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PROVA POR RECONHECIMENTO
Sumário
I - O reconhecimento é um meio de prova autónomo e pré-constituído em inquérito e não tem natureza testemunhal. II – Deve ser realizado, temporalmente, o mais próximo possível da data da prática dos factos ilícitos. II – E deve ser analisado em audiência de julgamento, nos termos dos artigos 356º, nº 1, al. b) e 355º do Código de Processo Penal, de forma a permitir o contraditório e a formação da livre convicção do julgador quanto à verificação dos seus pressupostos formais e substanciais. IV - É “imprestável” e não deve ser admitido como meio de prova um reconhecimento sugestivo. V - Viola o princípio do “due process of law” a realização, em audiência de julgamento e pela primeira vez, de um reconhecimento que única ou essencialmente conduza à condenação do arguido. VI – O reconhecimento fotográfico é um meio de prova inominado que deve ser executado com recurso ao formalismo do meio probatório existente mais próximo e que se compagina como formal e substancialmente adequado, tendo em vista evitar a existência de “reconhecimentos” fotográficos “clandestinos”.. VII - O meio formal e substancialmente mais próximo, com a mesma funcionalidade intrínseca, é o “reconhecimento presencial” previsto no artigo 147º do Código de Processo Penal. VIII - Do qual se deve reter o “espírito”, pois que qualquer procedimento de identificação deve estar de acordo com as regras do “due process of law”.
Texto Integral
Acordam, precedendo audiência, os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:
A - Relatório
Nos autos de processo comum, perante tribunal colectivo, com o nº …, do … Juízo Criminal da Comarca de …, foi lavrado acórdão em 10 de Maio de 2006 que julgou - por aplicação do princípio in dubio pro reo - improcedente, por não provada, a acusação do Ministério Público e, em consequência, absolveu o arguido A…., recepcionista, casado,….. , actualmente preso no Estabelecimento Prisional do …, da prática de:
um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, ns. 1 e 2, al. b), conjugado com o artigo 204º, nº 2, al. f) do Código Penal;
um crime de posse de arma proibida, p. e p. pelo artigo 275º, nº 4 do Código Penal, conjugado com o artigo 3º, nº 1, al. a) do Dec-Lei nº 207-A/75, de 17-04.
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Inconformado, recorreu o Ministério Público junto do Tribunal de … do acórdão, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - As provas produzidas e analisadas em sede de audiência de julgamento não foram salvo o respeito devido avaliadas correctamente pelo Tribunal" a quo". 2 - Conjugado o teor dos depoimentos das testemunhas, em especial de J.A., A. G. e de N. S. com os restantes factos dados como provados no douto acórdão deveria o arguido ter sido condenado e não absolvido. 3 - Sendo o testemunho do J. A. credível, sereno, corajoso e isento de qualquer desígnio que não seja o de colaborar com o Tribunal na aplicação da justiça, mal andou o Tribunal" a quo" ao não o valorar devidamente. 4 - Dizer ao Tribunal que com 90% de certeza o arguido era a pessoa que saiu da Pastelaria R P de arma na mão após agredir o L. B., especificando quais os traços identificadores do agressor, revela uma sensatez notória e uma capacidade de memória pelo menos mediana, não podendo ser afastado o seu depoimento com o recurso a generalidades. 5 - O facto de o J. A. não ter assistido à agressão por se encontrar no exterior da Pastelaria só reforça a credibilidade do seu depoimento e não o contrário, dado que a sua serenidade não foi influenciada pela violência da agressão que ocorreu num lugar fechado com várias pessoas presentes, circunstâncias que muitas vezes são geradoras de pânico. 6 - O "modus operandi", os objectos apreendidos posteriormente ao arguido, os depoimentos das diversas testemunhas, apontam com certeza no sentido de ter sido o arguido a cometer os crimes constantes da acusação. 7 - O princípio do "in dubio pro reo" só tem aplicação se existirem dúvidas razoáveis e não dúvidas que não têm real suporte. 8 - O evitar o erro judiciário é um desígnio para o qual o Ministério Público também tenta contribuir. 9 - Avaliada a prova constante dos autos pelo homem médio suposto pela ordem jurídica o arguido teria sido condenado, artigo .127°, do CPP. 10 - Foram violados pelo douto acórdão ora impugnado, as disposições legais contidas nos arts. 127° e 4100,nº 2, al.c), do Código de Processo Penal. 11 - Deve assim, o douto acórdão ora impugnado ser substituído por outro, que condene o arguido pelos crimes de Roubo, p. e p. no art. 210°, nº 1 e 2, al. b), conjugado com o disposto no art. 204°, nº 2, al .f), do Código Penal e pelo crime de Arma ilegal, p. e p. no art. 275°, nº 4, do C. Penal e art. 3°, nº 1, al. a), do DL nº 207 -A/75, de 17/4.
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O arguido apresentou resposta com os seguintes considerandos: O Ilustre Procurador da República “a quo” não deu cumprimento ao disposto no art° 412º, nº 3 do CPP. Nas Conclusões do Recurso não constam " os pontos de facto que considera incorrectamente julgados" - art- 412- 3- a) CPP - limitando-se a considerações genéricas e abstractas, o que impõe a rejeição do recurso". O recurso deve ser rejeitado In totum. Se assim não se entender, deve o mesmo improceder e mantida a absolvição.
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O Exmº Procurador-geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso, adiantando os seguintes considerandos, que se resumem: “O controle de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.” “Por isso, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, estiver formada sem vícios e for uma das soluções plausíveis segundo as regras de experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.” “No caso concreto deve concluir-se pela ocorrência de um inequívoco “non liquet”. As razões apontadas pelo Exmº recorrente não bastam para abalar os alicerces utilizados na parte da sentença recorrida subordinada à epígrafe “razões da convicção do Tribunal”. «Ora e conforme decidido no Ac. STJ de 13/10/1999, in Proc. 262/99-3ª “não é toda e qualquer dúvida que fundamenta o princípio “in dúbio pró reo”, mas apenas a dúvida razoável, razoabilidade esta que cabe ao julgador analisar caso a caso” ou, como salienta Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, a fls. 213, “um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido”. “Tal é, exactamente, o que sucede no caso dos autos, em que a concreta razoabilidade da dúvida determinou a fundada absolvição do arguido”.
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Cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal, o arguido respondeu emitindo a sua concordância com a posição do Exmº Procurador-geral Adjunto.
Colhidos os vistos legais, procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal (artigo 423 do CPP).
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B - Fundamentação
Cumpre decidir.
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B.1 - Pelo Tribunal recorrido foram dados como provados os seguintes factos: 1) No dia 31.03.03, cerca das 09.30m, como era seu hábito, L.B. saiu do seu escritório nas Bombas de combustível … em direcção a …, a fim de fazer um depósito no Banco …, tal como costuma fazer há cerca de oito anos. 2) Assim, saiu do escritório e entrou no seu carro ….seguindo em direcção a … pela estrada de …. e posteriormente pela Via Rápida…, onde à entrada virou à direita na direcção da Repartição de Finanças. 3) Aqui chegado, L. B. estacionou o carro num parque ali existente, no lado esquerdo da via, junto à Rua … 4) Dali seguiu a pé, ao escritório do seu contabilista (situado a cerca de uma centena de metros), onde foi entregar alguns papéis, tendo saído pouco depois em direcção ao largo da …, onde virou à direita no sentido da Avenida …, deslocando-se sempre a pé. 5) Naquele dia L. B. levava consigo dois sacos, um com a quantia de 18.408,21 euros, em dinheiro e cheques, e outro contento 380,00 euros, em moedas e umas cópias de uns projectos que pretendia entregar ao seu arquitecto. 6) Quando L. B. ia a meio da Rua …, um indivíduo cuja identidade se não apurou em concreto aproximou-se então do ofendido L. B., por trás, e tocou-lhe nas costas, obrigando-o a virar-se para ver quem era. 7) Nessa altura, o referido indivíduo pulverizou os olhos do L. B. com um spray que trazia nas mãos, de características não apuradas, ao mesmo tempo que lhe disse “dá-me o dinheiro”. 8) Logo que se apercebeu de que de que estava a ser vítima dum assalto, L. B. correu para a Pastelaria “R P”, que se encontrava próxima daquele local, a fim de aí pedir auxílio. 9) O ofendido então entrou na referida Pastelaria, cerca das 10H00 do referido dia, e pediu que o ajudassem. 10) Nessa altura e logo atrás do ofendido entrou o referido indivíduo que, agarrando L. B. pelo braço, acabou por andar de encontro às mesas do café com aquele que ia tentando libertar-se. 11) Quando conseguiu libertar-se, L. B. dirigiu-se ao balcão, cambaleando e quase sem ver em virtude do spray com que foi atingido anteriormente estar a impedi-lo de o fazer, e escondeu-se atrás do mesmo balcão. 12) Nessa altura, o referido indivíduo retirou uma pistola que trazia consigo na cintura, de características não concretamente apuradas, de cor cinzenta, e correu atrás do ofendido para trás do balcão, onde agarrou L. B. pela cabeça e deferiu-lhe uma forte pancada contra o balcão, fazendo com que caísse ao chão. 13) Nessa altura, e enquanto L. B. se encontrava caído no chão, o referido indivíduo desferiu-lhe vários socos e pontapés, atingindo-o na cabeça e corpo. 14) Nesse momento, L. B. atirou os sacos que trazia consigo para dentro dum armário que se encontrava aberto. 15) O indivíduo referido agarrou num dos sacos que continha a quantia de 380 euros em moedas e saiu da pastelaria, pondo-se em fuga. 16) Como consequência directa e necessária da agressão supra referida, L. B. sofreu hematomas da região malar esquerda; macerações labiais extensas superiores e inferiores; equimose e hematoma palpebral superior e inferior esquerdos com hemorragia ocular externa; hematoma massetérico esquerdo e direito com maceração e escoriação superficial; lesões escoriadas e feridas do dorso das mãos sobretudo da esquerda, lesões que lhe determinaram 12 dias de doença, sendo 4 de incapacidade para o trabalho.
Mais se provou que, 17) O arguido foi no passado recepcionista em hotelaria e na restauração, encontrando-se preso à ordem do processo comum colectivo nº deste juízo, no qual foi condenado a 20 anos de prisão por sentença ainda não transitada e por factos ocorridos em 26.04.03 em …, cuja decisão de Primeira Instância se encontra a fls. 384 destes autos. 18) O arguido é casado e tem filhos que vivem com a mãe. 19) Tem antecedentes criminais. 20) Negou ter cometido qualquer dos factos constantes da acusação.
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E como não provados os seguintes factos: I. Por ter conhecimento do hábito do ofendido em dirigir-se sempre ao Banco da mesma forma e utilizando o mesmo trajecto, o arguido acordou ou não com outro indivíduo (cuja identificação não se apurou) em assaltarem L. B., no decurso do trajecto que o mesmo fazia habitualmente, e apoderarem-se das quantias que o mesmo levasse consigo no referido dia. II. Assim, acertaram ou não assaltar o ofendido L. B. no dia 31 de Março de 2003. III. Na sequência desse plano traçado, ou não, nesse dia, o arguido e o outro individuo aguardaram em local não concretamente apurado, num motociclo “moto trail”, de cor verde, por L. B., a fim de o interpelarem, ou não. IV. Ao aperceberem-se do percurso que o ofendido fazia e uma vez que seguia a pé, o arguido e o seu colega pararam, ou não, o ciclomotor no Largo… V. Após tê-lo seguido ou não até ao local, cerca das 10 horas, o arguido T.B. seguiu, ou não, a pé atrás de L. B., enquanto o seu colega ficou ou não a aguardar, sentado no motociclo, que aquele regressasse, de forma a puderem pôr-se rapidamente em fuga após a prática dos factos. VI. O arguido aproximou-se então do ofendido L. B., ou não, por trás, e quando este ia a meio da Rua …, tocou-lhe ou não nas costas, obrigando-o a virar-se para ver quem era. VII. Nessa altura o arguido pulverizou, ou não, os olhos de L. B. com um spray que trazia nas mãos, de características não apuradas, ao mesmo tempo que lhe disse ou não: “dá-me o dinheiro que eu deixo-te em paz”. VIII. O arguido T.B., entrou ou não na pastelaria R P atrás do ofendido, agarrando-o ali por um braço. IX. O ofendido conseguiu ou não libertar-se do arguido. X. Nessa altura, tendo ido atrás do ofendido, ou não, para detrás do balcão do estabelecimento referido, o arguido T. B. retirou ou não uma pistola marca…, calibre 9 mm, com o número de série …, cor prateada e preta) que trazia consigo acondicionada num coldre em pele de cor castanha, de fabrico artesanal, empunhando a mesma. XI. Seguidamente o arguido T. B. agarrou, ou não, L. B. pela cabeça e deferiu-lhe uma forte pancada contra o balcão, fazendo com que o L. caísse ao chão. XII. Nessa altura e enquanto L. B. se encontrava caído no chão, o arguido desferiu-lhe ou não vários socos e pontapés, atingindo-o na cabeça. XIII. O arguido agarrou, ou não, depois num dos sacos que continha a quantia de 380 euros que L. B. havia atirado para dentro do armário, e saiu da pastelaria, pondo-se ou não em fuga no motociclo supra mencionado com o colega que o aguardava no Largo …. XIV. Ao molestar fisicamente L.B. agiu arguido e o seu colega, ou não, com o propósito concretizado de o constrangerem a entregar os valores que o mesmo trazia consigo e que sabiam não lhes pertencer. XV. Agiu o arguido e o seu colega, ou não, em conjugação de vontades e de esforços, cada um aceitando a conduta do outro, na sequência de um plano previamente traçado. XVI. Conhecia igualmente o arguido, ou não, as características da mencionada arma e sabia que não lhe era permitida a sua detenção e uso, em virtude de ser uma arma proibida. XVII. Agiram os mesmos ou não de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas.
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O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção, quanto aos factos provados e não provados, da seguinte forma: “Pode considerar-se um lugar comum dizer que a análise e valoração da prova constituem uma das operações mais importantes e difíceis de todo o processo judicial e, em particular, do processo penal. É na apreciação da prova que se decide a concreta aplicação do direito e, por isso, é imperioso rodear esta tarefa de especiais cuidados. Antes de mais, há que evitar o convencimento apriorístico. O juiz não pode deixar-se fascinar por uma tese, uma versão. Deve, antes, evitar convicções apriorísticas que levam a visões lacunares e unilaterais dos acontecimentos ou factos. Por outro lado, há que ter sempre presente o perigo que constitui o puro subjectivismo (que está a um curtíssimo passo do arbítrio) na apreciação das provas. O princípio da livre convicção não abre caminho ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. O juiz deve fazer a apreciação da prova segundo as regras do entendimento (conhecimento) correcto e normal, isto é, tem de avaliar as provas, não arbitraria ou caprichosamente, mas de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência comum (acumulada). A liberdade de apreciação da prova, que conforma o nosso sistema penal e processual penal, refere-se a uma liberdade que não é meramente intuitiva. Trata-se de um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações nem do contributo dos dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza e segurança da decisão. O juiz forma a sua convicção verificando directamente um facto material, um fenómeno ou uma situação (evidência imediata ou directa), reportando-se ao atestado por outrém (testemunhas, peritos e/ou arguidos) ou por meio de raciocínio, deduzindo de factos conhecidos factos ignorados ou contrastantes. Atento o disposto no artº 374º, nº 2 do CPP, importa fundamentar a decisão do Tribunal relativa à matéria de facto, não bastando a fundamentação genérica ou enunciação dos meios de prova considerados. A convicção do Tribunal alicerçou-se no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, com apreciação crítica dos suportes documental e testemunhal, meios de prova disponíveis, com apelo às regras de experiência comum e de normalidade – artº 127º CPP. O arguido compareceu à audiência, afirmando desde o início da mesma que nada tem que ver com os factos a que se reporta a acusação e decisão instrutória, por deles nada conhecer nem neles ter participado. Vejamos as testemunhas de acusação, nove testemunhas ouvidas, tendo alegado todas serem presenciais dos factos ou de parte deles. A testemunha N. S. (inspector da Polícia Judiciária) não viu qualquer dos factos, tendo coligido a prova, relacionado a mesma e coordenado a investigação. Os factos de que tem conhecimento, como tal, resultam dos depoimentos recolhidos no inquérito. Esta testemunha refere que o arguido foi identificado pelas testemunhas, apesar de algumas outras pessoas que estavam na pastelaria não terem conseguido fazê-lo porque estavam muito nervosas e o assaltante usava roupa de gente muito nova e as testemunhas não o relacionavam logo com a pessoa de 50 anos que é o arguido; refere que só foi feita a comparação da identificação aqui dada pelas testemunhas depois de, dias após aquela data, e após o mediático assalto ao …. em Almansil que envolveu o arguido, ter sido apreendido material semelhante ao que as pessoas dizem ter sido usado no assalto dos autos – roupa de ganga, boné, arma e motociclo. Quanto a isso, parece não poder dar-se de barato que as coisas se passaram como refere a testemunha N. S.. Aliás, as testemunhas restantes são peremptórias em afirmar que a identificação do arguido foi feita apenas através de fotografia, num caso até tendo-se mostrado à testemunha cinco fotografias, sendo três delas do arguido (testemunha J. A.), sendo esta precisamente a pessoa que a testemunha N. S. diz que identificou sem dúvidas o arguido, sendo aliás que uma das fotografias que lhe mostraram foi de uma pessoa deitada numa cama (e que nestes autos está a fls. 108) e foi tirada ao arguido após os factos mediatizados pela televisão e jornais, referentes ao assalto em …, aliás, estando o arguido deitado precisamente porque estava ferido e assim foi fotografado pelas autoridades policiais. Esta testemunha acaba por dizer que o suposto autor do roubo foi identificado pelas testemunhas pela cor da tez (morena), óculos escuros e boné vermelho, sendo porém certo que, neste julgamento, nenhuma testemunha identificou o arguido presente, desde logo o ofendido que não sabe se os factos foram cometidos pelo arguido, a testemunha M. C. que nem sequer sabe se o assaltante tinha a cara coberta ou não, não sabe como estava vestido, apenas se recorda de um boné (sem saber a cor); ou a testemunha F. S. que viu o assaltante a fugir, não sabendo se era o arguido, que diz que o suspeito era alto, moreno, com boné e calças de ganga (cujas cores desconhece) e pensa que não tinha óculos escuros; ou a testemunha G. que pensa que o suspeito tinha um boné azul, estava vestido de calças de ganga e blusa simples, teria cerca de 1,65 ou 1,70 metros de altura mas que não era uma pessoa velha, não se recordando se tinha óculos escuros e, muito embora semelhante ao arguido, não reconhece este como o autor dos factos; ou a testemunha A. (que a PJ diz ter identificado o arguido imediatamente, mas sem que exista auto respectivo no processo) e que veio dizer que o assaltante tinha cerca de 1,70 metros de altura, calças jardineiras azuis de ganga, kispo vermelho, chapéu vermelho e óculos castanhos, aparentando ter 40 ou 50 anos, sendo pessoa semelhante ao arguido pelo olhar (se bem que referiu ter óculos castanhos o assaltante), uns vincos no pescoço e um formato de rosto semelhante, acabando por dizer que havia uma semelhança de 90 % com o arguido mas que não tem a certeza de que tenha sido ele mesmo; esta testemunha é a que diz que a PJ lhe mostrou cinco fotografias de duas únicas pessoas e, dias depois lhe mostrou as duas fotografias de fls. 108 (após o assalto de … referido); a testemunha C. S. que diz ter visto o assaltante a fugir do estabelecimento, com cabelo branco nos lados e liso com um chapéu, óculos brancos transparentes e não reconhece o arguido; ou a testemunha L.S. que diz que não reconhece o arguido e só viu o agressor de fora para dentro do estabelecimento, atrás do balcão a bater na vítima. As testemunhas presenciais (L. B. e ofendido, M. C., F. S., G., A., C.S. e L. S.) não reconheceram o arguido. Dizem que indicaram roupas (que nos depoimentos nem todas coincidem – veja-se o boné, os óculos), altura (que é basicamente coincidente), idade (com disparidades). Falam de uma arma prateada ou metalizada (a fotografia de fls. 108 mostra uma arma apreendida ao arguido no outro processo do assalto ao Centro Comercial de …), fotografia que foi exibida às testemunhas, como a testemunha … que o referiu expressamente, sendo que as testemunhas só começaram a referir esta arma, com a respectiva marca indicada pela acusação (facto estranho, porque a arma fotografada a fls. 108 é rara, nas palavras da testemunha da PJ) após ter a arma fotografada sido apreendida no assalto àquele mesmo Centro Comercial em … (como pode ver-se directamente no inquérito destes autos) – estes factos, somado ao facto de todas as testemunhas terem dito não reconhecerem o arguido e que não viram o assaltante o suficiente para o identificarem (não o fizeram também no inquérito, fls. 130, 131, 142 – assistindo legitimidade ao Colectivo para o referir aqui, uma vez que os pretensos reconhecimentos terão sido feitos dessa forma), e mesmo a testemunha A. ter vindo dizer que o arguido é 90 % semelhante ao assaltante de que se recorda, somados ainda ao facto de os reconhecimentos terem sido feitos no inquérito nas declarações das testemunhas (sem autos e sem as formalidades legalmente impostas), exibindo-se repetidamente as fotografias do arguido, como foi feito no caso daquela testemunha que diz que o arguido é 90% semelhante ao assaltante (ficando nós na dúvida de saber se, no meio de uma situação de stress como é ver fugir uma pessoa armada de um estabelecimento, exibindo-se exaustivamente várias fotografias de uma mesma pessoa, não terá a testemunha interiorizado aquela imagem e traços, de modo a vir agora falar em 90% de semelhanças…), após, pelo que se percebeu, de um outro acontecimento mediático, noticiado pelas televisões repetidamente, em Portugal e fora, que foi o assalto em …l onde acabaria por ser detido o arguido, dizíamos, estes factos todos somados chegaram ao Ministério Público para pedir a condenação mas não chegam ao Colectivo de Juízes para estabelecer, com certeza e segurança, a paternidade dos factos pelo arguido. Aliás, de todas as testemunhas ouvidas, a testemunha A. é, inclusivamente, a testemunha que viu o assaltante menos tempo, de fugida, quando corria para fora do estabelecimento em direcção ao Largo conhecido como do …, estando a testemunha no exterior do estabelecimento, a caminhar na direcção deste estabelecimento e tendo dito que apenas se apercebeu das coisas porque ouviu muita algazarra na rua e pessoas a saírem dali. Por outro lado, o ofendido referiu ter sido atingido por um spray pelo assaltante, que lhe enevoou a vista e que o deixou sem ver a pessoa que o assaltava e lhe batia, tendo outras testemunhas referido que havia vestígios desse spray no ar, dentro do estabelecimento, razão pela qual dizem que, aliado isso à rapidez com que aconteceram as coisas, não conseguiram ver bem o que se passava. Foram exibidas às testemunhas em inquérito clichés policiais (fls. 59 e 59) do arguido e a fotografia de fls. 108, prontinha e com uma arma também ao lado, arma essa parcialmente prateada, muito embora as testemunhas (que não se entende como podem ser todas entendidas em armas e sempre identificaram a arma como uma browning 9mm no inquérito) tenham identificado a arma no julgamento como cinzenta ou prateada, sem qualquer marca, e muito menos com aquela marca da arma apreendida posteriormente ao arguido no já muito referido processo nº…. deste mesmo juízo e Tribunal (auto de fls. 242) que é aquela com que o Ministério Público diz terem sido cometidos os factos (note-se, a testemunha que em julgamento disse ter sido na tropa especialista em armas nunca referiu a marca da mesma, limitando-se a dizer que era cinzenta ou prateada, facto que é comum a muitas armas, inclusivamente no auto de apreensão do inquérito …. e cuja fotografia está a fls. 242, 244 e 245 existem duas armas cinzentas apreendidas), não tendo sido disparada aqui, razão pela qual não foi feita qualquer perícia às suas munições… É certo, e o Tribunal sabe-o tão bem quanto outras pessoas, que existem alguns indícios de que, pelo menos alguém que utilizasse as coisas apreendidas no processo nº …., pudesse ter cometido os factos aqui em análise – desde logo, pelo facto de haver alguns pormenores (mas não mais do que isso) que se entrecruzam – e são, precisamente, o facto de naquele inquérito ter sido apreendido um motociclo, um boné, uns óculos e uma arma que alguns dos depoimentos admitem com alta probabilidade terem estado também aqui presentes. Mas este facto não significa nem que os adereços sejam os mesmos, nem que coincidam os depoimentos de forma coerente na sua descrição e nem que tenha sido este arguido a utilizá-los. O Tribunal não tem, como se disse, a indulgente serenidade dos sábios e dos visionários. Limita-se a ter a prova que lhe foi apresentada em julgamento. E esta prova, sem qualquer lampejo de dúvida, permite apenas concluir por simples, incoerentes e claudicantes indícios ! No entanto, a fixação dos factos em que assenta a convicção para condenar uma pessoa não se basta, felizmente e num Estado de Direito Democrático com os nossos Princípios Constitucionais, com essa espécie fugaz de pequena certeza. A condenação depende da certeza da culpabilidade do arguido e essa certeza vinca-se, assenta e sustenta-se numa convicção profunda, objectivada pela prova, dos Julgadores. Aqui, não existe qualquer certeza que permita concluir pela responsabilidade deste arguido, pelo que em sede de prova a dúvida terá sempre que beneficiar o arguido. Contou o Tribunal com os documentos juntos aos autos, desde logo e com destaque o exame de fls. 178, as fotografias de fls. 58 e 59 e 108, como o CRC (fls. 190, 200, 260) e relatório social (fls. 324).”
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B.2 - Este tribunal da Relação tem competência para conhecer de facto e de direito (Artigos 427º e 428.º do Código de Processo Penal).
É um dado assente que o recorrente recorre de facto e de direito.
Dispõe o artigo 412º, sob a epígrafe “Motivação do recurso e conclusões” que o recorrente, nas suas motivações, deve enunciar especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Versando matéria de direito, o recorrente, nas conclusões, deve indicar ainda, sob pena de rejeição:
a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Em caso de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número 3 do artigo 412º fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Constata-se a deficiência nas conclusões do recorrente, designadamente por não indicar os pontos de facto incorrectamente apreciados nem as provas que impõem decisão diversa da recorrida com as referências estatuídas no nº 4 daquele preceito.
Esta circunstância – o não cumprimento do ónus de indicar os pontos de facto incorrectamente apreciados pelo tribunal recorrido e a indicação das provas que imponham diversa decisão sobre matéria de facto - inviabiliza a pretensão do recorrente e implica a rejeição do recurso nesta parte – artigo 420º do Código de Processo Penal – e reconduz o poder cognoscitivo deste tribunal aos vícios de conhecimento oficioso contidos no artigo 410º do Código de Processo Penal.
De qualquer forma, como o tribunal tem que apreciar oficiosamente dos vícios referidos e o apontado pelo recorrente se insere no âmbito de um desses vícios, a análise será feita, mas pelo teor exclusivo da decisão recorrida.
E, nesta sede, deve o tribunal apurar se ocorre:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova;
no pressuposto de que tais vícios resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
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A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
Tendo em mente as conclusões do recurso interposto, o recurso é de facto e de direito, e quanto à matéria de facto restringe-se à deficiente valoração, imputada ao tribunal recorrido, do depoimento prestado pelas testemunhas.
Da fundamentação de facto do Tribunal recorrido não se descortina qualquer dos vícios contidos no art. 410º, nº 1 e 2, als. a) e b) do Código de Processo Penal, resultando clara a indicação da prova que sustentou a sua convicção e inexistente qualquer contradição na fundamentação ou entre esta e a decisão.
O recorrente limita, no entanto, o seu desacordo quanto à apreciação efectuada pelo tribunal recorrido à al. c) do supra citado preceito – erro notório na apreciação da prova – pelo que se impõe verificar se tal ocorre, sem esquecer a obrigação oficiosa deste tribunal contida no artigo 431º do Código de Processo Penal.
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B.3 - O recorrente assenta o seu desacordo quanto à valoração da prova na errada valoração do depoimento de três das testemunhas inquiridas - J. A., A. G. e de N. S. – que (supõe-se seja esse o seu entendimento) teriam “identificado” o arguido e permitiriam que os factos lhe fossem imputados.
Ora, relativamente a duas dessas testemunhas a decisão recorrida é clara na afirmação de que nada viram de útil.
Assim, consta da motivação de facto da decisão recorrida:
“A testemunha N. S. (inspector da Polícia Judiciária) não viu qualquer dos factos,…. …….. ….. ou a testemunha G. que pensa que o suspeito tinha um boné azul, estava vestido de calças de ganga e blusa simples, teria cerca de 1,65 ou 1,70 metros de altura mas que não era uma pessoa velha, não se recordando se tinha óculos escuros e, muito embora semelhante ao arguido, não reconhece este como o autor dos factos; …..”
E acrescenta que das testemunhas presenciais nenhuma reconheceu o arguido.
A única dúvida aparente reside no depoimento da testemunha A. É no depoimento desta testemunha que reside o cerne da questão, pois que se afirma na decisão recorrida:
“ …. veio dizer que o assaltante tinha cerca de 1,70 metros de altura, calças jardineiras azuis de ganga, kispo vermelho, chapéu vermelho e óculos castanhos, aparentando ter 40 ou 50 anos, sendo pessoa semelhante ao arguido pelo olhar (se bem que referiu ter óculos castanhos o assaltante), uns vincos no pescoço e um formato de rosto semelhante, acabando por dizer que havia uma semelhança de 90 % com o arguido mas que não tem a certeza de que tenha sido ele mesmo; …”
E a questão parece, à primeira vista, dever colocar-se num quantitativo de dúvidas: 90% versus 10%. Nada de mais errado.
A questão essencial é bem anterior e o tribunal recorrido bem se apercebe disso quando se refere, com alguma hesitação, à validade dos reconhecimentos.
E aqui referimo-nos a dois tipos de reconhecimentos: os fotográficos e os presenciais.
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B.4 - Quanto aos presenciais, a polícia não os realizou. São, simplesmente, inexistentes, obrigando o tribunal recorrido à sua realização em audiência de julgamento, algo aceite pelo legislador e pela jurisprudência mas pouco aconselhável, principalmente se ali realizados pela primeira vez.
Não obstante ser quase constante a jurisprudência do STJ e de alguns tribunais de Relação a aceitar a realização de reconhecimentos em audiência de julgamento e sem o cumprimento dos formalismos contidos no artigo 147º do Código de Processo Penal (algo com que parte da doutrina se insurge – v. g. Alberto Medina de Seiça [1] ), certo é que a questão essencial se não reduz a saber se o formalismo deve ou não ser observado em audiência de julgamento.
Que não pode é um dado adquirido, pois que as regras que regulam a audiência de julgamento são incompatíveis com essa observância. A não ser que se interrompa a audiência para o ir realizar a uma esquadra de polícia o que, para além de ser ridículo e um desperdício de tempo, é desaconselhável e inútil.
Desaconselhável pois que o arguido, em fase de julgamento – antes mesmo da audiência – está publicamente exposto e já foi visto (ou pode ter sido visto) por todos os intervenientes processuais. Mera decorrência da característica de publicidade dessa fase processual.
Daí que um reconhecimento realizado, pela primeira vez, em audiência de julgamento seja substancialmente injusto, pois que já exposto o arguido aos olhares das testemunhas que o irão reconhecer. E aqui basta a mera possibilidade de tal já ter ocorrido.
Desaconselhável também por ser já um dado adquirido por estudos em psicologia da memória que o “reconhecimento” deve ser realizado o mais próximo possível da data do evento.
“O tempo é um importante factor na determinação da fidelidade da identificação e o número de correctas identificações declina à medida que o intervalo de tempo entre o crime e o procedimento de identificação aumenta” – Deffenbacher, Carr & Leu, 1981 – Egan, Pittner & Goldstein, 1977 – Malpass & Devine, 1981 – Shepherd & Ellis, 1973; [2]
Por isso, até para as polícias e Ministério Público se torna aconselhável a realização do reconhecimento o mais rapidamente possível, porque do tempo da sua realização também resulta a credibilidade substancial do acto.
E ninguém põe em causa que os actos de instrução dos autos se destinam a ter credibilidade substancial em audiência de julgamento. Se a não têm são inúteis.
Se se não praticam pior ainda. Que é o que ocorre no caso sub judicio.
Com várias testemunhas que viram o arguido, competia à instrução dos autos realizar, o mais rapidamente possível, os reconhecimentos presenciais.
Não os realizando não pode esperar que o mesmo venha a ser realizado em audiência de julgamento pela primeira vez, já em fase temporalmente muito afastada da prática do ilícito (com a credibilidade da identificação muito diminuída) e sem as garantias de formalismo mínimo contido no artigo 147º do Código de Processo Penal, tudo a aconselhar que um reconhecimento se não realize, pela primeira vez, em audiência de julgamento.
Daí que, sendo aceitável que o juiz – não o magistrado do Ministério Público nem os restantes intervenientes processuais – apure em audiência de julgamento, através de um “reconhecimento” atípico e não formal, se o reconhecimento efectuado em inquérito o foi de forma adequada, permita o contraditório e procure formar a sua própria convicção pela imediação, já não será aceitável que em audiência de julgamento se espere suprir as falhas de inquérito através da realização de um reconhecimento que, pela primeira vez, venha a “identificar” o arguido como autor do facto ilícito.
É, portanto, nosso entendimento que o reconhecimento, sendo prova autónoma pré-constituída em inquérito (é aí que deve ser realizada), não tem natureza testemunhal, precisamente porque o formalismo e as circunstâncias em que é realizado lha retiram.
Prova essa que tem clara autonomia relativamente às declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas e que, por via disso, se inserem na previsão do artigo 356º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal, a apreciar em audiência de julgamento e aí examinada para permitir o contraditório, nos termos do artigo 355º do mesmo diploma.
Posição que a jurisprudência já vem assumindo, apesar de muitas vezes não o afirmando explicitamente, e que a proposta de lei de alterações do Código de Processo Penal vem a consagrar no artigo 356º, nos seguintes termos, que se entendem meramente interpretativos.
Artigo 356.º (da proposta de Lei)
(...) 1 – Só é permitida a leitura em audiência de autos: a) (...); b) De inquérito ou de instrução que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas, salvo nos casos de reconhecimento de pessoas, efectuados nos termos do artigo 147.º. 2 – (...)
E, pelas razões expostas, é inadmissível que se use a audiência de julgamento para realizar o primeiro “reconhecimento” de arguido, cumpra este, ou não, os formalismos do artigo 147º do Código de Processo Penal.
Há, pois, no caso dos autos, antes de uma apreciação das declarações das testemunhas tendentes ao “reconhecimento” do arguido, uma questão de admissibilidade desse reconhecimento face à ausência de um reconhecimento no inquérito.
Admitir um reconhecimento realizado pela primeira vez em audiência de julgamento é uma clara violação do due process of law, na medida em que, na audiência, o arguido está exposto publicamente e pode acarretar prejuízo grave para o acusado na medida em que esse procedimento de identificação não tem credibilidade substancial.
A este resultado se não pode chegar, naturalmente, se o arguido inviabilizou um “reconhecimento” em inquérito, o reconhecimento não seja elemento essencial no apuramento dos factos e nos casos de processos, como os sumários, em que a celeridade e a natureza sumária do processo isso não aconselham.
Não é isso que ocorre no caso dos autos, processo comum perante tribunal colectivo em que se pretende que o “reconhecimento” em audiência seja a peça, mais que essencial, única, que pode conduzir à condenação do arguido.
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B.5 - Quanto ao único reconhecimento fotográfico realizado em inquérito – o tribunal recorrido apercebeu-se, posteriormente, de outros ali realizados e que não foram minimamente documentados - efectuado pela polícia judiciária, o mesmo não apresenta os requisitos mínimos de validade e substância.
Quer isto dizer que, não obstante não previsto expressamente pelo legislador, é lícita a realização de reconhecimentos fotográficos, enquanto “reconhecimento atípico”, na medida em que vigente o princípio da legalidade da prova consagrado no artigo 125º do Código de Processo Penal: “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.
Mas daí não decorre que seja lícito às forças policiais a realização não vinculada dos reconhecimentos fotográficos, maxime havendo um modelo de meio de prova consagrado pela lei no artigo 147º do Código de Processo Penal que, até pela aplicação do princípio do due process of law, exige a sua realização – em forma e substância - com respeito absoluto pelos direitos da defesa e, também, com um mínimo de preocupação instrutória dos autos.
E, apesar de no artigo 147º do Código de Processo Penal hoje se não referir, expressamente, o reconhecimento fotográfico,
(Algo já previsto no Projecto de Revisão do Código de Processo Penal em discussão, de forma mais restritiva e infeliz, nos seguintes moldes: a) - Admite-se a possibilidade de os intervenientes serem fotografados e de as fotografias serem juntas aos autos, mediante o respectivo consentimento; b) - Determina-se que o reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito de investigação criminal só vale como meio de prova quando for seguido de reconhecimento presencial.)
certo é que o intérprete se deve interrogar sobre se o objectivo probatório de tal meio inominado de prova – o reconhecimento fotográfico - visa ou não os mesmos objectivos substanciais do reconhecimento presencial e se as exigências de forma e de admissibilidade lhe são igualmente aplicáveis.
E a resposta só pode ser afirmativa, pelo menos enquanto se mantiver a actual redacção do preceito.
Como já se afirmou noutra sede:
“Se era intenção do legislador, ao regulamentar com algum pormenor os dois tipos de reconhecimento tipificados – o “reconhecimento intelectual” e o “reconhecimento físico” - excluir todas as outras formas de reconhecimento por não oferecerem garantias adequadas à sua promoção a “meio de prova”, é nosso entender que a realidade se encarregou de conduzir a prática para caminhos ínvios, tornando comum a existência de reconhecimentos “clandestinos” ou “para-clandestinos”.
Para os puristas e formalistas o problema não existe, pois que sendo clandestinos, tais reconhecimentos não têm a “dignidade” de “meio de prova”, pelo que não podem ser valorados pelo Tribunal.
Olvidam, no entanto, que qualquer reconhecimento realizado, mesmo que “clandestino”, acarreta sempre consequências, quer na futura realização de um novo e, desta vez, formalmente correcto reconhecimento, quer no convencimento do interveniente, declarante ou testemunha, de que os resultados do reconhecimento clandestino são determinantes e determinam a sua posterior conduta processual, designadamente em audiência de julgamento.
Manter na “clandestinidade” tais reconhecimentos tem outro efeito perverso: nem sempre o juiz de julgamento se apercebe de que o depoimento de uma testemunha está fortemente influenciado por esse facto. Nem todas as testemunhas têm a ingenuidade de afirmar, como se já ouviu em audiência, estar convencida do acerto do seu depoimento, porque a polícia lhe “mostrou uma fotografia daquele senhor e disse-me que ele é que era o culpado”.
E as dúvidas instalam-se: quantas declarações, depoimentos e reconhecimentos estão, estiveram e estarão influenciados por “reconhecimentos clandestinos”, os tais que, não tendo a dignidade de “meio de prova”, têm no entanto a potencialidade de inquinar todo o processo de recolha de prova?”
É uma imposição do processo justo e equitativo retirar da clandestinidade esse “meio de prova inominado”.
E, assim sendo, não cabe às polícias no seu labor de investigação (e também de instrução dos autos para julgamento) escolherem de motu próprio a forma como hão-se realizar reconhecimentos fotográficos. Devem recorrer ao meio probatório existente e que se compagina como o mais próximo (formal e substancialmente idêntico, com a mesma funcionalidade intrínseca) e processualmente válido.
E esse meio só pode ser o previsto no artigo 147º do Código de Processo Penal, o reconhecimento presencial, com uma execução devidamente adaptada às características próprias da exibição fotográfica.
E com esse objectivo devem rodear o reconhecimento fotográfico das mesmíssimas cautelas de que aquele se socorre para garantir, de uma banda a descoberta do autor do facto, de outra, os direitos de defesa.
Não se trata, em essência, de reproduzir o texto do preceito para executar o reconhecimento fotográfico. Trata-se de reproduzir o seu espírito.
Que é como quem diz, se as polícias entenderem – e é natural que entendam – que as necessidades de investigação policial exigem a exibição mínima de um determinado número de fotografias, isso será aceitável se o modo de execução for justo, equitativo. Isto é, se as fotografias dos não suspeitos, os “fillers”, ” (o que preenche), “distractor” (o que distrai), ou “foil” (o que realça por oposição), ou “homens de palha”, forem exibidas da mesma forma, em igual número, nas mesmas circunstâncias e em semelhante ambiente circundante.
O que não pode ocorrer é a, formal e substancialmente, inaceitável exibição sugestiva de menos de três fotografias, em diferentes circunstâncias exteriores e com o arguido em poses suspeitas e sendo o único a empunhar uma arma.
Citando Alberto Medina de Seiça [3] “a circunstância de, em casos excepcionais e sob apertados requisitos, ser possível o recurso a meios de prova não previstos não deve usar-se para contornar o sistema do direito probatório”.
Com a agravante de que este “contornar” do “sistema do direito probatório” se operou, no caso, de três formas, num crescendo de gravidade: pela inexistência de um reconhecimento fotográfico formal e substancialmente adequado; pela não realização, em inquérito, de reconhecimentos presenciais com as testemunhas indicadas e posteriormente arroladas para julgamento; pela realização de outros reconhecimentos fotográficos que não ficaram documentados e cuja existência apenas se veio a apurar em julgamento.
Como o relator já afirmou noutra sede «qualquer procedimento de identificação deve estar de acordo com as regras do “due process of law”» e
«Não obstante se não conhecer jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre este ponto, não se nos oferecem muitas dúvidas de que a questão – mais tarde ou mais cedo – virá a ser discutida em sede da noção de “processo equitativo”, tal como definida no artigo 6º da Convenção Europeia dos direitos do Homem. Mas já é entendimento do Supremo Tribunal norte-americano que o direito ao “due process”, ao processo justo, inclui o direito a não ser objecto de procedimentos policiais que criem um irreparável “erro de identificação”, uma errada identificação do suspeito através de um deficiente “reconhecimento” - Decisões do US Supreme Court Neil v. Biggers (409 US 188 – 1972) e Stovall v. Denno (388 US 293 – 1967)».
E o reconhecimento fotográfico efectuado nos autos – um claro procedimento de identificação - foi realizado, não só de forma não vinculada mas, inclusive, de forma sugestiva, apresentando três fotografias do arguido (uma delas com o mesmo deitado no chão e com uma arma na mão), e por outras duas fotografias de um outro indivíduo não identificado (?).
Pelas duas razões é nulo como meio de prova – artigo 118º, nº 1 e 3 e 147º do Código de Processo Penal (não se pretende, aqui, entrar na querela terminológica e regime sobre a validade da prova e sempre nos poderíamos bastar com a afirmação de que o meio de prova é, enquanto tal, “imprestável”).
Nulo porquanto não cumpriu, sequer, os requisitos formais mínimos, isto é, a sua realização em auto autónomo, a exibição mínima de mais dois suspeitos com semelhanças e em condições exteriores idênticas. Nulo porquanto substancialmente sugestivo.
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B.6 - Por outras palavras: a apreciação dos reconhecimentos efectuados, antes de chegar ao patamar da livre apreciação da prova, deveria ter-se quedado pela sua não admissibilidade.
Mas a não se admitir esta tensão (ou precedência) entre a ideia de admissibilidade versus valoração do meio de prova – isto é, admitindo a regular produção do meio de prova, restando saber se a sua valoração foi adequadamente realizada - dúvidas não restam de que é suficiente e adequada a demonstração do percurso lógico que à matéria de facto provada e não provada conduziu.
Como se afirma no Ac. do STJ de 07-01-2004 (Proc. 03P3213, sendo relator o Conselheiro Henriques Gaspar):
1ª. O princípio estabelecido no artigo 127° do CPP significa que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal valorar os meios de prova de acordo com a experiência comum e com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção. 2ª. O "erro notório na apreciação da prova" constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. 3ª. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da ‘experiência comum’.
Ora, do texto da decisão recorrida não resulta qualquer incongruência factual ou lógica.
A única incongruência situa-se ao nível do direito e tem como fonte a afirmação, constante da motivação de facto:
“O Tribunal não tem, como se disse, a indulgente serenidade dos sábios e dos visionários. Limita-se a ter a prova que lhe foi apresentada em julgamento. E esta prova, sem qualquer lampejo de dúvida, permite apenas concluir por simples, incoerentes e claudicantes indícios!”
Ora, se assim é, e tudo permite concluir que sim, não se justificava ter feito aplicação do princípio in dubio pro reo.
De tudo resulta que o recorrente tem razão quando afirma que está em causa a aplicação do princípio in dubio pro reo. Não no sentido de que o tribunal fez dele mau uso, sim porque nem sequer deveria ter ponderado o recurso a tal princípio, por desnecessário, isto porque do próprio texto da decisão recorrida resulta que o material probatório constante dos autos nunca poderia conduzir à condenação do arguido.
Por tudo, deve ser mantida a decisão recorrida de absolver o arguido.
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C - Dispositivo Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Sem custas.
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
Évora, 12 de Dezembro de 2006
João Gomes de Sousa
António Pires da Graça
Declaração de voto: “Votei a decisão embora discorde do teor constante do ponto B.4 do acórdão face ao disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal”.
Rui Maurício
Declaração de voto: “Subscrevendo nos seus precisos termos a declaração de voto do Exmº Desembargador Drº. Pires da Graça”.
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[1] - “Legalidade da prova e reconhecimentos atípicos em processo penal” – In Liber Discipulorum, pags. 1387-1421, Coimbra Editora, 2003. [2] - Citado por Behrman e Davey – “Eyewitness Identification in actual Criminal Cases: an Archival Analysis” – Law and Human Behavior, vol. 25, nº 5, pag. 476 (475-491), Outubro de 2001. [3] - “Legalidade da prova e reconhecimentos atípicos em processo penal” – In Liber Discipulorum, pag. 1411, Coimbra Editora, 2003.