CONTRATO DE TRANSPORTE
Sumário


No contrato de transporte rodoviário de mercadorias, o transportador obriga-se a efectuar o transporte de um local para outro, por estrada, respondendo, desde que receber até que entregar os objectos, pela perda ou deterioração que venham a sofrer, salvo quando proveniente de caso fortuito, força maior, vício do objecto, culpa do expedidor ou do destinatário.

Texto Integral

PROCESSO Nº 2162/06
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A” demandou, no Tribunal de …, “B” e “C”, pedindo a condenação das rés no pagamento da quantia de 5.143,18 euros, acrescida de juros à taxa legal, vencidos e vincendos.
Alegou, no essencial, que segurou o transporte rodoviário de um barco de pesca, pertencente a “D” e “E”, a realizar num veículo pesado de mercadorias, pela ré “C”, entre o cais de Vila Nova de Gaia e o porto da Baleeira, em Sagres.
A ré transportadora havia transferido para a ré “B” a responsabilidade por danos e prejuízos causados a terceiros pelo veículo.
Durante o trajecto, e já no acesso ao porto da Baleeira, a embarcação de pesca colidiu com ramos de árvores existentes na berma da estrada, o que aconteceu por falta de atenção e de cuidado do condutor do veículo transportador, bem como por erro na selecção da estrada, o que ocasionou danos na embarcação, no montante de 3.941,28 euros, que a autora já liquidou aos respectivos proprietários.
Despendeu ainda a autora o montante de 1.201,90 euros com a inspecção e peritagem do barco.
Apesar de instadas, as rés recusam pagar à autora a quantia peticionada.
As rés contestaram no sentido da improcedência da acção, invocando a ré “B” que o seguro celebrado com a outra ré não cobre o sinistro (a apólice cobre apenas os danos provocados na mercadoria transportada decorrente de choque, colisão, capotamento ou incêndio do veículo transportador) e que, de qualquer modo, a ocorrência não resultou da condução do condutor da viatura, sendo o sinistro devido a caso fortuito ou de força maior e também imputável a culpa de terceiro responsável pelo corte das ramagens que possam constituir obstáculo ao livre trânsito; por seu turno, a ré “C” excepcionou a sua legitimidade, por haver transferido a sua responsabilidade para a ré “B”, e que a culpa do sinistro recai sobre os proprietários da embarcação, os quais, tendo escolhido o percurso, omitiram o dever de informar o transportador da existência de obstáculos na via e de os sinalizar.

No saneador, considerou-se improcedente a excepção de (i)legitimidade da ré “C”, tendo ainda sido descritos os factos assentes e organizada a base instrutória.
Após julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, com absolvição das rés do pedido, por força do disposto no art. 18° n° 1 do Dec. Lei 239/2003, de 4 de Outubro, por existir culpa dos expedidores (os donos da embarcação), uma vez que foram eles a escolher o percurso do transporte, não sendo previsível para o condutor da empresa transportadora que na estrada existissem ramagens que pudessem colidir com a embarcação e provocar-lhe danos.

Inconformada, a autora apelou, tendo alegado e formulado as conclusões que se transcrevem:
1ª. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de 15 de Maio de 2006 que julgou a acção totalmente improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu as rés “B” e “C” de todo o pedido, decidindo contra o direito e os factos que impunham a procedência da acção.
Na verdade,
Os Factos
2a. Foram considerados provados e não provados os factos descritos a fls. 176, 177 e 178, da douta sentença recorrida e a fls. 1, 2 e 3 destas alegações, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;
O Direito
3a. Os proprietários da "…" celebraram com a 2a ré um contrato de transporte rodoviário da embarcação, cuja responsabilidade contratual do transportador se rege pelo regime jurídico previsto no Dec-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro que regula o contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias e pelo disposto nos artigos 7980, 7990 e 4870, n° 2 do Código Civil.
4a. O enquadramento dos factos no direito aplicável mostra à saciedade, o infundado da douta sentença recorrida que ofende grosseiramente as disposições legais aplicáveis ou, pelo menos, evidencia um manifesto lapso na aplicação do direito aos factos e ainda omissão de lei a considerar.
Na verdade,
5ª. A Mma Juiz "a quo" não teve em conta que a Lei estabelece uma presunção de culpa do devedor, in casu, da ré “C” - transportador ao dispor no n° 1 do artigo 799° do CC que "Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua" e no seu n° 2 estabeleceu que a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil, ou seja, nos termos do disposto no artigo 487°, nº 2, do mesmo Código, ou seja, pela diligência de um bom pai de família. Vejamos,
6. De uma simples leitura da factualidade provada e não provada, mostra-se que, ao invés do que a "Mmª Juiz "a quo" sustenta na douta sentença recorrida, não ficou provado que "Na estrada de acesso ao porto da Baleeira em Sagres não existe sinalização da existência da ramagem pendente sobre a estrada, nem a altura da mesma", pelo que a decisão não podia fundamentar-se num facto não provado.
7ª. Para além disso, da transcrita factualidade não consta qualquer facto que demonstre a ausência de culpa do motorista do transportador na colisão do "…" com a ramagem das árvores que ladeavam a estrada de acesso ao porto da Baleeira e pendiam sobre esta a uma altura inferior à carga transportada e era ao transportador que incumbia provar que o sinistro ocorrido não procedia de culpa sua. (cf. cit. artigo 799° CC e Galvão Telles, in Obrigações, 3 ° ,311 ).
8ª. Como é notório, foi o motorista do pesado de carga com a matrícula …-KF que transportava em cima o "…", que agiu com manifesta falta de atenção, de cuidado e de destreza, revelando assim negligência e inconsideração na condução, ao não evitar que a embarcação que transportava fosse colidir com a ramagem das árvores que ladeavam a estrada e que pendiam sobre esta, a uma altura inferior à da carga transportada, danificando-a.
9ª. Atento o disposto no artigo 56° n° 3, alínea f) do Código da Estrada, incumbia ainda à transportadora fazer a prova de que a embarcação colocada em cima do veículo de transporte, não excedia, até à ponta do mastro a altura de 4 m a contar do solo, ou no caso de exceder, como tudo leva a crer, que era detentora da autorização para o efeito, prevista no artigo 58°, do mesmo Código.
10a. Como decorre do exposto, no caso "sub-judice" não foi ilidida a presunção de culpa do transportador, culpa que se evidência até na falta de cuidado e de atenção do seu motorista.
11ª. Por outro lado, é insustentável a tese da douta sentença recorrida de que o facto do percurso ter sido escolhido pelos donos da embarcação e de estes seguirem imediatamente à frente do veículo transportador, consubstancia uma actuação culposa do expedidor que conduz à exclusão da responsabilidade da transportadora, nos termos do disposto no artigo 18° do cito Dec.-Lei n° 329/2003 pois, esses factos em nada podiam contribuir, de "per se", para a produção do acidente ou dar-lhe causa.
12ª. Do mesmo modo, improcede a conclusão de que sempre estaria excluída aquela responsabilidade, em virtude de o acidente se ter ficado a dever a força maior consubstanciada na existência das ramagens não sinalizadas pois, em primeiro lugar, não se provou a falta de sinalização e, em segundo lugar por que só constitui força maior um acontecimento imprevisível e inevitável, o que, como vimos, não é o caso, uma vez que o motorista do transportador, se conduzisse com atenção e cuidado que a altura da carga impunham, teria evitado o embate nas ramagens.
13a. A douta sentença recorrida, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 799° e 487° n° 2 do CC, os artigos 17° e 18° do Dec.-Lei n° 239/2003, de 4 de Outubro e o artigo 56° n° 3, alínea f), do Código da Estrada, pelo que deve ser revogada, julgando-se procedente por provada a acção e condenando-se as rés no pedido.

As rés contra-alegaram a pedir a confirmação da sentença.

Colhidos os vistos, cabe decidir.

São os seguintes os factos que a 1ª instância deu como provados, que se têm como assentes, dado que não se mostram impugnados, nem existe fundamento para os alterar, nos termos do artigo 712° n° 1 do CPC:
1. No dia 13 de Maio de 2002, pelas 19:30 horas, era transportada uma embarcação de pesca com o nome de "…", numa estrada próxima de Vila do Bispo, em Sagres, por um veículo automóvel pesado de mercadorias com a matrícula …-KF propriedade da 2ª ré e seguro da 1ª ré, através da apólice n.º …, referente a um contrato de seguro do ramo transportes terrestres.
2. A referida embarcação de pesca é propriedade de “D” e “E”.
3. Estes últimos acordaram com a autora, pelo período de 13/05/2002 a 14/05/2002, o constante do acordo de fls. 10, que se dá por integralmente reproduzido.
4. O transporte terrestre daquela embarcação era a efectuar do cais de Vila Nova de Gaia para o porto da Baleeira em Sagres, conforme o contratado com a 2ª ré.
5. Durante esse trajecto e já na estrada de acesso ao porto da Baleeira, em Sagres, a embarcação, na sua condição de carga transportada, colidiu com ramos de árvores existentes na berma dessa estrada por onde circulava o veículo pesado e pendiam sobre ela.
6. Este sinistro foi participado à autora, em 14/05/2002, pelos seus segurados.
7. Em cumprimento do acordo referido em 3. celebrado com os proprietários do barco de pesca referido, indemnizou-os na quantia total de 3.941,28 euros, em 20.06.2002.
8. A 1ª ré celebrou com a 2a ré o acordo de Ramo de Transportes titulado pela apólice nº. …, junto a fls. 95 a 102, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
9. A ramagem das árvores que ladeavam a estrada de acesso ao porto da Baleeira pendiam sobre esta a uma altura inferior à carga transportada.
10. A embarcação sofreu estragos nas antenas de comunicação rádio, nos faróis de navegação e nos projectores para iluminação do parque de pesca.
11. O equipamento eléctrico fixado no mastro sofreu estragos no montante de 700,00 euros.
12. A reconstrução da fibra do casco importa o montante de 2.980,00 euros.
13. Gastou a autora com a inspecção e peritagem do barco a importância de 1.201,90 euros, que pagou à sociedade …
14. O transporte foi efectuado em Vila Nova de Gaia com destino a Sagres.
15. Todo o percurso do veículo …-KF foi escolhido pelos donos da embarcação.
16. Estes seguiam imediatamente à frente do veículo …- KF, desde o cais de Vila Nova de Gaia com destino ao porto da Baleeira.

Atenta a delimitação do recurso constante das conclusões da apelante, cabe determinar se se mostra afastada a responsabilidade do transportador e se cabe às rés pagar a indemnização peticionada.

De acordo com a factualidade apurada, os proprietários da embarcação celebraram com a ré “C”, um contrato de transporte rodoviário, actualmente tipificado como aquele que é celebrado entre o transportador e o expedidor, nos termos do qual o primeiro se obriga a deslocar mercadorias, por meio de veículos rodoviários, entre locais situados no território nacional e a entregá-los ao destinatário - art. 2° n° 1 do D.Lei 239/2003, de 4 de Outubro.
No entanto, ao tempo em que os factos ocorreram (13 de Maio de 2002), ainda se encontravam em vigor os normativos do Titulo X do Livro Segundo do Código Comercial de 1888, chamado de Veiga Beirão (artigos 366° a 393°), que regulavam o transporte de pessoas e de coisas.
Mas o sentido e âmbito desse contrato já era entendido em termos semelhantes, levando Cunha Gonçalves a dizer que o contrato de transporte é o que se celebra entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou as suas coisas de um lugar para o outro e aquele que por um determinado preço se encarrega dessa condução (Comentário ao Cód. Com. Português, 2° vol. pg. 394).
Também Adriano Antero entendia que o contrato de transporte é aquele em que uma pessoa singular ou colectiva se obriga a transferir ou fazer transferir alguma coisa ou pessoa de um lugar para outro (Comentário ao Cód. Com., 2° vol., pg. 267).
Assim, tratando-se de transporte rodoviário de mercadoria, o transportador obriga-se a efectuar o transporte de um local para outro, por estrada, respondendo, desde que receber até que entregar os objectos, pela perda ou deterioração que venham a sofrer, salvo quando proveniente de caso fortuito, força maior, vício do objecto, culpa do expedidor ou do destinatário, nos termos do corpo do artigo 383º do Código Comercial (disposição similar à do art. 18° n° 1 do Dec.Lei 293/2003, de 4 de Outubro).
O que significa que incumbe ao transportador, querendo livrar-se da responsabilidade por danos na mercadoria, o ónus de prova que eles advieram de alguma das situações previstas na citada norma.
Sendo de afastar, in limine, culpa do destinatário (provavelmente o expedidor) e vício do objecto transportado, vejamos, então, se as rés produziram prova que exclua a obrigação de indemnizar.
Como é comummente aceite, força maior é todo o acontecimento invulgar, imprevisível e cujo efeito danoso não pode evitar-se, mesmo que tomadas todas as medidas de precaução exigíveis a pessoa normalmente dotada. São exemplo de caso de força maior o terramoto, a tempestade, a inundação brusca.
Por seu turno, caso fortuito é caracterizado como o evento não previsível, mas evitável se tivesse sido previsto. A título de exemplo, os vícios de construção do veículo, o rebentamento de pneu em aparente bom estado de conservação, a fractura da barra de direcção, a perda súbita de consciência do condutor.
No caso dos autos, os danos verificados na embarcação transportada pela viatura da ré “C” resultaram da colisão da embarcação com ramos de árvores existentes na berma da estrada e que pendiam (os ramos) sobre esta, o que não configura situação de força maior ou de caso fortuito, pois não estamos perante ocorrência imprevisível (os ramos não caíram, inopinadamente, sobre a carga), nem se mostra provada, nem alegada, a impossibilidade ou dificuldade de o condutor ter avistado os ramos, tanto mais que não ficou provado, nem vem alegado, que os factos ocorreram já de noite. Acresce que o condutor não podia desconhecer as dimensões da embarcação que transportava.
De igual modo, não lograram as rés provar a culpa dos expedidores no ocorrido, porquanto a circunstância de terem sido estes a escolher o percurso e de seguirem à frente do veículo transportador não permite estabelecer qualquer nexo causal entre essa conduta e o acidente (cf. art. 5630 do CC, que consagra a teoria da causalidade adequada, na formulação negativa de Ennecerus).
Na verdade, segundo a teoria da causalidade adequada, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais que, no plano naturalístico, ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e, depois, que em abstracto, ou em geral, seja causa adequada do mesmo.
De resto, não vem provado que houvesse outro trajecto que permitisse circulação mais segura do veículo transportador (isto é, que o trajecto foi mal escolhido) e que, existisse, sequer, trajecto alternativo ao do local onde se deu a ocorrência (já na estrada de acesso ao porto da Baleeira).
Pelo contrário, o acidente ficou antes a dever-se a condução descuidada e desatenta do condutor da viatura, o qual, não podendo desconhecer as dimensões da carga transportada, como se referiu atrás, não tomou as indispensáveis precauções de modo a acautelar e a evitar a colisão da embarcação com os ramos das árvores.
Quanto a hipotética responsabilidade da entidade com competência para sinalizar a existência das ramagens, não é matéria que possa apreciar-se nesta acção, por não ser essa entidade parte na presente demanda.
Deste modo, tendo a autora pago a indemnização devida aos expedidores, mostra-se sub-rogada, relativamente à ré transportadora, nos direitos dos seus segurados, nos termos do artigo 5920 do Código Civil, tendo ainda direito a ser ressarcida pelo despendido com a inspecção e peritagem do barco (artigos 4830 e 5620 do CC).
Por outro lado, a ré transportadora havia transferido a sua responsabilidade para a ré “B”, através da apólice nº … (ramo transportes terrestres), que cobria, genericamente, as perdas ou danos sofridos pelos bens durante o seu transporte, no percurso normal da viagem segura (cf. art. 2° das condições gerais).
Não se vendo das condições gerais ou das condições particulares da apólice a limitação da responsabilidade aos casos invocados pela ré “B” (danos provocados na carga transportada decorrentes de choque, colisão, capotamento ou incêndio do veículo transportador).
Nem a ré Tranquilidade quis ter o cuidado de referir as condições gerais e/ou particulares da apólice que pudessem acolher tal entendimento.
Assim, enquanto seguradora da ré transportadora, é também a ré “B” responsável pelo pagamento das quantias de que a ré “C”, é devedora.

Por todo o exposto, julgando procedente a apelação, acorda-se em revogar a sentença recorrida, condenando-se as rés, solidariamente, no pagamento da quantia de 5.143,18 euros à autora “A”, acrescida de juros de mora à taxa legal supletiva geral, a partir da citação.

Custas pelas apeladas.
Évora, 18 de Janeiro de 2007