOR ESPECIAL OU PROVISÓRIO
Sumário


1.- A capacidade judiciária é uma manifestação da capacidade de exercício.
A capacidade de exercício constitui a aptidão de um sujeito jurídico para produzir efeitos de direito por mera actuação pessoal; para exercitar actividade jurídica própria; para praticar, por si próprio ou através de um representante voluntário, actos jurídicos.

2 – Verificada que for a incapacidade de facto no decurso do processo penal e a ausência de representante geral, do incapacitado, cabe ao Juiz da causa a nomeação de curador provisório devendo aquele providenciar pela regularização da instância, suspendendo os termos do processo

3 – O advogado constituído não substitui o representante geral, já que as suas funções estão ligadas ao mandato o qual como qualquer outro contrato pressupõe liberdade contratual e capacidade das partes contratantes para o celebrar, gerir, manter ou denunciar.

4 – O suprimento da incapacidade judiciária de facto ficará sanado mediante a intervenção de curador provisório que poderá ratificar ou não os actos anteriormente praticados

Texto Integral


Proc.nº1256/06-1

ACÓRDÃO

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Pelo ..juízo do Tribunal Judicial da comarca de … corre processo de instrução em que são arguidas A e B., identificadas nos autos, acusadas da prática de um crime de maus tratos p.p. pelo art.152ºnº1 a) do Código Penal (CP); de um crime de sequestro p.p. pelo art.158ºns.1 e 2 a), b) e e) do CP; de um crime de coacção p.p. pelos arts.154ºnº1 e 155ºnº1 b) do CP e de um crime de furto p.p. pelo art.203ºnº1 do CP.
Encerrado o inquérito o MºPº determinou o arquivamento dos autos.
C. …, identificada nos autos, veio arguir nulidade e requerer a abertura da instrução.
Por despacho de 16 de Janeiro de 2006 a Mmª JIC rejeitou o requerimento da ofendida para abertura da instrução.
Deste despacho recorre a ofendida C. … alegando, em conclusão, o seguinte:
Constam dos autos o relatório psicológico e o relatório de exame médico-legal elaborados no âmbito do processo administrativo nº… que visa averiguar dos fundamentos para interditar a assistente e que comprovam que esta sofre de incapacidade de facto permanente devido a demência.
A referida incapacidade permanente de facto é conhecida e reconhecida pelo MºPº.
A assistente não pode ser simultaneamente considerada incapaz para prestar declarações complementares e capaz para estar, por si, em juízo e querer e entender notificações de forma a poder tomar decisões na sequência das mesmas.
Sem capacidade de exercício não pode, pois, a assistente exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres, não pode estar, por si, em juízo.
Os incapazes só podem estar em juízo por intermédio dos seus representantes [art.10º do Código do Processo Civil (CPC)].
Se o incapaz não tiver representante geral deve requerer-se a nomeação dele ao Tribunal competente, sem prejuízo da imediata designação de um curador provisório em caso de urgência (art.11º do CPC).
A nomeação incidental de curador deveria ter sido promovida pelo MºPº, nos termos do art.11ºnº4 do CPC, tanto mais que não desconhecia a incapacidade judiciária que afecta a assistente.
Como tal não foi feito a pretensa notificação efectuada a 12/10/2005 é nula ou quando menos ineficaz.
Uma vez efectuada tal nomeação, terá de ser efectuada na pessoa do curador a notificação do despacho de arquivamento e dessa notificação iniciar-se-á a contagem do prazo nos termos do art.287º do Código do Processo Penal (CPP).
O requerimento de abertura da instrução foi feito por mera cautela, entendendo-se como se entende que a notificação é nula ou pelo menos ineficaz e não foi extemporâneo uma vez que tendo o prazo terminado em 2/11/2005 o acto foi praticado no terceiro dia útil posterior mediante o pagamento de uma multa.
O despacho recorrido viola os arts.9º, 10º,11º do CPC e 277ºnº3 do CPP.

Cumprido que foi o disposto no art.411ºnº5 do CPP contra-alegou a Digna Procuradora Adjunta pugnando pela improcedência do recurso.
Contra-alegou, também, a arguida A. … dizendo que deve ser mantida a decisão recorrida.
O digno Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal da Relação, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foram cumpridos os demais trâmites legais.

***

Tudo visto,
Cumpre decidir:


A) Os Factos:


Do relatório psicológico de 10/9/2004, junto a fls.133 e 134 dos autos, consta que a ofendida C. … manifesta uma progressiva deterioração das funções cognitivas relacionada com um processo demencial.
Do exame médico legal de 20/9/2004, junto a fls.135 a fls.138, consta que a demência de que a ofendida padece não é susceptível de melhorar com tratamento médico e é, portanto, irreversível e definitiva.
A incapacidade da ofendida é verificada no despacho de arquivamento dos autos a fls.341.
A ofendida foi notificada, em 19/6/2005, por via postal do despacho de arquivamento.
A ofendida requereu, por intermédio da sua advogada, a abertura da instrução, arguindo a nulidade da notificação do despacho de arquivamento.
Por despacho de 16/1/2006 foi rejeitado o requerimento de abertura da instrução.


B) O Direito:


O presente recurso tem por fundamento a nulidade dos actos processuais praticados à revelia da existência de um representante legal da ofendida incapacitada de facto por demência.
Entende a recorrente que é nula a notificação pessoal da ofendida relativa ao arquivamento do inquérito operado pelo MºPº e recorre do despacho que determinou a rejeição do requerimento para abertura de instrução por desatempado e inadmissível face ao incumprimento dos requisitos legais.
Decorre do processo que a ofendida sofre de doença do foro neurológico que se manifesta numa progressiva deterioração das funções cognitivas relacionada com um processo demencial o qual é irreversível e definitivo.
Se é certo que à data da procuração passada a mandatária forense a arguida ainda dispunha de alguma capacidade cognoscitiva dos seus actos, o certo é que tal capacidade se veio deteriorando com o decorrer do tempo, encontrando-se no momento da notificação de arquivamento dos actos incapaz de facto para entender e agir em juízo.
A capacidade judiciária que consiste na susceptibilidade de estar por si em juízo tem por base e por medida a capacidade do exercício de direitos (art.9º do CPC).
Trata-se duma capacidade de exercício de direitos e deveres processuais. Podemos defini-la como a susceptibilidade de a pessoa, por si, pessoal e livremente, decidir sobre a orientação da defesa dos seus interesses em juízo, em aspectos que não são de mera técnica jurídica.
É evidente que nos casos de patrocínio judiciário obrigatório, se verifica em última análise também um fenómeno de incapacidade de exercício, na medida em que a parte só pode estar em juízo representada pelo seu advogado, só que esta representação é limitada à técnica do processo, porém, quanto à política do processo, a parte guarda o seu poder de disposição sobre as grandes linhas de defesa judicial dos seus interesses. Isto pressupõe a sua capacidade judiciária.
A capacidade judiciária anda fortemente ligada à capacidade jurídica enquanto capacidade de exercício de direitos. Não se pode ter personalidade e ser-se inteiramente desprovido de capacidade. Nem o contrário. O que pode é ser mais ou menos circunscrita a capacidade jurídica de uma pessoa.
No que à capacidade de exercício diz respeito ela constitui a idoneidade não só para exercitar direitos ou cumprir obrigações como também para os adquirir ou as assumir e para fazer tudo isto pessoalmente, por acto próprio e exclusivo da pessoa visada, sem haver lugar à intervenção de um representante legal (designado por outro modo que não pelo próprio representado) ou ser necessário o consentimento de outra pessoa.
Trata-se, mais precisamente, da aptidão de um sujeito jurídico para produzir efeitos de direito por mera actuação pessoal; para exercitar actividade jurídica própria; para praticar, por si próprio ou através de um representante voluntário ou procurador, actos jurídicos. Daí chamar-se-lhe, por influência da doutrina alemã, capacidade de agir ou capacidade de acção (Handlungsfähigkeit).
Como diz Ferrara, enquanto a capacidade de direito é uma simples condição de gozo, uma posição estática, a capacidade de agir denota uma actividade dinâmica, o poder de pôr em movimento os direitos, de produzir transformações mediante actuação jurídica própria.
Se a capacidade de direitos não pode faltar de todo a um sujeito jurídico, outro é já o caso da capacidade de exercício. Pode haver pessoas em sentido jurídico destituídas, até por completo, desta capacidade.
A incapacidade de exercício deve ser suprida por meios adequados: o instituto da interdição previsto nos arts.138º e segs. do Código Civil (CC) ou o da inabilitação previsto nos arts.152º e segs. do CC.
Assim, os actos jurídicos que interessam ao incapaz não deixarão de ser praticados pelo facto de os não poder praticar ele próprio e só por si. A sua capacidade de direitos não deixará por isso de ser exercitada, agindo em sua substituição o representante legal, produzindo-se na esfera jurídica daquele os respectivos efeitos jurídicos.
Desta forma, na esteira do que foi dito, o instituto da representação é extensível à incapacidade judiciária que mais não é que uma modalidade da incapacidade de exercício. O incapaz pode fazer valer os seus direitos em juízo por intermédio do seu representante ou autorizado pelo seu curador(art.10º do CPC).
O representante em juízo ou a pessoa a quem a autorização se deve pedir é normalmente o representante geral (na designação do art.11º do CPC) ou legal (na do art.1329ºnº1 do CPC).ou seja, quanto ao interdito o tutor e quanto ao inabilitado o curador.
Porém, quando se está presente perante uma incapacidade de facto, como a do caso dos autos, não pode a pessoa incapacitada ver-se coarctada no exercício dos seus direitos e na assunção dos seus deveres processuais.
Da incapacidade de facto, ocupa-se o art.11º do CPC, aplicável ao processo penal ex vi do art.4º deste último código.
Verificada que foi a incapacidade da ofendida no decurso do processo e a ausência de representante geral, cabia ao juiz da causa a nomeação de um curador provisório (art.11ºnº3 do CPC). Esta nomeação incidental pode ser promovida pelo MºPº, podendo ser requerida por qualquer parente sucessível (nº4 do art.11º do CPC.) ou oficiosamente e a todo o tempo determinada pelo Juiz de forma a providenciar-se pela regularização da instância penal (art.24ºnº1 do CPC).
Não pode é o Tribunal “a quo” obnubilar esta situação com fundamento que não foi instaurado processo de interdição ou de inabilitação ou com fundamento na existência de mandatário forense.
As funções do advogado constituído estão ligadas ao mandato o qual como qualquer outro contrato pressupõe liberdade contratual e capacidade das partes contratantes não só para o celebrar como para o gerir, manter ou denunciar, coisa que a ofendida neste momento não possui.
Não tendo sido promovida a nomeação de curador “ad litem” quais as consequências processuais decorrentes da ausência de representante geral?
Mais uma vez e perante a lacuna da lei processual penal há que lançar mão do disposto no processo civil por força do invocado art.4º.
O suprimento da incapacidade judiciária, ainda que de facto, ficará sanada mediante a intervenção ou notificação do curador provisório que poderá ratificar os actos anteriormente praticados devendo o processo seguir como se o vício não existisse ou, pelo contrário, não os ratificar, ficando sem efeito todo o processado posterior ao momento em que a falta se deu ou a irregularidade foi cometida, correndo novamente prazos para a prática dos actos não ratificados (art.23ºns.1 e 2 do CPC).
Assim deverá a Mmª Juiz determinar a notificação de quem deva representar a ofendida no processo para no prazo que lhe for fixado, ratificar, querendo, no todo ou em parte, o processado anterior, suspendendo-se, entretanto a instância, nos termos do art.24ºnº2 do CPC por força do art.4º do CPP.

Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso, revogando o douto despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que providencie pela nomeação de um curador provisório à ofendida C… , suspendendo, entretanto, a instância.
Sem custas, por não serem devidas.
Évora, 28 de Novembro de 2006
Orlando Afonso