BENS COMUNS
HERANÇA INDIVISA
USUCAPIÃO
Sumário


I – Na comunhão conjugal, os bens comuns constituem uma massa patrimonial pertencente aos dois cônjuges em bloco, sendo os dois titulares de um único direito sobre ela: metade do valor do património comum e não a metade de cada bem em concreto.

II – Numa herança ainda indivisa, a aquisição de um bem por usucapião será propriedade da herança e não aos herdeiros individualmente considerados.

Texto Integral

PROCESSO Nº 1807/06

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Nestes autos de inventário, em que se procede à partilha das heranças abertas por óbito de “A” (ocorrido em 05.Nov.1977) e de “B” (ocorrido em 11.Abri1.2003), casados que foram entre si, no regime de comunhão geral de bens, são interessados os seus filhos “C” (Cabeça de Casal), “D”, “E” e “F”, melhor identificados nos autos.
A fls. 173 e 174 dos autos foi proferido o seguinte despacho:
O presente inventário foi instaurada para partilha da herança aberta por óbitos de “A” (ocorrido em 5-XI-77) e “B” (ocorrido em 11-IV-03) - sendo interessados os filhos “C” (cabeça de casal), “D”, “E” e “F”.
A fls. 35-36 foi apresentada relação de bens, compreendendo: o saldo de uma conta na C.C.A.M. e três prédios sitos na freguesia de … (descritos na C.R.P. de … com os nºs 536, 537 e 538).
A interessada “F” veio reclamar a omissão de dívidas da herança (aberta por óbito de “B”, se bem se compreende), a fls. 59 - tendo voltado a reclamar, a fls. 101 (valorizando as "benfeitorias" no valor de 11.431 €); requereu a avaliação do prédio misto relacionado na verba 3; a fls. 123 juntou declaração da C.C.A.M. (referente à "conta antiga …, a qual não regista movimentos desde 21 de Março de 1994").
A cabeça de casal nega as dívidas, e alega que as obras não foram autorizadas - concluindo pelo pedido de alteração da relação de bens, de forma a incluir as importâncias constantes das contas bancárias (que desconhece), o subsídio e funeral, e "o valor de 36.000€ devidos pela interessada “F” pelo usufruto da propriedade da B…".
A interessada “F” respondeu à cabeça de casal, a fls. 133 - pugnando pelo desentranhamento do requerimento apresentado pela cabeça de casal.
A cabeça de casal voltou a responder a fls. 135, juntando uma escritura de doação, outorgada em 1-VII-93 pelo ora inventariado “B” ("viúvo"), que declara "que, pela presente escritura, faz doação, à segunda outorgante (a ora interessada “F”), sua filha, por força da sua quota disponível, um terço da sua meação na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de sua mulher, “A” ( ... )".
A interessada “F” voltou a responder a fls. 143.
Notificados os restantes interessados para se pronunciar (CPC 1349°/3), “D” e marido (fls. 150) requereram o deferimento dos requerimentos apresentados pela cabeça de casal.
Importa apreciar.
Resulta das certidões juntas a fls. 46 a 55 (e dos documentos juntos a fls. 159 a 166) que na descrição de cada um dos três prédios relacionados se encontra inscrita, desde 30-IX-88, a "Aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito a favor de “B”, viúvo; “C”, c.c. “G”, em comunhão geral; “D”, c.c. “H”, em comunhão geral; “E”, c.c. “I”, em comunhão geral; “F”, c.c. “J”, em comunhão geral ( ... ) por sucessão por óbito de “A”, c.c. com o referido “B”, em comunhão geral ( ... )" - pelo que, à luz da regra do artigo 70 do Código do Registo Predial, se considera que apenas há a partilhar 1/5 indiviso de cada um dos prédios, na herança aberta por óbito de “B”.
Uma vez que se trata de quinhões indivisos, importa proceder à avaliação de todos os prédios relacionados - nomeando-se, para o efeito, o sr. “K” (conhecido em juízo).

Inconformada, veio a interessada “F” a interpor recurso do mesmo, cujas alegações, de fls. 2 a 5 destes autos, concluiu nos seguintes termos:
"1- O presente Recurso tem por objecto o Despacho proferido a fls. 173 e 174 dos Autos de Inventário.
2- No Despacho recorrido, ao considerar-se que apenas há a partilhar 1/5 indiviso de cada um dos prédios, o Tribunal" a quo" violou o disposto nos artigos 1345°, 1349°,1350° do C.P.C., artigo 7° do Código do Registo Predial e artigo 2131º do Cód. Civil.
3- O Inventário foi instaurado por óbito de “A” e de “B”, sendo interessados os Filhos “C” (Cabeça de Casal), “D”, “E” e a ora Recorrente “F”.
4- A Cabeça de Casal relacionou os prédios como pertencentes na sua totalidade aos falecidos Inventariados.
5- Assim, como os prédios pertenciam na sua totalidade aos falecidos Pais, terão que ser partilhados na totalidade e não apenas 1/5 indiviso de cada um dos prédios.
6- O único acto de registo que os herdeiros podem requerer para titular os prédios da herança, é a sua aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, uma vez que apenas a partilha dos mesmos pode determinar a parte de cada herdeiro.
7- A Cabeça de Casal, tinha conhecimento da existência "da escritura em que o Inventariado faz doação (à ora interessada “F”), sua filha por força da sua quota disponível, de um terço da sua meação na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de sua Mulher, “A”, e omitiu tal situação no pedido de registo que requereu, constante de fls. 160 e segs.
8- A situação atrás descrita prejudica injustamente a Interessada “F”.
9- Devem ser recolhidas por aceites as conclusões do presente recurso.
10- Termos em que o Tribunal" a quo" deve reparar o presente Agravo.
11- No entanto se este não o fizer deve ser proferido Acórdão em que se decida sobre o seu provimento".

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. Nos termos dos art.ºs 684°, n.º 3, e 690°, n.º 1 do C.P.Civil o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660° do mesmo Código.
As questões formuladas pela Recorrente resumem-se, pois, a saber se na herança aberta por óbito de “B”, se deve considerar que apenas há a partilhar 1/5 indiviso de cada um dos prédios constantes da relação de bens, cuja cópia está junto a fls. 9 e 10 destes autos, e se há necessidade da sua avaliação.

Vejamos então a questão objecto do presente recurso.
No processo de inventário em apreço, partilha-se os bens do casal constituído por “A” (óbito ocorrido em 05.Nov.1977) e de “B” (óbito ocorrido em 11.Abri1.2003), casados que foram entre si, no regime de comunhão geral de bens.
No que respeita à comunhão conjugal "os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela" (Pereira Coelho, Curso de Direito de Família, 2a Ed., pág. 506.), sendo certo que o art.° 1730°, n.º 1 do Cód. Civ., ao estabelecer que cada cônjuge tem o direito a metade do valor do património comum, não quer dizer que tem o direito a metade de cada bem concreto, mas sim ao valor de metade do património comum (vide neste sentido autor e ob. citados, a págs. 510).
Por morte de “A”, têm direito ao património comum do dissolvido casal, o seu marido, enquanto cônjuge meeiro, e este e os filhos do casal, enquanto herdeiros, nas proporções estabelecidas na lei.
E se é verdade que os herdeiros, com a aceitação da herança adquirem o domínio e posse dos bens da herança, que retroage ao momento da abertura da herança (art.° 2050° do Cód. Civ.) e continuam na posse do de cujus (art.º 1255° do Cód. Civ.), também é verdade a aquisição do direito sobre determinado bem, por usucapião, enquanto o património do de cujus não for partilhado, pertence à herança e não aos herdeiros, pelo que estes não podem reivindicar o bem como seu proprietário fossem (vide neste sentido Ac. do TRL de 09-11-2004, Relatar Roque Nogueira, in site DGSI).
Aliás, efectuada a partilha, cada um dos herdeiros é considerado sucessor único nos bens que lhe foram atribuídos (art.° 2119° do Cód. Civ.), com exclusão dos restantes.
Daí que se possa retirar que, só com a partilha, os direitos dos herdeiros a uma determinada quota do património hereditário, se convertem num direito a uma concreta e determinada parcela desse património (vide Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, em nota ao art.o 21190) e, por conseguinte, antes da mesma, nem o cônjuge sobrevivo, nem os restantes herdeiros têm direito a uma quota sobre cada um dos bens que constituem o património hereditário.
Dito isto, podemos concluir que, por morte de “A”, o património do casal, como um todo, ficou a pertencer, na proporção das respectivas quotas, ao cônjuge sobrevivo e aos filhos do casal, reportando-se pois aquelas não a cada bem individualmente considerado, mas ao todo.
Após o falecimento de “A”, o cônjuge e os seus filhos, fizeram registar a seu favor os bens imóveis que constituíam o património comum do casal, apresentando a competente escritura de habilitação notarial, e restante documentação que consta dos requerimentos de registo, ficando cada um dos imóveis registado "em comum e sem determinação de parte" a seu favor, "por óbito de “A”, c.c. o referido “B”, em comunhão geral".
Tal registo foi requerido com base no disposto no n.º 1 do art.° 37º do C.R.Predial, que estabelece que "o meeiro ou qualquer dos herdeiros pode pedir, a favor de todos os titulares, o registo de aquisição de bens e direitos que façam parte da herança indivisa" e efectuado nos termos do art.° 49° do mesmo código.
"E o registo que se refere o n.º 1 deste artigo é feito em comum e sem determinação de parte ou direito" (vide Isabel Pereira Mendes, C.R.P. Anotado, na nota n.º 1 ao artigo 37°)
O que está aliás em conformidade com as instruções da D.G.R.N. que se podem ler no seu site, do seguinte teor: O registo de aquisição em comunhão hereditária (ou em comum e sem determinação de parte ou direito), é feito a favor de todos os herdeiros com base em documento comprovativo da habilitação - que pode ser escritura ou certidão do inventário, na declaração complementar que identifique os bens como fazendo parte da herança (ex. o prédio identificado, faz parte da herança de …), e numa certidão emitida pela Repartição de Finanças competente que comprove ter sido instaurado o processo de liquidação de imposto sucessório. A lei basta-se, neste caso, com a prova de que do referido processo, faz parte o prédio a que o registo se refere.
E o registo é efectuado em comum e sem determinação de parte, porque, na realidade, à data, cada um dos interessados não tem o direito a uma quota sobre cada um dos bens do património hereditário, mas apenas e só a uma quota sobre o todo.
Pode-se assim dizer que, ao ser efectuado o registo dos bens imóveis pertencentes ao património comum do dissolvido casal, em comum e sem determinação de parte, a favor do cônjuge sobrevivo e dos filhos do casal, se estava a registar o direito que os mesmos têm, como cônjuge meeiro e herdeiros da falecida “A”, no património comum em que estão incluídos esses bens.
O que no fundo se regista é a aquisição dos bens em comunhão hereditária, identificando-se os respectivos titulares.
E assim sendo, não se pode retirar do registo em apreço, mais do que ele expressa, ou seja, que os bens registados pertencem aos titulares inscritos enquanto titulares de um direito na herança aberta por óbito de “A”.
Consequentemente não se pode retirar do registo que, com a morte do cônjuge marido, sem se ter efectuado a partilha da herança aberta por óbito do cônjuge mulher, o que se partilha, quanto à sua herança é um 1/5 indiviso de cada um dos referidos imóveis, pois o que se partilha, quanto à herança deste, é o direito e acção na herança de sua mulher, que se consubstancia numa quota ideal, respeitante à sua meação nos bens comuns do dissolvido casal e ao seu direito enquanto herdeiro da mesma.
É assim de afastar a tese defendida pelo Sr. Juiz "a quo", quanto ao acervo a partilhar na herança aberta por óbito de “B”. Quanto à avaliação dos bens relacionados, uma vez que se trata de bens imóveis, a partilhar no seu todo, prevalece o disposto no nº 2 do art.° 1346°, ou seja, o valor a atender nesta fase, não tendo havido reclamações quanto a essa matéria, é o do valor patrimonial do bem (nova denominação do valor matricial).
Isto sem prejuízo das partes acordarem, na conferência de interessados, na adjudicação dos bens pelo valor que considerarem adequado (alínea a) do n.o 1 do art.º 1353º do Cód. Civ.) ou de poderem reclamar quanto ao valor atribuído aos bens (n.o 5 do art,º 13620 do CPC).

Concluindo é de revogar o despacho recorrido.
***
III. Pelo acima exposto decide-se revogar o despacho recorrido.
Sem custas por os restantes interessados não terem dado causa ao despacho recorrido, nem o terem acompanhado (alínea g) do n.º 1 do art. ° 2° do CCJ)
Registe e notifique.
Évora, 25 de Janeiro de 2007