CONTRATO-PROMESSA
BENS COMUNS
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Sumário


I - No domínio do nº 3 do artigo 410º do Código Civil (redacção do Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho), a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser invocada por terceiros, nem pode ser oficiosamente conhecida pelo tribunal.
II - O contrato-promessa de compra e venda de bens imóveis comuns efectuado apenas pelo marido sem o consentimento da mulher é plenamente válido, pois através do contrato não são alienados ou transmitidos os bens, constituindo-se, tão-só, a obrigação de facto de celebrar futuramente a correspondente escritura pública de compra e venda.
III – Havendo recusa do outro cônjuge na celebração do contrato prometido, não poderá haver execução específica do mesmo.
IV – Este obstáculo deixa de existir se, por dissolução do casamento, o bem prometido vender vier a integralmente na titularidade do promitente vendedor.
V - Não obsta à execução específica do contrato promessa a inexistência de tradição da coisa. Também a existência não obsta à execução específica, quer porque na redacção dada ao artº 830º pelo Decreto-Lei nº 236/80 foi eliminada a norma constante da versão originária do nº 2, segundo a qual a existência de sinal significaria convenção em contrário relativamente à execução específica (embora essa norma tenha sido posteriormente reposta pelo Decreto-Lei nº 379/86), quer porque era intenção do legislador admitir sempre a execução específica relativamente aos contratos-promessa de compra e venda de prédio urbano (como depois veio a ser especificamente consagrado no nº 3, 1ª parte, do artº 830º, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 379/86)

Texto Integral

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Proc. nº 2112/05-3ª
Apelação
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 138º, nº 5-CPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

A presente acção ordinária foi intentada, na comarca do Cartaxo, por Maria José ………… – posteriormente substituída por Ana Maria…………, mediante incidente de habilitação por morte da demandante originária – contra Acácio …………., formulando pedido de execução específica de contrato-promessa de compra e venda de prédio urbano, celebrado, em 17/2/1983, entre uma sociedade comercial, que entretanto cedeu a sua posição contratual à A., e o pai do R., António Garcia…………, falecido em 19/6/90.

Na petição inicial, alegou a A., no essencial, que assumiu a posição de promitente-compradora através da referida cessão em 11/2/1985 – quando já era arrendatária da coisa prometida, por contrato de arrendamento celebrado com o pai do R., em 2/1/85 (e em relação ao qual o ora R. intentou acção de despejo contra a aqui A.) –, que foram efectuados todos os pagamentos devidos por conta do preço, que houve tradição da coisa (tendo a A. residência no local) e que procedeu à marcação de escritura pública, à qual o R. não compareceu. Em consequência, pediu a A. que fosse lavrada sentença que produzisse os efeitos da declaração negocial do faltoso ou, subsidiariamente, a condenação do R. no pagamento à A. da quantia de 12.500.000$00, correspondente ao valor do prédio à data do incumprimento, ou na restituição em dobro da quantia paga a título de sinal (bem como, em qualquer destas alternativas, no pagamento de benfeitorias a liquidar em execução de sentença, reconhecendo o direito de retenção sobre o prédio).

O R., na contestação, opõe-se ao pedido da A., suscitando, principalmente, as seguintes questões: falta de intervenção do promitente- -vendedor na cessão da posição contratual, dependendo esta de consentimento do outro contraente, pelo que seria nula (e qualifica esta situação como ilegitimidade da A.); nulidade do contrato-promessa por falta de reconhecimento presencial da assinatura do promitente-vendedor; falta de intervenção do cônjuge do promitente-vendedor no contrato-promessa, quando o bem era comum, por o regime de bens do casamento ser de comunhão geral, pelo que também por aí seria nulo o contrato (e extraindo, dessa nulidade e da anterior, a nulidade do processo); resolução do contrato-promessa por acordo verbal entre o R. e o representante legal da sociedade promitente-compradora, em Dezembro de 1986; e impossibilidade de execução específica do contrato-promessa, por existência de sinal, que significaria convenção em contrário daquela, ao abrigo do artº 830º do C.Civil.

Na réplica, afirmou a A., nomeadamente, que houve consentimento tácito da cessão da posição contratual e que o R. não poderia invocar a omissão do requisito de forma relativo ao reconhecimento notarial (ao abrigo do artº 410º, nº 3, do C.Civil).

No despacho saneador (a fls. 127 ss.) foram julgadas improcedentes as excepções dilatórias da ilegitimidade da A. e da nulidade do processo. Quanto à primeira, considerou-se que a aferição da legitimidade se faria por referência à relação controvertida tal como é configurada pelo autor, salientando que a A. alegou o consentimento tácito quanto à cessão e que o próprio contrato- -promessa invocado pela A. continha cláusula que permitia ao promitente- -comprador indicar outra pessoa para intervir no contrato prometido em seu lugar. Quanto à segunda excepção, entendeu-se que o não reconhecimento das assinaturas em contrato-promessa constitui nulidade atípica que só pode ser invocada pelo promitente-comprador e que a falta de assinatura do outro cônjuge não invalida o contrato.

Houve recurso de agravo, por parte do R., do despacho saneador, na parte em que indeferiu as excepções, mas esse recurso foi julgado deserto por apresentação extemporânea de alegações (v. despacho de fls. 408) – tendo esse despacho transitado em julgado (conforme verificado no despacho de fls. 457).

Após a organização de especificação e questionário, foi realizado o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença (fls. 288 ss.) em que se apreciaram as questões não tratadas no despacho saneador e que relevam para o mérito da causa. Nesse âmbito, foi entendido ocorrerem os pressupostos da execução específica: mora do R., por falta de comparência à escritura pública relativa ao contrato definitivo, para cuja celebração foi interpelado pela A.; prestação de sinal sem o significado de convenção em contrário à execução específica, por estar em causa promessa relativa à compra e venda de prédio urbano (nos termos do artº 410º, nº 3, do C.Civil); a natureza da promessa não obstar à execução específica. Consequentemente, o tribunal de 1ª instância declarou celebrado entre a A., como compradora, e o R., como vendedor, o prometido contrato de compra e venda do prédio identificado na promessa – pelo que considerou prejudicada a apreciação dos pedidos subsidiariamente formulados.

Inconformado com a decisão, dela apelou o R., culminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
    «I – A douta decisão recorrida não reconheceu a invocada ilegitimidade da Autora, Maria José……………, por ser ineficaz relativamente ao promitente vendedor e seu sucessor aqui Réu e recorrente, por violação do estatuído nos artos 424º, nos 1 e 2 e artº 26º do C.Civil, inexistindo prova idónea que permita concluir ter havido qualquer sorte de consentimento, tácito, expresso ou implícito;
    II – A decisão recorrida não reconheceu que o contrato-promessa sub judice é nulo por força do […] artº 294º do C.Civil, em virtude da não observação da forma legalmente exigida, mormente não estando as assinaturas dos outorgantes reconhecidas presencialmente como impunha a lei vigente ao tempo (bem como a actual), [no] nº 3 do artº 410º do C.Civil;
    III – A douta decisão recorrida ignorou que a falta da necessária intervenção ou autorização do cônjuge do promitente vendedor acarreta a improcedibilidade da execução específica do contrato--promessa, em virtude de o cônjuge mulher não ter intervindo no contrato-promessa nem consentido por qualquer forma no contrato prometido (ausência de vinculação do cônjuge). Tal intervenção é imposta pelo preceituado no nº 1-a) do artº 1682º- -A, ex vi artº 1734º, todos do Cód.Civil (e também pelas normas do C.Notariado). E não tem o tribunal, vinculado à Constituição e à Lei, o poder legal de substituir-se à vontade de quem jamais produziu qualquer manifestação de vontade negocial;
    IV – A Autora não tinha o direito de requerer a execução específica do contrato-promessa, porque este havia caducado nos termos do preceituado no artº 436º do C.Civil;
    Mesmo que assim se não entendesse,
    V – Está vedado à Autora, por ser confessada e demonstradamente o contraente faltoso, requerer/obter a execução específica do contrato, como resulta dos nos 2 e 3 do artº 442º do CC, e também das versões anteriores do seu nº 2;
    VI – Mesmo que se considerasse não estar vedado à Autora requerer a execução específica, em contrário do versado na conclusão V, a mesma ao requerê-la teria agido com evidente abuso de direito, em violação do preceituado no artº 334º do C Civil; e se assim se não entender,
    VII – Como consequência da violação do preceituado no mesmo artº 334º do C.Civil, deverá ser julgado como nulo, com as legais consequências, o contrato-promessa de compra e venda sub judice em virtude de se lhe reconhecer ter havido “neutralização do direito” por conduta imputável ao promitente comprador e a quem lhe sucedeu;
    VIII – A Autora originária e quem lhe sucedeu na mesma posição processual agiram com má-fé, em violação do estatuído nos artos 456º e ss. do C.P.C., devendo ser condenadas em multas e indemnização condignas.»
A apelada contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
    «1 – O R. discordou e por isso intentou recurso de agravo quanto à improcedência das excepções conhecidas na fase do Saneador, nomeadamente quanto à questão da ilegitimidade, da nulidade do Contrato por falta de assinatura reconhecida e pela falta de autorização do cônjuge do promitente vendedor no Contrato;
    2 – Pese embora o R. não tivesse apresentado as suas Alegações de Agravo (cfr. artº 747º do Código de Processo Civil), não foi considerado tal recurso deserto, pelo que na douta Sentença, entendemos nós que por lapso, não teve o Tribunal "a quo" [em conta] tal situação, motivo pelo qual na mesma se diga que as excepções se encontram resolvidas ainda que sem trânsito em julgado;
    3 – Ora, ao não ter apresentado as Alegações, o recurso de Agravo considera-se deserto e, por conseguinte, a decisão quanto à matéria das excepções transitada, daí que a douta sentença recorrida deve ser alterada, neste sentido;
    4 – A decisão quanto às excepções de ilegitimidade da A. e quanto à nulidade do Contrato Promessa, constitui caso julgado formal, nos termos do disposto no artº 672º do Código de Processo Civil, não podendo o Tribunal "ad quem" se pronunciar sobre as mesmas, nada valendo ao R. vir agora em sede de Apelação suscitar estas mesmas questões;
    5 – Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que a legitimidade das partes afere-se pela utilidade ou prejuízo que cada uma das partes tem na procedência ou improcedência da acção, utilidade ou prejuízo que o A. configura no direito invocado, ou seja, na relação material controvertida – v. artº 26º, nº 3, do Código de Processo Civil –, daí que em face da causa de pedir e do pedido formulado pela A. é a mesma parte legítima, tal como o R.;
    6 – Além do mais, o consentimento à cessão de posição contratual foi dado quer pelo promitente-comprador, quer pelo próprio R., que a partir de 1985, na qualidade de herdeiro de sua mãe, confessou ter recebido valores da A. a partir de 13-01-85 (v. artº 34º da contestação);
    7 – Mas também o próprio Contrato Promessa previa a possibilidade do promitente-comprador ceder a sua posição contratual, pois previa expressamente a possibilidade do Contrato definitivo vir a ser outorgado em nome de outras pessoas a indicar por aqueles;
    8 – Os outorgantes no Contrato Promessa sub judice não reconheceram as suas assinaturas presencialmente; porém, tal facto não conduz à nulidade do Contrato Promessa; a este respeito dispõe o artº 410º, nº 3, do Código Civil que “o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos (incluindo a falta de reconhecimento presencial de assinatura) quando a mesma tenha sido causada culposamente pela outra parte”;
    9 – O cônjuge mulher do promitente-vendedor não outorgou no Contrato Promessa, tendo a mesma falecido em data anterior a 01/08/1985, cfr. documento junto a fls. 9 dos autos;
    10 – Em 01/08/1985 foi registado o imóvel em causa nos presentes autos, em comum e sem determinação de parte ou direito a favor de António Acácio………….e de Acácio Fernando…………, aquisição essa derivada da sucessão por morte de Matilde ……….., tendo aqueles sido chamados à titularidade das relações jurídicas patrimoniais da mesma, assumindo assim todos os direitos e obrigações inerentes a esse património (v. artº 2024º do Código Civil);
    11 – O R. tinha perfeito conhecimento da posição assumida pela sua falecida mãe, Matilde …………, tanto mais que assinou vários documentos a dar quitação de quantias entregues por conta do preço do Contrato Promessa, v. docs. juntos a fls. 25 a 38 dos autos; com tal atitude, e agindo na qualidade de herdeiro e titular de todas as obrigações assumidas pela sua mãe e inerentes ao Contrato Promessa de Compra e Venda em causa, assume por escrito a posição de promitente vendedor do dito contrato;
    12 – Caso a sua mãe não aceitasse a compra e venda prometida, o R. recusaria receber tais quantias por conta do Contrato Promessa;
    13 – O R. levanta a questão da caducidade da produção de efeitos do Contrato Promessa e o abuso de direito por parte da Autora, tentando em sede de recurso lançar mão de uma excepção que não alegou em sede de contestação, pois em parte alguma da sua contestação alegou a caducidade da produção de efeitos do Contrato;
    14 – O contrato prometido estipula na cláusula 3ª que a escritura notarial se deverá realizar até ao final do ano de 1983, não indicando, porém, a quem cabe a marcação da mesma;
    15 – A marcação da escritura notarial poderia ser efectuada por qualquer das partes, todavia o R. nunca o fez porque sobre o imóvel incidia uma hipoteca que não estava cancelada – cfr. documento junto a fls. 9 – encontrando-se, assim, em mora no cumprimento do Contrato;
    16 – A A., por sua vez, cansada de esperar e porque já tinha pago quase a totalidade do preço do Contrato Promessa, conforme, aliás, o Tribunal “a quo” deu como provado, acabou por marcar a escritura notarial de Compra e Venda. Recorde-se que o preço do imóvel era de Esc. 2.000.000$00 e que a promitente deveria pagar Esc. 1.000.000$00 apenas no acto da escritura notarial;
    17 – Afinal o R. já tinha recebido, em 30 de Setembro de 1983, a quantia total de Esc. 1.000.000$00 – cláusula terceira do Contrato Promessa de Compra e Venda –, podendo por isso marcar a escritura notarial de compra e venda, pois não havia incumprimento contratual por parte da promitente compradora;
    18 – Nos termos do artº 441º do Código Civil, todas as quantias entregues pelo promitente-comprador presumem-se que têm carácter de sinal;
    19 – Por todas as razões supra mencionadas, [o R., que] como herdeiro de sua mãe recebe e dá quitação de quantias entregues para pagamento do preço do imóvel, recebe quase a totalidade do preço do imóvel prometido vender, sem todavia expurgar o ónus de hipoteca que sobre o mesmo incidia, sem nunca interpelar a A. para a realização da escritura, pois a obrigação também era sua, e vem alegar que não incumpriu o dito Contrato Promessa, actua com manifesto abuso de direito;
    20 – Por último, o R. pretende que a A. seja condenada como litigante de má-fé, pois entende que esta acção foi usada como retaliação sobre a acção de despejo;
    21 – Mais uma vez o R. alega gratuitamente ao dizer que esta acção é uma retaliação à acção de despejo por si intentada, em primeiro lugar porque a ser verdade tal facto não haveria qualquer motivo para a A., apenas três anos após a data de entrada da acção de despejo, vir intentar a presente, pedindo a execução especifica do Contrato Promessa, em segundo lugar porque o direito alegado pela A. é um direito legítimo; celebrou um Contrato Promessa, o R. encontrava-se em mora no seu cumprimento e como tal veio pedir a execução específica do mesmo;
    22 – Pelo exposto, em nada há a revogar na douta Sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, exceptuando a decisão proferida na fase do Saneador, quantos às excepções deduzidas pelo R., que deve [ser] tida como transitada em julgado.»
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artos 660º, nº 2, e 664, ex vi do artº 713º, nº 2, do CPC).

Do teor das alegações dos recorrentes extraem-se as seguintes questões essenciais a discutir:

1) ilegitimidade da A., fundada na inexistência de consentimento, do R. ou do seu antecessor, para a cessão de posição contratual (quanto à posição de promitente-compradora) invocada pela A.;
2) nulidade do contrato-promessa por falta de reconhecimento presencial de assinaturas, ao abrigo do artº 410º, nº 3, do C.Civil;
3) impossibilidade de execução específica, por falta de intervenção ou autorização do cônjuge do promitente-vendedor no contrato-promessa, na medida em que este se refere a bem que, na ocasião da sua celebração, era bem comum do casal;
4) caducidade do contrato-promessa, pelo decurso do tempo sem cumprimento ou resolução do contrato, que revela perda de interesse da A., ao abrigo do artº 436º do C.Civil;
5) abuso de direito da A., ao pretender exercer o eventual direito de execução específica, depois de manifestar desinteresse na realização do contrato prometido;
6) litigância de má-fé da A..

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, não sujeitos a impugnação, que aqui se aceitam (cfr. artº 713º, nº 6, do CPC) e que, para melhor análise, se passam a reproduzir:
    «1. O réu é o actual único dono e legítimo proprietário do prédio urbano sito na Rua Victor Cordon, freguesia e concelho de Azambuja, composto de rés-do-chão destinado a arrecadação, primeiro andar destinado a habitação, com terraço e quintal, com a área de 484,56 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº 93/010885 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 971, da mesma freguesia (A).
    2. Em 17 de Fevereiro de 1983, o pai do réu, no estado de casado no regime da comunhão geral de bens com a mãe deste, Matilde .-…………., prometeu vender à sociedade «Viúva de José ………….., Lda.», ou a quem esta indicasse, e por sua vez esta prometeu comprar àquele o prédio identificado em 1, pelo preço de 2.000.000$00/9.975,96 [€] (B).
    3. Em 11 de Fevereiro de 1985, a referida sociedade cedeu a sua posição contratual à autora (C).
    4. No dia 2 de Janeiro de 1985, o anterior proprietário, pai do réu, já havia dado de arrendamento à autora o prédio prometido vender e comprar (D).
    5. O réu e o falecido pai deste receberam, nas datas adiante indicadas, as seguintes quantias:
    - em 30 de Abril de 1983, 300.000$00, respeitante ao pagamento referido no § 3º do contrato-promessa;
    - em 17 de Junho de 1983, 300.000$00, respeitante a transacção comercial;
    - em 30 de Setembro de 1983, 400.000$00, respeitante ao pagamento referido no § 3º do contrato-promessa;
    - em 30 de Outubro de 1984, 400.000$00, referente ao pagamento referido no contrato-promessa;
    - em 13 de Janeiro de 1985, 200.000$00, por conta de capital e juros ainda em dívida;
    - em 12 de Fevereiro de 1985, 100.000$00, por conta do contrato- promessa de compra e venda;
    - em 28 de Março de 1985, 10.000$00;
    - em 5 de Maio de 1985, 50.000$00;
    - em 13 de Maio de 1985, 50.000$00, por conta do contrato de venda da casa;
    - em 12 de Julho de 1985, 20.000$00, por conta da renda da casa de Azambuja;
    - em 18 de Agosto de 1985, 20.000$00;
    - em 26 de Setembro de 1985, 50.000$00;
    - em 28 de Janeiro de 1986, 10.000$00;
    - em 30 de Abril de 1986, 10.000$00;
    - em 14 de Maio de 1986, 40.000$00;
    - em 21 de Agosto de 1986, 25.000$00;
    - em 29 de Setembro de 1986, 25.000$00;
    - em 2 de Novembro de 1986, 10.000$00 (E e 1º).
    6. A autora e a promitente-compradora cedente sempre cuidaram, repararam e conservaram o prédio identificado no nº 1, pintando-o interior e exteriormente, reparando portas, janelas, canalizações e substituindo vidros (F).
    7. Nunca os proprietários do prédio executaram quaisquer obras em benefício daquele, apesar do mesmo já ter sido construído há mais de cinquenta anos (G).
    8. A autora e promitente cedente procederam às inúmeras reparações do telhado, acrescentando inclusivamente diversos barrotes de sustentação daquele e colocando novas vigas que sustentam o chão do primeiro andar (H).
    9. Muitos outros encargos respeitantes ao prédio, da responsabilidade dos seus proprietários, foram suportados pela autora e pelo irmão desta, sócio-gerente da promitente- -compradora cedente (I).
    10. A venda prometida teria de ser efectuada livre de quaisquer ónus e encargos (J).
    11. Sobre o prédio descrito em 1 foi registada a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Cadaval, pela inscrição C-2, ap. 01/140771, sendo o montante máximo de capital e acessórios de 636.250$00 (L).
    12. Jamais o réu ou os anteriores proprietários procederam à marcação da escritura pública de compra e venda (M).
    13. A autora procedeu à marcação da escritura pública de compra e venda, o que comunicou ao réu por carta registada com aviso de recepção de 27 de Janeiro de 1993 (N).
    14. A escritura pública foi marcada para o dia 18 de Fevereiro de 1993, pelas 14.00 horas, no 19º Cartório Notarial de Lisboa, sito na Av. Guerra Junqueiro, nº 21, 1º direito, Lisboa (O).
    15. No dia e hora designados, o réu não compareceu à escritura, nem nela se fez representar (P).
    16. A autora e a cedente sempre manifestaram ao réu a sua disponibilidade para compensarem este de quaisquer prejuízos que eventualmente o atraso na celebração da escritura lhe houvesse acarretado, apesar de jamais terem sido interpeladas para a celebração da mesma (Q).»

B) DE DIREITO:

Antes de mais, importa referir dois aspectos relevantes para a apreciação das questões suscitadas em sede de recurso.

Por um lado, a constatação de que as três primeiras questões acima enunciadas – ou seja, as relativas à falta de consentimento da contraparte para a cessão de posição contratual, à falta de reconhecimento presencial de assinaturas e à falta de intervenção ou autorização do cônjuge do promitente- -vendedor no contrato-promessa – foram objecto de análise, não na decisão recorrida, mas no despacho saneador (de fls. 127 ss.), enquanto excepções dilatórias, já que o R. as qualificou como tal, a primeira sob a forma de ilegitimidade da A. e as restantes sob a forma de nulidade do processo (em que alegadamente se converteria a nulidade do contrato-promessa decorrente de qualquer dessas omissões). E tenha-se presente que houve recurso desse despacho saneador, na parte em que julgou improcedentes tais excepções dilatórias, mas esse recurso foi julgado deserto, pelo que aquela decisão transitou em julgado, conforme foi verificado no despacho de fls. 457.

Por outro lado, evidencia-se que as quatro primeiras conclusões (e a conclusão 22ª) das contra-alegações da A. se reportam, precisamente, à discussão sobre a ocorrência do trânsito em julgado do despacho saneador que decidiu as alegadas excepções dilatórias, partindo do pressuposto (errado) de que o tribunal a quo não declarara a deserção do respectivo recurso, quando, afinal, à data das contra-alegações (em 23/2/2005) já havia sido proferida decisão nesse sentido (em 9/2/2005, conforme despacho de fls. 408).

Se, quanto a este segundo ponto, é irrelevante o lapso da apelada – pelo que, verificado que está o trânsito em julgado da decisão de improcedência das aludidas excepções dilatórias, fica prejudicada a sua pretensão de ver alterada a decisão recorrida na parte em considera não transitada a apreciação daquelas excepções –, já quanto ao primeiro ponto, merece particular atenção a insistência do apelante na suscitação de questões não discutidas na decisão recorrida e que haviam sido decididas em anterior despacho transitado em julgado dentro do processo.

Apesar de se nos afigurar incorrecta a qualificação jurídica dada pelo recorrente a essas questões (já que versam sobre o mérito da causa, e não sobre matéria processual), a que, aliás, o tribunal não estava vinculado, atento o disposto no artº 664º do CPC, a verdade é que as mesmas já foram objecto de apreciação (ainda que sumária), em despacho já transitado – pelo que, em rigor, não poderia suscitá-las de novo em sede de recurso da decisão final.

Em todo o caso, e para a eventualidade de se poder considerar que a natureza substantiva dessas questões imporia uma apreciação em sede de decisão final (que redundaria em omissão de pronúncia, fundamentadora de nulidade da sentença – artº 668º, nos 1, al. c), e 3, do CPC –, e que ao tribunal de recurso caberia suprir, por força da consagração do princípio da substituição no nosso sistema de recursos – artº 715º do CPC), entendemos conveniente pronunciarmo-nos sobre essas questões – desde já adiantando que as mesmas foram bem decididas pelo tribunal de 1ª instância.

1. Falta de consentimento da contraparte no contrato-promessa para a cessão de posição contratual:

Da matéria de facto provada resulta que o contrato-promessa em causa nos autos, datado de 17/2/1983, foi celebrado entre o pai do R., António Garcia Várzea Júnior, entretanto falecido, como promitente-vendedor, e a sociedade «Viúva de José Mateus Matoso, Lda.», representada pelo sócio-gerente António Florêncio dos Santos, como promitente-compradora, assumindo reciprocamente obrigações de celebrar um contrato de compra e venda de prédio urbano. Esse contrato, documentado a fls. 16-17, contém uma cláusula 5ª do seguinte teor: «Na altura da celebração da escritura, esta ficará em nome ou nomes das pessoas que possam vir a ser indicadas pelos promitentes compradores».

Posteriormente, foi celebrado um contrato de cessão de posição contratual, datado de 11/2/1985, entre António Florêncio dos Santos, na qualidade de sócio-gerente da sociedade «Viúva de José Mateus Matoso, Lda.», e Maria José de Almeida Santos, primitiva A. da presente acção. No respectivo escrito, documentado a fls. 17-19, afirma o primeiro que «pelo presente contrato, cede, em nome da sociedade sua representada, à segunda outorgante (…) o referido direito», sendo que essa «cedência é feita nos termos e condições estabelecidas no mencionado contrato de promessa de compra e venda», ao mesmo tempo que a segunda outorgante declara «que aceita este contrato nos termos exarados».

Perante estes dados de facto não oferece dúvidas que houve uma cessão da posição contratual de promitente-compradora (naquele contrato-promessa), em favor da primitiva A., e que o promitente-vendedor consentiu antecipadamente na cessão, na medida em que acordou na possibilidade de o contrato definitivo ser celebrado, do lado do comprador, por pessoa que fosse «indicada» pela promitente-compradora, sem que essa indicação ficasse condicionada a qualquer autorização da contraparte e sem que ficasse vedada a utilização da figura da cessão da posição contratual para concretizar tal indicação.

Segundo o artº 424º, nº 1, do C.Civil, «no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão». E diz o nº 2 que «se o consentimento do outro contraente for anterior à cessão, esta só produz efeitos a partir da sua notificação ou reconhecimento».

O contrato acima descrito enquadra-se na definição legal transcrita e corresponde ao conceito doutrinário desenhado por ANTUNES VARELA: «A cessão da posição contratual (…) consiste no negócio pelo qual um dos outorgantes em qualquer contrato bilateral ou sinalagmático (-) transmite a terceiro, com o consentimento do outro contraente, o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato». Trata-se de operar uma «modificação subjectiva na relação contratual básica, a qual persiste, embora com um novo titular» (Das Obrigações em Geral, vol. II, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1980, pp. 351 e 356).

Uma vez que, in casu, estamos perante um consentimento anterior à cessão, exige a lei, como esclarece ANTUNES VARELA (ob. cit., p. 367), que seja comunicada a cessão ao cedido (por notificação, como declaração unilateral receptícia) ou que este a reconheça (expressa ou tacitamente). Não se produziu prova sobre este ponto, mas, ainda que tal conhecimento não tivesse ocorrido antes, pelo menos com a citação para a presente acção consumou-se a referida comunicação – pelo que se mostra cumprida a exigência legal.

Verificada a existência de consentimento prévio do promitente- -vendedor para a cessão da posição da promitente-compradora, com conhecimento da contraparte, não poderia proceder a invocada arguição de falta desse consentimento, que, a verificar-se, determinaria a nulidade da cessão da posição contratual (neste sentido, ainda que com excepções, ANTUNES VARELA, idem, p. 368). Afigura-se, assim, válida a cessão operada.

2. Falta de reconhecimento presencial de assinaturas no contrato- -promessa:

A segunda questão – relativa à falta de reconhecimento presencial de assinaturas no contrato-promessa – prende-se já com a validade do próprio contrato-promessa. Neste ponto, é essencial determinar qual o regime legal aplicável em matéria de forma do contrato.

Como se sabe, o contrato em causa foi celebrado em 17/2/1983 – e o C.Civil já conheceu três regimes legais em tema de contrato-promessa. A versão originária das respectivas normas foi substituída por intermédio do Decreto-Lei nº 236/80, de 18/7, e nova redacção foi-lhes conferida pelo Decreto-Lei nº 379/86, de 11/11 – sendo certo que o primeiro desses diplomas continha uma norma de direito transitório, segundo a qual «o disposto nos artigos 442º e 830º do Código Civil, na redacção que lhes dá este diploma, aplica-se a todos os contratos-promessa cujo incumprimento se tenha verificado após a sua entrada em vigor» (artº 2º).

Constata-se, pois, que o presente contrato foi celebrado na vigência da versão introduzida pelo Decreto-Lei nº 236/80, não se lhe aplicando a referida norma transitória, que vale para os contratos celebrados anteriormente a esse diploma, mas incumpridos já na sua vigência. Uma vez que o incumprimento só vem a ser invocado à data da propositura da presente acção (em 15/4/93), e com referência à falta de comparência à escritura pública para celebração do contrato definitivo (em 18/2/93), verifica-se que aquele se reporta a um momento em que já estava em vigor a versão dada pelo Decreto-Lei nº 379/86, que não continha norma transitória idêntica à do Decreto-Lei nº 236/80. Nesta medida, temos de convocar o regime geral de aplicação de leis no tempo (artº 12º do C.Civil).

Como diz BAPTISTA MACHADO, «a regra de conflito em matéria de contratos pode (…) ser assim formulada: a LN [lei nova] sobre o regime dos contratos não se aplica aos contratos anteriores. Daqui resulta que é a lei de origem ou lex contractus que regula todos os efeitos dos contratos» (Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, p.114). Nesta conformidade, cabe aplicar ao contrato-promessa dos autos, em todos os seus aspectos, o regime emergente do Decreto-Lei nº 236/80, vigente à data da respectiva celebração.

Sendo esse contrato relativo à «celebração de contrato de compra e venda de prédio urbano», mostra-se aplicável o disposto no nº 3 do artº 410º do C.Civil, na redacção trazida pelo Decreto-Lei nº 236/80:
    «3 – No caso de promessa relativa à celebração de contrato de compra e venda de prédio urbano, ou de sua fracção autónoma, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes e a certificação, pelo notário, da existência da respectiva licença de construção. A omissão destes requisitos não é, porém, invocável pelo promitente-vendedor, salvo no caso de ter sido o promitente-comprador que directamente lhe deu causa.»

Impunha-se, pois, que o contrato-promessa dos autos cumprisse as formalidades estabelecidas nesse preceito, designadamente o invocado reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes – o qual, efectivamente, não ocorreu. Porém, a norma era clara em vedar ao promitente- -vendedor a possibilidade de invocar a invalidade daí resultante.

Discutiu-se amplamente, na doutrina e na jurisprudência, duas questões conexas: a natureza dessa invalidade (nulidade ou anulabilidade, ou invalidade atípica) e a possibilidade de ser invocada por terceiros ou decretada oficiosamente pelo tribunal. Essas questões vieram a obter resposta com os Assentos do STJ nos 15/94, de 28/6/94 (in DR, I, de 12/10/94), e 3/95, de 1/2/95 (in DR, I, de 22/4/95), que hoje têm o valor de jurisprudência uniformizada (cfr. artº 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12/12).

Declara o primeiro que «no domínio do nº 3 do artigo 410º do Código Civil (redacção do Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho), a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser invocada por terceiros». No segundo prescreve-se que «no domínio do nº 3 do artigo 410º do Código Civil (redacção do Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho), a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser oficiosamente conhecida pelo tribunal».

Esses arestos – tirados, precisamente, no quadro do regime introduzido pelo Decreto-Lei nº 236/80, aplicável ao caso dos autos – acolheram-se, pois, à tese que via no nº 3 do artigo 410º a consagração de uma exigência formal de que resultava uma invalidade mista ou atípica e estabelecida no interesse do promitente-comprador, pelo que apenas este poderia invocar a invalidade do contrato, salvo quando a omissão lhe fosse exclusivamente imputável. Refira-se, aliás, que essas orientações permanecem válidas para a actual redacção do nº 3 do artigo 410º, dada pelo Decreto-Lei nº 379/86, já que este apenas lhe operou ajustamentos textuais, sem alterar a solução normativa (neste sentido, v. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pp. 318-322, e ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 9ª ed., Almedina, Coimbra, 2001, p. 365).

Posto isto, e uma vez que nada se apurou quanto à responsabilidade na omissão do reconhecimento presencial de assinaturas no contrato-promessa, caberá considerar improcedente a arguição de nulidade desse contrato, com aquele fundamento, na medida em que suscitada por quem actualmente ocupa a posição de promitente-vendedor (R.).

3. Falta de intervenção do cônjuge do promitente-vendedor no contrato- -promessa:

A terceira questão – relativa à falta de intervenção do cônjuge do promitente-vendedor no contrato-promessa – reporta-se ainda à validade desse contrato, mas também à projecção dessa omissão na possibilidade de execução específica.

Estão aqui em equação as consequências da celebração de um contrato-promessa relativo a bem comum do casal (estando casados no regime da comunhão geral de bens) quando naquele apenas intervenha um dos cônjuges.

Neste domínio, a doutrina é inequívoca a considerar que é «inaplicável à promessa de venda de bens imóveis o disposto no nº 1 do artº 1682º-A do C.Civil, que exige a intervenção de ambos os cônjuges nos contratos de alienação dos bens dessa natureza» (ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 328; de igual modo, v. ALMEIDA COSTA, ob. cit., pp. 370-371, e ANA PRATA, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 448-450). Está-se aqui no âmbito do segmento do nº 1 do artº 410º do C.Civil que consagra as excepções ao princípio da equiparação, em particular a que se refere às normas relativas ao contrato prometido «que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa».

Daqui decorre a plena validade do contrato-promessa que seja celebrado apenas por um dos cônjuges, apesar de casados no regime da comunhão geral de bens – o que tem sido reconhecido uniformemente na jurisprudência. Destaque-se, a este propósito, o que se pode ler no Ac. STJ de 21/3/1985 (BMJ, nº 345, pp. 408 ss.):
    «O contrato-promessa de compra e venda de bens imóveis comuns efectuado pelo marido sem o consentimento da mulher é plenamente válido (…).
    Através do contrato (…) não são alienados ou transmitidos bens, constituindo-se, tão-só, a obrigação de facto de celebrar futuramente a correspondente escritura pública de compra e venda (Lopes Cardoso, em Administração dos bens do casal, pág. 160). E parte-se da ideia de que o marido ao intervir sozinho, prometendo vender, se obriga a obter o consentimento da mulher, garantindo, implicitamente, isso mesmo ao promitente-comprador sob pena de ter de o indemnizar (cfr. Vaz Serra, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 102º, a págs. 47).
    Para a celebração da escritura por via da qual se opera a alienação já se torna necessária a intervenção da mulher no acto ou o consentimento dela prestado de conformidade com o artigo 1684º do citado Código, em obediência à prescrição do nº 1, alínea a), do artigo 1682º-A do mesmo diploma, segundo a qual carecem do consentimento de ambos os cônjuges, se entre eles não vigorar o regime de separação de bens, além de outros negócios jurídicos, aqueles que importem a alienação de bens imóveis próprios ou comuns.
    Se essa intervenção ou a prestação do consentimento são indispensáveis para a realização da escritura pública por via da qual se transmite a propriedade do imóvel, é evidente que quando um dos cônjuges não haja outorgado no contrato-promessa nem dado o seu assentimento a ele, a execução específica facultada pelo artigo 830º do Código Civil não será exercitável, pois o tribunal poderia, na sentença, substituir o cônjuge contraente que apresentava escusa à celebração do contrato prometido, mas não já o outro cônjuge, que à promessa se não vinculara e que, portanto, não pode ser compelido a acolher decisão que produza o efeito de declaração negocial que não prometeu emitir.
    Em caso de recusa na outorga da escritura por parte do outro cônjuge, o promitente-comprador apenas terá direito à indemnização devida pelo incumprimento (artigo 442º, nos 2 e 3, na redacção actual, nos 2 e 4).»

Neste mesmo sentido, v., entre outros, Acs. STJ de 13/1/2005 (Proc. 04B3339, in www.dgsi.pt) e de 1/7/2004 (Proc. 04B1774, idem), Acs. RL de 18/1/96 (Proc. 0009636, idem) e de 17/6/99 (Proc. 0036526, idem), e Ac. RC de 30/1/2001 (proc. 3133-2000, idem).

É, pois, de concluir que, não obstante válido o contrato-promessa em que intervém só um dos cônjuges, já não poderá proceder a execução específica quando no contrato prometido devam intervir ambos os cônjuges. Ou seja, na pendência da comunhão conjugal, e sendo promitente-vendedor apenas um dos cônjuges, só se podem configurar duas hipóteses: ou o cônjuge promitente obtém a cooperação do outro cônjuge para a celebração do contrato prometido, e pode assim cumprir a obrigação por si assumida; ou não consegue convencer o cônjuge a intervir nesse contrato, e torna-se impossível a execução específica, restando ao promitente-comprador, perante o incumprimento do promitente- -vendedor, accionar contra este um direito de indemnização.

Porém, com a dissolução do casamento, por morte ou divórcio, altera-se o enquadramento jurídico da questão. Extintas as relações patrimoniais inerentes ao casamento em consequência dessa dissolução, deixa de ser aplicável a regra do artº 1682º-A do C.Civil (sobre este tópico, cfr. Ac. STJ de 7/10/93, Proc. 083507, idem). Assim, sobrevivendo (no caso de dissolução do casamento por morte) o cônjuge promitente, e porque a sua obrigação emergente do contrato-promessa se referia à totalidade do bem identificado da promessa, se aquele passar a ser único titular desse bem (ou passar a poder dispor plenamente do mesmo), já se torna possível a execução específica do contrato: se, v.g., ao cônjuge promitente supérstite, enquanto sucessor do cônjuge falecido, se lhe transmitir a parte do bem comum que lhe permite passar a ser proprietário pleno do bem a que se refere a promessa, passa o mesmo a poder cumprir integralmente a obrigação assumida no contrato-promessa – o que já permite accionar a execução específica do contrato contra o promitente-vendedor (sobre um caso paralelo, v. Ac. RP de 20/1/2005, Proc. 0437000, idem).

Identicamente se passam as coisas no caso dos autos. A obrigação de contratar a venda, emergente do contrato-promessa, referia-se à totalidade do prédio urbano a que se refere a promessa (ainda que assumida numa ocasião em que o promitente-vendedor – devido à comunhão conjugal – não podia outorgar, só por si, no contrato prometido). Essa obrigação inscreveu-se na esfera jurídica do promitente-vendedor e, como tal, transmitiu-se, por efeito da sua sucessão por morte (e ao abrigo do artº 412º, nº 1, do C.Civil, por não se tratar de obrigação de natureza exclusivamente pessoal), ao seu filho – o aqui R., directamente accionado, no quadro da habilitação-legitimidade ínsita na petição inicial (cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, p. 574). Entretanto, também por mecanismo sucessório, a propriedade do bem a que se reporta a promessa veio a integrar-se plenamente no património do R.: por morte de sua mãe (anterior à do cônjuge promitente), o prédio foi inscrito, em 1/8/85, no nome do cônjuge sobrevivo (já seu anterior titular) e do seu filho, ora R.; e, por morte do promitente-vendedor, em 19/6/1990, foi o prédio inscrito em nome do R. (conforme certidões de escritura de habilitação de fls. 13-15 e de registo predial de fls. 107-110, em que se fundou o facto nº 1 da matéria provada).

Consequentemente, encontra-se hoje (e já se encontrava à data da propositura da acção) o R., que assumiu a posição de promitente-vendedor, em condições de cumprir a obrigação emergente da promessa celebrada pelo autor da herança, na medida em que é o titular único do bem que seria objecto do contrato prometido, sendo irrelevante que em momentos anteriores não tivesse o promitente-vendedor (ou quem lhe sucedeu) a plena disponibilidade do prédio prometido vender – pelo que pode, assim, ser exercida contra aquele a execução específica do contrato, ao abrigo do artº 830º do C.Civil.

Em suma, podemos afirmar que improcede a arguição de nulidade do contrato-promessa por falta de intervenção do cônjuge do promitente-vendedor nesse contrato, ao mesmo tempo que daí não resulta, na actualidade, qualquer obstáculo à execução específica do contrato. Também por aqui não assiste razão ao recorrente.

4. Caducidade do contrato-promessa:

A quarta questão – respeitante ao decurso do tempo sem cumprimento ou resolução do contrato-promessa, de que derivaria a sua caducidade – já não integra o núcleo de questões que o R., em fase processual anterior, qualificou como excepções dilatórias e que, como tal, foram apreciadas no despacho saneador, mas constitui uma questão nova, que surge pela primeira vez nas alegações de recurso, ainda que meramente jurídica, não envolvendo a invocação de factos novos.

Pretende o recorrente que o largo tempo decorrido entre a celebração do contrato-promessa e a data designada para a escritura relativa ao contrato definitivo levaria à conclusão de que a promitente-compradora incorrera em incumprimento ou, pelo menos, perdera o interesse no cumprimento, de que seria de deduzir a caducidade do contrato, ao abrigo do artº 436º do C.Civil.

Refira-se que esse artº 436º se enquadra no capítulo relativo à resolução dos contratos e que nele se prevê que «não havendo prazo convencionado para a resolução do contrato, pode a outra parte fixar ao titular do direito de resolução um prazo razoável para que o exerça, sob pena de caducidade» (nº 2). Ou seja, a caducidade só está prevista no caso de ser admitida a resolução, nos termos do artº 432º, e mediante uma interpelação da contraparte com fixação de prazo (sobre este ponto, v. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 412).

Dos factos dados como provados no caso dos autos, e que não foram impugnados, resulta que o contrato-promessa foi celebrado em 17/2/1983 (facto nº 2), do qual constava uma cláusula 3ª segundo a qual «a celebração da escritura (…) será efectuada no decurso do ano de 1983», e que a A. procedeu à marcação da escritura pública de compra e venda para o dia 18/2/1993, do que deu conhecimento ao R., que, no entanto, não compareceu (factos nos 13 a 15).

Ora, parece evidente que nada se provou que possa integrar a previsão do artº 436º do C.Civil. É certo que decorreram 10 anos entre a celebração do contrato-promessa e a interpelação do R. para a celebração do contrato prometido, mas a verdade é que, apesar da menção no contrato-promessa à celebração do contrato definitivo no ano de 1983, a obrigação de contratar não tinha prazo certo e carecia de interpelação. Qualquer das partes poderia ter interpelado a outra para a celebração da escritura, como resulta do teor da citada cláusula 3ª, mas foi a A. que tomou a iniciativa da interpelação, provocando a mora do R., em termos de nela poder fundar o exercício do direito de execução específica. E não se provaram quaisquer outros factos donde se possa retirar a conclusão de que a primitiva A. perdeu interesse no cumprimento da obrigação do promitente-vendedor – sendo certo que a interpelação para a escritura induz precisamente a conclusão de que esse interesse se mantinha.

Como diz ANTUNES VARELA, «o promitente comprador pode recorrer à execução específica do contrato-promessa, se o seu interesse na realização do contrato prometido persistir» (ob. cit., p. 355).

Cabe, assim, a hipótese dos autos, na previsão do artº 442º, nº 2, do C.Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 236/80, que prevê, para o incumprimento (lato sensu) do promitente-vendedor uma tripla alternativa de direitos do promitente-comprador: restituição do sinal em dobro; indemnização no montante do valor da coisa objecto do contrato prometido à data do incumprimento (havendo tradição); exercício da execução específica.

Optou, preferencialmente, a A. pela execução específica do contrato, estando verificados os respectivos requisitos, estabelecidos no artº 830º do C.Civil, como reconhecido na sentença recorrida, sendo válidos os argumentos a esse propósito aí expendidos. Deve, assim, proceder o pedido de execução específica, ficando prejudicados os demais pedidos subsidiariamente formulados.

Quanto à substância daquela opção, apenas se sublinhará que para a execução específica, ao abrigo dessa disposição, é irrelevante haver ou não tradição da coisa (mas que in casu até existia), como ficou firmado no Assento do STJ de 19/12/89 (in DR, I, de 23/2/90). E ainda que a prestação de sinal não obsta à execução específica, quer porque na redacção dada ao artº 830º pelo Decreto-Lei nº 236/80 foi eliminada a norma constante da versão originária do nº 2, segundo a qual a existência de sinal significaria convenção em contrário relativamente à execução específica (embora essa norma tenha sido posteriormente reposta pelo Decreto-Lei nº 379/86), quer porque era intenção do legislador admitir sempre a execução específica relativamente aos contratos- -promessa de compra e venda de prédio urbano (como depois veio a ser especificamente consagrado no nº 3, 1ª parte, do artº 830º, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 379/86) [sobre estes tópicos, cfr. ANTUNES VARELA, ob. cit., pp. 341-344].

5. Abuso de direito:

A quinta questão coloca-se no pressuposto de não proceder qualquer das objecções anteriormente suscitadas pelo recorrente à execução específica do contrato-promessa e resume-se à invocação pelo R. de abuso de direito por parte da A. no exercício desse direito.

Segundo o artº 334º do C.Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».

Como assinalam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, «exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso» (ob. cit., pp. 298-299). E mais adiante esclarecem que «a nota típica do abuso de direito reside (…) na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido» (idem, p. 300).

Tendo em conta os factos disponíveis no caso sub judicio, não se vislumbra qualquer uso abusivo do direito da A.: o exercício tardio de um direito, tanto pode significar desinteresse, como contemporização com o incumprimento da contraparte. Uma vez que não está demonstrada a perda de interesse da A. na realização do seu direito, como se procurou evidenciar supra, forçoso é concluir não haver elementos bastantes para fundar um manifesto excesso no exercício da execução específica, improcedendo a alegação de abuso de direito.

6. Litigância de má fé:

A última questão suscitada tem certamente como pressuposto o vencimento da pretensão do R., pelo que poderia ser liminarmente rejeitada, atenta a procedência do pedido da A..

Porém, é sustentável que a parte vencedora possa ser condenada por litigância de má fé (cfr. anterior versão do nº 3 do artº 456º do CPC, cuja orientação se deve manter mesmo sem norma expressa – neste sentido, v. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 196-197), pelo que deverá sempre ponderar-se o preenchimento das situações enunciadas no nº 2 do artº 456º do CPC, independentemente da parte em causa. Segundo esse preceito, tal actuação de má fé ocorrerá quando o respectivo litigante tenha: «deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar»; «alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa»; «praticado omissão grave do dever de cooperação»; ou «feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

Perante os dados disponíveis, nenhuma dessas circunstâncias se evidencia. Aliás, não figura na matéria de facto qualquer referência à acção de despejo intentada pelo R. contra a A. – que esta alegadamente retaliara com a instauração da presente acção –, mas, ainda que figurasse, faltaria demonstrar o nexo causal entre as duas acções, em termos de daí deduzir a invocada retaliação.

Resta, pois, concluir pela improcedência da pretensão do recorrente de condenação da apelada como litigante de má fé.
*

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se negar provimento à presente apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.
Évora, / /


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(Mário António Mendes Serrano)


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(Maria da Conceição Ferreira)


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(Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes)