DIREITO DE SUPERFÍCIE
NULIDADES
TERCEIROS
Sumário


I – O direito de superfície consiste na faculdade do seu titular construir ou manter obra construída em terreno alheio, perpétua ou temporariamente, ficando com o domínio exclusivo sobre essa obra.

II – Este direito sobre a obra pode ser transmitido ou onerado pelo superficiário sem consentimento do fundieiro.

III – Pelo mesmo título pode ser constituído mais do que uma modalidade de direito de superfície.

IV – O artigo 291º do Código Civil é aplicável às nulidades substantivas e o artigo 17º, nº 2 do Código do Registo Predial às nulidades consagradas no artigo 16º deste último.

V – Requisito essencial para a aplicação tanto do artigo 17º, nº 2 do C.R.P. como do artigo 291º do Código Civil, é a existência de dois negócios sucessivos, sendo o primeiro nulo ou anulável.

VI – Terceiro de boa fé é aquele que adquire a coisa posteriormente, sem ter tido intervenção no negócio nulo ou anulável (translativo ou unilateral), que o antecedeu.

Texto Integral


I – “A” intentou contra “B”, a presente acção de anulação sob a forma de processo ordinário, pedindo que:
a) seja declarada a ilegitimidade da Ré para requerer a desanexação por fraccionamento do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº 645/Freguesia de …, requerido nos termos do pedido de registo apresentado nesta Conservatória sob o n° 2 de 28 de Outubro de 1998, com a consequente inutilização ou cancelamento do averbamento n° 2 e inscrição F -1 da mesma descrição;
b) seja declarada a nulidade da hipoteca sobre o prédio acima identificado, constituída os termos da respectiva inscrição C-1, cujo registo foi requerido sob a apresentação n° 3 de 28.10.98 e ordenado o respectivo cancelamento;
c) seja declarada a ilegitimidade da Ré para requerer a rectificação de área do mesmo prédio, requerida nos termos do pedido de registo apresentado na Conservatória, sob o nº 3, de 18.01.01, com a consequente inutilização ou cancelamento do averbamento n° 3 da referida descrição predial;
d) seja declarada a nulidade da constituição em propriedade horizontal do mesmo prédio, a que se refere o registo predial pedido na referida Conservatória, sob a apresentação 4, de 15 de Março de 2001, cancelando-se, consequentemente, o registo constante da inscrição F-2;
e) seja declarada a nulidade da hipoteca das fracções autónomas designadas pelas letras A, B, C, D, E e F do prédio em causa, após a constituição da propriedade horizontal, constituídas nos termos das respectivas inscrições C -2 de cada uma das descrições dessas fracções, cujos registos foram requeridos na mencionada Conservatória, sob a apresentação n° 3, de 27 de Abril de 2001, com o consequente cancelamento desses registos;
f) sejam declarados nulos todos os restantes e eventuais negócios jurídicos que tenham como objecto o mesmo prédio urbano e que afectem ou sejam incompatíveis com o pleno exercício do direito de superfície de que é titular a Autora, ordenando-se o cancelamento dos respectivos registos prediais entretanto requeridos na dita Conservatória do Registo Predial, até à data do registo da presente acção.

Alegou para o efeito, em síntese, que:
- A Ré era dona e legítima proprietária, no regime de propriedade plena, do prédio urbano sito na Estrada Nacional, n° …, na freguesia e concelho de …;
- Em 17 de Julho de 1991, por escritura pública, foi constituído pela Ré, a favor da autora, pelo prazo de trinta anos, o direito de superfície sobre o dito prédio;
- O referido direito de superfície incidia e abrangia todo o edifício já construído, bem como todo o logradouro, ou área de superfície descoberta de que era composto o prédio urbano e abrangia a faculdade de a autora construir e manter no referido prédio, durante a sua vigência, o edifício e instalações para um posto de abastecimento de combustíveis;
- A Autora não submeteu a constituição do direito de superfície a registo, junto da competente Conservatória do Registo Predial até ao dia 20 de Agosto de 2001;
- Em 28 de Outubro de 1998 a Ré requereu e procedeu através do registo predial, à desanexação de uma parcela de terreno, com a área de 50 m2, da área descoberta do prédio em causa, fraccionando assim o mesmo e provocando a abertura dum nova descrição predial para o novo prédio;
- Também naquela data, a Ré requereu o registo da hipoteca que constituiu a favor da “C”, para garantia de empréstimo contraído junto desta instituição bancária, que foi deferido;
- Em 15 de Março de 2001 a Ré requereu o registo da constituição em propriedade horizontal do referido prédio urbano, pedido este que foi deferido;
- Em 27 de Abril de 2001 a Ré pediu o registo da hipoteca que constituiu a favor da “C”, para garantia de novo empréstimo, pedido que obteve deferimento;
- Os actos mencionados são inválidos, dada a ilegitimidade da Ré para a disposição do bem que constitui o seu objecto;
- Efectivamente, ao proceder à constituição da hipoteca e à constituição da propriedade horizontal, sem conhecimento e intervenção da Autora, a Ré praticou actos de disposição e modificação do direito de propriedade de um prédio cuja titularidade em termos de propriedade plena sabe que não tem;
- Consequentemente, a validade substantiva de todos os negócios jurídicos onerosos praticados pela Ré, após a constituição do direito de superfície a favor da autora, pelos quais tenha alienado o imóvel ou tenha estabelecido quaisquer encargos sobre ele, são nulos nos termos da disposição legal que regula a venda de bens alheios - cfr. art. 892° do Código Civil - extensiva a todos os negócios onerosos por força do disposto no art. 939º do mesmo Código.

Contestou a Ré invocando a sua ilegitimidade passiva para os termos da acção, alegando que esta também deveria ter sido proposta contra a “C”, uma vez que parte do pedido atinge os direitos desta instituição bancária, que tem registada a seu favor hipoteca sobre o prédio em questão, hipoteca esta que a Autora pretende ver invalidada.
Pede, assim a Ré, atento o disposto no art. 28º do Código de Processo Civil, a sua absolvição da presente instância.
Não obstante, impugnou igualmente a matéria de facto articulada pela autora, alegando, em síntese, que:
- Pela escritura pública celebrada, a autora tem a faculdade de sobre o referido prédio, construir e manter, durante o prazo estipulado, o edifício e instalações para um posto de abastecimento de combustíveis;
- Na petição inicial a autora não esclarece com rigor qual a faculdade do direito de superfície que se encontra prejudicada pela constituição do prédio em propriedade horizontal;
- Não obstante, porque a autora vem efectivamente concretizando a manutenção do posto para abastecimento de combustíveis, deve reportar-se, apenas, à possibilidade de construir no prédio existente;
- Em 1975, altura em que foi inscrito na Conservatória do Registo Predial, o prédio já tinha a seguinte estrutura: rés-do-chão, primeiro e segundo andar tendo sido, naquela altura, que se colocou em funcionamento um posto de abastecimento de combustíveis;
- Com a constituição do prédio em propriedade horizontal todo o espaço que era afecto ao posto de abastecimento manteve-se exactamente o mesmo, mas agora incluído na fracção A;
- A faculdade de construir a que se alude na escritura pública que constituiu o direito de superfície sobre o prédio, há-de concretizar-se na faculdade de construir obra sobre o prédio existente, isto é, para cima do segundo andar, pois não existe no mesmo qualquer possibilidade de construir obra/edifício noutro sítio;
- O regime estabelecido no art. 1526° do Código Civil manda que se apliquem as normas da propriedade horizontal no caso do direito de sobreelevação, quer o edifício já esteja nesse regime quer o não esteja;
- Assim, no presente caso, se autora quisesse construir, teria de edificar um terceiro andar e, uma vez construído, passava a ser condómina da parte que construísse, passando obrigatoriamente o prédio a estar sujeito ao regime da propriedade horizontal e a autora era apenas mais um condómino, com direito de propriedade superficiária sobre a fracção por si construída, mas que em nada poderia restringir ou limitar o direito de propriedade da ré sobre as restantes fracções;
- Com a constituição do direito de superfície nestes moldes, não perde a ré o direito de dispor sobre a coisa, como pretende a autora.

A Ré deduziu, ainda, no mesmo articulado, pedido reconvencional contra a Autora, alegando para tanto que:
- Na escritura celebrada entre a Autora e a Ré instituiu-se a favor da primeira as faculdades de construir e manter obra sobre o prédio, o que se afigura contrário ao regime decorrente do art. 1524° do Código Civil que não admite que se estabeleçam cumulativamente estas duas faculdades, contrariamente ao que sucedia no âmbito da Lei n° 2030°, nomeadamente, no seu art. 21º, onde se definia o direito de superfície como "a faculdade de implantar e manter edifício próprio em chão alheio ... ".
- Nestes termos, o objecto do acto que instituiu o direito de superfície a favor da autora tal como consta da escritura pública é nulo, porque ilegal, violando o art. 1524°, não podendo, por isso, produzir quaisquer efeitos.
Terminou a Ré, pedindo seja julgada procedente por provada a reconvenção, declarando-se nulo o acto que instituiu o direito de superfície a favor da autora, determinando-se, consequentemente, que a autora/reconvinda, entregue à ré/reconvinte, o prédio do qual tem a posse ao abrigo do contrato cuja nulidade do objecto se peticiona.

A Autora apresentou articulado de réplica, respondendo à excepção de ilegitimidade suscitada pela ré, bem como ao pedido reconvencional contra si deduzido.
Quanto à excepção dilatória de ilegitimidade, a Autora admitiu a necessidade de chamar a “C”, à presente acção, para que esta possa produzir o seu efeito útil tendo em conta o pedido formulado na petição inicial.
Assim, visando sanar a excepção de ilegitimidade verificada, a Autora pediu a intervenção principal daquela instituição bancária, em conformidade com o disposto nos arts. 3250 n° 1, 3260 n° 1 al. a) e 3200 al. b), todos do Cod. Proc. Civil.
Quanto ao pedido reconvencional, diz a Autora em sua defesa e, em síntese, que:
- A interpretação do regime decorrente do art. 15240 do Código Civil não pode ser a que é adiantada pela Ré. Efectivamente, a única conclusão a retirar daquele preceito legal é a de que a lei, onde poderia apenas prever o exercício do direito de construir e manter obra por edificar, incluiu também na sua previsão, com a expressão de manter uma obra, a faculdade de que o direito de superfície se constitua também com o objectivo de se conservar, gozar e fruir uma obra já edificada;
- Mesmo que assim não se entenda, o negócio em causa não pode ser considerado nulo, pois face aos princípios da boa - fé que regem os negócios jurídicos, terá que ser adoptada uma interpretação restritiva e adaptada ao fim negocial invocado, que obviamente passaria por se entender que a faculdade concedida no negócio em causa se restringia à faculdade de manter o edifício que à data já se encontrava construído.
Terminou a Autora pedindo a improcedência do pedido reconvencional e a condenação da ré como litigante de má -fé.

Por despacho proferido a 7 de Março de 2002 foi admitida a intervenção da “C” como associada da ré, tendo sido ordenada a sua citação nos termos e para os efeitos do disposto no art. 327° nºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Civil.
Na sequência do referido chamamento, veio a “C”, apresentar a sua contestação, alegando em sua defesa e, em síntese, que:
- A 4 de Dezembro de 1998 celebrou com a ré “B”, um contrato de mútuo de 60 mil contos para apoio de tesouraria e obras de remodelação do comércio da mutuária, tendo o cumprimento do contrato ficado garantido por penhor, fiança e hipoteca sobre o prédio em causa;
- Previamente à concessão do empréstimo assegurou-se de que o imóvel se encontrava livre de ónus e encargos, e obteve a seu favor o registo de hipoteca através da C1 de 28.10.98;
- Em 9 de Maio de 2001 a “C” concedeu à “B”, um outro empréstimo, no valor de 10 mil contos, cujo cumprimento ficou assegurado por hipoteca sobre todas e cada uma das fracções do dito imóvel;
- As hipotecas encontram-se registadas na Conservatória do Registo Predial;
- A “C” é credora da ré em virtude dos financiamentos que lhe concedeu e que não estão pagos, e as dívidas gozam das garantias reais de hipoteca sobre as fracções autónomas resultantes da constituição e registo da propriedade horizontal sobre o prédio;
- O registo inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem, como decorre do disposto no art. 6° n° 1 do Código de Registo Predial e o art. 5° do mesmo Código refere que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do registo;
- As hipotecas a favor da “C” sobre as fracções e o direito de superfície a favor da autora são direitos incompatíveis, prevalecendo os registos das hipotecas sobre o registo do direito de superfície, devido à sua anterioridade.
Terminou, pedindo seja julgada improcedente a presente acção e que sejam mantidos os registos das hipotecas C1 e C2, sobre todas as fracções do prédio em causa e o registo da propriedade horizontal.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, em que se decidiu:

Pelos fundamentos de facto expostos e no âmbito do quadro legal traçado, julgo parcialmente procedente por provada a presente acção e, em consequência decido:
A) Declarar a ilegitimidade substantiva da ré para requerer a desanexação por fraccionamento do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº 645/Freguesia de …, requerido nos termos do pedido de registo apresentado nesta Conservatória sob o n° 2 de 28 de Outubro de 1998;
B) Declarar a ilegitimidade substantiva da ré para requerer a rectificação de área do mesmo prédio, requerida nos termos do pedido de registo apresentado na Conservatória, sob o n° 3, de 18.01.01;
C) Julgar improcedentes os demais pedidos formulados pela autora;
D) Julgar improcedente por não provado o pedido reconvencional deduzido pela ré "”B” contra a autora, absolvendo esta última desse pedido;
E) Julgar improcedente o pedido de condenação da ré “B” como litigante de má fé.
Inconformada, veio a “A” interpor, a fls. 529, recurso de apelação, cujas alegações de fls. 608 a 623, terminou com a formulação das seguintes conclusões:
1. Na sentença de que ora se recorre a Mma. Juiz a quo, não obstante reconhecer a nulidade dos negócios levados a cabo pela R., entendeu não poder declarar a mesma - por considerar não constar dos autos qualquer referência expressa aos respectivos títulos - nem poder ordenar o cancelamento dos registos inerentes, por força da aplicação dos artigos 5° e 17°, n.º 2 do Código de Registo Predial, os quais consagram a protecção dos terceiros de boa-fé que sejam titulares de registo anterior;
2. No que concerne à questão da não identificação dos respectivos títulos, entende a A. que a identificação expressa dos pedidos de registo, bem como os registos a que estes deram origem que permitiu, aliás, o registo da presente acção - é suficiente para efeitos da declaração das nulidades invocadas, e já reconhecidas nos presentes autos, uma vez que a referência aos mesmos individualiza de forma inequívoca e inconfundível os negócios em questão, pelo que não deverá um argumento tão formalista impedir que se faça verdadeira justiça material. Além de que, no caso em apreço, essa omissão não se verifica em relação a todos os títulos, uma vez que na Contestação por si apresentada a Interveniente juntou como Docs. n.º s 1 e 2 as escrituras públicas que titularam a constituição das hipotecas;
3. Já no que concerne ao entendimento de que por força da protecção dos direitos de terceiros de boa-fé não era possível cancelar os registos a que os negócios nulos deram origem, considera a A. que também aqui, e salvo o devido respeito, andou mal a Mma. Juiz a quo ao ter considerado que no caso em apreço a Interveniente não tinha de sujeitar ao prazo de consolidação de 3 anos, por se estar no campo de aplicação do artigo 17°, n.º 2 do Código de Registo Predial;
4. É que, ao tomar a sua decisão, a Mma. Juiz a quo não levou em linha de conta a existência de outros Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, os quais consideram que o artigo 17°, n.º 2 tem de ser interpretado em conjugação com a totalidade do artigo 291° do Código Civil - uma vez que, como também já foi decidido pelo mesmo Tribunal Superior, nenhum dos seus números se pode considerar tacitamente revogado pela entrada em vigor do Código de Registo Predial - donde resulta que o terceiro adquirente de boa-fé se tem de sujeitar sempre ao "purgatório" dos 3 anos, quer se esteja no âmbito do artigo 291°, quer se esteja no âmbito do artigo 17°, n.º 2;
5. Tal posição é, salvo melhor opinião, a que melhor coordena a interpretação das normas em questão com o sistema jurídico no qual se inserem, uma vez que se trata de um sistema jurídico caracterizado por uma forte prevalência da titularidade substantiva sobre os interesses do tráfego jurídico, em que os direitos reais se transmitem por mero efeito do contrato, tendo o registo efeitos meramente declarativos;
6. É certo que do outro lado estão importantes interesses de publicitação pública, mas é exactamente para se acautelar esses interesses que a lei admite que passados 3 anos os direitos de terceiros adquirentes de boa-fé com registo prioritário se consolidam definitivamente, não podendo mais ser atacados. Os 3 anos constituem exactamente a forma que o legislador encontrou de obter um equilíbrio entre os interesses da titularidade substantiva e os interesses da fé pública registral;
7. E, contrariamente ao que possa parecer à primeira vista, a sujeição ao "purgatório" dos três anos não constitui qualquer ofensa ao registo predial, mas representa antes "uma primeira e significativa conquista do registo contra o regime tradicional da nulidade ou anulação, na medida em que permite ao titular da inscrição efectuada no registo, embora só a partir de certo momento posterior à conclusão do contrato nulo ou anulável, fazer prevalecer o seu direito (real) referente ao imóvel ou ao móvel sujeito a registo sobre o direito, relativo à mesma coisa, do beneficiário da nulidade ou anulação." - Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 118, páginas 310 e 311;
8. De qualquer forma, mesmo que o entendimento supra descrito não venha a ser sufragado - o que não se admite e apenas se concede por mera cautela de patrocínio - a verdade é que no caso em apreço o "prazo de consolidação" dos 3 anos seria sempre aplicável por força do facto de estarmos perante situações abrangidas pelo 291 ° do Código Civil e não pelo 17°, nº 2 do Código do Registo Predial;
9. De entre os vários critérios propostos para a distinção dos campos de aplicação dos artigos 291°, n.º 1 e 17°, n.º 2, entende a A. que aquele que melhor resolve o problema da diferença de regimes (isto, naturalmente, caso se entenda que os regimes são distintos) é o que estabelece que o 291°, n.º 1 se aplica às invalidades substantivas - que são aquelas que estão em causa nos presentes autos - enquanto o 17°, n.º 2 se aplica às invalidades registrais;
10. A favor deste critério jogam, no entender da A., a inserção sistemática das normas em questão, a letra do 17°, n.º 2 que fala em "nulidades do registo" e não em nulidades dos factos subjacentes ao registo e ainda o facto de o critério em questão ser o mais coerente com o ordenamento jurídico no qual as normas se inserem, uma vez que reserva a aplicação do 17°, n.º 2 - cujo o regime, isoladamente considerado, constitui um importante desvio ao sistema jurídico envolvente - às invalidades que se podem denominar de "invalidades menores";
11. Contra o critério proposto pelo Acórdão do STJ datado de 14/06/2005 - segundo o qual a aplicabilidade de um ou outro artigo varia consoante o negócio inválido tenha sido registado ou não - joga o facto do registo prévio do direito adquirido pelo terceiro através do negócio inválido constituir condição sine qua non da aplicação tanto do artigo 291º, como do artigo 17°. n.º 2, pelo que não faz sentido pensar-se na aplicação de qualquer um destes artigos sem que preexista o registo do negócio inválido;
12. Por seu turno, contra o critério proposto pela Conservadora Isabel Pereira Mendes - de acordo com o qual o artigo 291°, n.º 1 só será aplicável caso inexista uma aparência registral, consubstanciada no registo de aquisição anterior a favor do transmitente - joga o facto do referido critério aniquilar, quase por completo, a aplicação do artigo 291º, n.º 1 do Código Civil, uma vez que, por força da vigência do princípio do trato sucessivo, é praticamente impossível verificar-se o requisito do registo prévio do direito do terceiro (exigido tanto pelo 291°, n.º 1 como pelo 17°, n.º 2) sem que o bem em causa esteja inscrito em favor do transmitente;
13. Por tudo o que aqui ficou exposto, deverá considerar-se que, tendo a presente acção sido proposta e registada dentro dos 3 anos posteriores à conclusão dos negócios inválidos, os efeitos retroactivos das nulidades reconhecidas nos presentes autos são sempre oponíveis à Interveniente, seja por via do entendimento de que o "purgatório" dos 3 anos se aplica tanto às situações abrangidas pelo 291° como às situações abrangidas pelo 17°, n.º 2, seja por via do entendimento de que as invalidades substantivas caiem no âmbito de aplicação do artigo 291 ° do Código Civil e não no campo de aplicação do referido artigo 17°, n.º 2;
14. Por último, uma vez que nas presentes alegações de recurso se suscitam apenas questões de direito - as quais não têm sempre sido decididas de forma uniforme pelo Supremo Tribunal de Justiça - e dado que se encontram preenchidos os restantes requisitos previstos no artigo 725° do Código de Processo Civil, requer-se, muito respeitosamente e nos termos da referida norma legal, a V. Exa. se digne ordenar a subida imediata do presente recurso para aquele douto Tribunal Superior, passando o presente, em consequência, a processar-se como revista.
Termos em que, depois de remetidos os autos directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, deverá ser concedido total provimento ao presente recurso, devendo em consequência a decisão de que ora se recorre ser alterada no sentido de passar a declarar as invalidades reconhecidas e de passar a ordenar o cancelamento dos registos identificados na Petição Inicial, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!"

Inconformada, veio a Ré “B” interpor, a fls. 534, recurso de apelação, cujas alegações de fls. 591 a 603, terminou com a formulação das seguintes conclusões:
"1. Os factos provados nos n° 19 a 23 da douta sentença levam-nos a concluir que as partes outorgantes da escritura - Apelante e Apelada “A” - quiseram convencionar que o direito de superfície por ela instituído se restringia apenas à parte do prédio afecta ao posto de abastecimento de combustíveis - rés-do-chão com oito compartimento - hoje correspondente à fracção A, e não ao prédio todo, como a douta sentença o considerou.
2. Na verdade, o facto de antes da escritura já existir naquele local - logradouro de frente do prédio - um posto de abastecimento de combustíveis com o apoio de vários compartimentos do rés-do-chão: estação de serviço, duas casas de banho, café bar, restaurante, etc., no total de oito divisões e depois da realização da escritura o posto continuou a desenvolver a sua actividade naquele local e bem assim o facto da “A” sempre ter possuído apenas aquela parte do prédio - hoje correspondente à fracção A - sem qualquer alteração, leva-nos a admitir que o direito de superfície apenas se restringe àquele local (cfr. pontos nº 19, 21 e 23 dos factos provados).
3. A estes factos acresce um outro de enorme relevância que nos leva à mesma conclusão: o preço pago pela Apelada “A” à Apelante pela constituição do direito de superfície: Esc. 6.000.000$00 (cfr. ponto n° 5 dos factos provados).
4. Considerando que o prédio está hoje todo hipotecado à Apelada “C” para garantia do empréstimo de valor superior a Esc. 100.000.000$00/€ 500.000,00 e considerando que a garantia real da hipoteca é realizada por valor, pelo menos, suficiente para garantir o pagamento do empréstimo, parece-nos evidente que se as partes convencionaram o preço de Esc. 6.000.000$00 nunca o mesmo poderia ser atribuído à constituição do direito de superfície pelo prédio todo, mas apenas a uma parte.
5. No caso considerando que a vertente do direito de superfície instituído a favor da Autora ora Apelada - é a manutenção de um posto de abastecimento de combustíveis e considerando que sempre tem estado na fracção A, é óbvio que o preço convencionado pressupõe a vigência do direito de superfície apenas em referência à fracção A.
6. Da análise de todos estes factos constantes dos pontos nº 19 a 23 e 1, 5, 12, 14 e 15 da matéria de facto provada obrigava que a douta sentença tivesse procurado indagar a vontade das partes nos termos do art. 393° n° 3 do C. C. com recurso a elementos exteriores ao contexto do documento e não apenas à letra do texto da escritura. Na douta sentença apesar de se invocar o preceito não tem reflexo no decidido, pois se não ponderou o peso da factualidade atrás referida na interpretação da vontade das partes.
7. Entendemos por isso que da análise de todos estes factos a prova produzida em juízo leva-nos a concluir que as partes outorgantes da escritura quiseram restringir a constituição do direito de superfície nela instituído não à totalidade do prédio mas apenas quanto ao espaço do rés-dochão com todos os compartimentos, hoje correspondente à fracção A. A douta sentença assim não entendeu, efectuando uma errada valoração da prova e a sua respectiva qualificação jurídica que implica a sua revogação.
8. A finalidade da constituição do direito de superfície é apenas a de permitir à Apelada “A” - manter o posto de abastecimento de combustíveis naquele local e não qualquer outro, pelo que é um elemento indissociável de determinação do âmbito do direito de superfície.
9. O argumento vertido na douta sentença de que o direito de superfície implica a possibilidade de Apelada poder ampliar o posto independentemente de até à presente data o não tenha feito, não colide com a posição da Apelante admitindo a ampliação desde que seja dentro da área afecta ao posto, hoje a fracção A.
10. Resulta da matéria de facto provada nos pontos n° 19 a 23 que no espaço aí identificado foi onde sempre a Apelada tem mantido a exploração do posto de abastecimento de combustíveis e tem sido sempre apenas essa parte do prédio que, ao abrigo do direito de superfície, vem sendo possuído pela Autora, ora Apelada e não qualquer outra.
11. Além do mais, nos termos dos pontos nº 19 a 23 dos factos provados, considerando a finalidade da constituição do direito de superfície - manutenção de um posto de abastecimento de combustíveis - para o cumprimento da mesma a Autora, ora Apelada, apenas necessita do espaço afecto ao posto hoje fracção A e não qualquer outra parte do prédio.
12. Da própria posição e comportamento da Apelada ao longo da vigência do contrato no âmbito do qual praticou actos - alegados ou identificados nos nº 19 a 23 dos factos provados que levaram a criar na Apelante a convicção de que o direito de superfície apenas se reflectia sobre a área do prédio afecto ao posto - hoje fracção A - e não sobre qualquer outra parte do prédio.
13. Nunca o comportamento da Apelada, tal como se documentou nos factos provados de 19 a 23 da douta sentença, demonstrou que o direito a favor dela constituído pela escritura se alargava a outras áreas do prédio, como sejam a garagem e os andares destinados à habitação que a Apelante destina ao seu uso pessoal.
14. Este comportamento criou na Apelante a convicção de que tal era a sua interpretação do texto da escritura, restringir o direito de superfície à fracção A, pelo que a atitude de vir agora pedir o reconhecimento da incidência do direito de superfície em todo o prédio se resume a atitude passível de qualificar como abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium previsto no art. 334° do C. C. que impede o exercício do direito.
15. A douta sentença, ao entender de modo diferente, violou assim o art. 3340 do C. C. que é de carácter oficioso e por isso importa que V. Exa. o reconheça e não permita que o direito de superfície abranja o prédio todo por o exercício desse direito ser abusivo e violador da lei.
16. Reconhecendo que o direito de superfície instituído a favor da “A” apenas incide sobre a fracção A, para que os actos praticados pela Apelante de rectificação das áreas do prédio e desanexação, tal como vem identificados na douta sentença nas alíneas A) e B), só serão passíveis de ser impugnados e declarada a falta de legitimidade da Apelante para a sua prática, se por eles a fruição do posto de abastecimento de combustíveis, que pelo direito de superfície a Apelada sempre teve e tem, tivesse sido posta em causa.
17. Dos factos provados, nomeadamente dos nº 21, 22 e 23, donde se refere que a “A” sempre manteve o posto e o vem possuindo, é óbvio que nunca a fruição permitida pelo direito de superfície foi posta em causa pelos actos praticados pela Apelante.
18. Como refere o Prof. Menezes Cordeiro: "a superfície não é um direito exclusivo", de facto não se limita à possibilidade de co-existência com outros direitos reais: pressupõe sempre essa existência. Quanto a nós o facto da Apelante ter praticado os actos que pela douta sentença se decidiu invalidar não prejudicou em nada a fruição do posto de abastecimento de combustíveis que o direito de superfície pressupunha.
19. A douta sentença alude aos artigos 939° n° 2 e 892° - 1ª parte do C. C. e conclui pela invalidade daqueles actos, violando o art. 1524° do C. C. na parte do direito de superfície que ao caso interessa, efectuando uma errada apreciação dos factos e também errada qualificação e aplicação da norma jurídica, pelo que se impõe que seja revogada com a absolvição total da Apelada.
20. A douta sentença julgou improcedente o pedido reconvencional, tendo decidido que "o direito de superfície pode abranger, simultânea e cumulativamente, as faculdades de construção da obra e da manutenção da obra já construída em terreno alheio".
21. A Apelante entende que a letra do art. 1524°, na parte que ao caso interessa, apenas a faculdade de construir/manter obra em terreno alheio, não autoriza o entendimento aí exposto e bem assim no texto da escritura, pois no art. 1524° - 1ª parte do C. C. pode-se ler que: " ... faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, obra em terreno alheio"; por sua vez a escritura prevê cumulativamente as duas faculdades: construir e manter.
22. O direito de superfície tal como o conhecemos hoje emerge do art. 21° da Lei 2030 que permite cumulativamente as duas vertentes, sendo certo que com a redacção dada pelo Código Civil o legislador introduziu a disjunção ou entre os vocábulos construir/manter com a finalidade de permitir apenas em regime alternativo a manutenção daquelas duas faculdades do direito de superfície.
23. Trata-se de norma com carácter imperativo que derroga nesta parte o princípio de autonomia contratual do art. 405° do C. C. e como tal não permite a cumulação das duas vertentes do direito de superfície (construir e manter) tal como a escritura o previu. A douta sentença assim não entendeu e julgou o pedido reconvencional improcedente.
24. Entendemos assim que a douta sentença violou o art. 1524° nº 1 do C. C. por ter feito uma interpretação do mesmo não consentânea com o espírito do legislador e com a letra lei, pelo que importa que V. Exa. julgue o pedido reconvencional procedente e revogue a douta sentença ora posta em crise.
Assim, dando provimento ao recurso e revogando a douta decisão recorrida, farão “Justiça”.

A “A” e a “C”, deduziram contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual:

1- Em 28 de Abril de 1975 foi registada a aquisição a favor da Ré “B” do prédio urbano, sito na Estrada Nacional número …, na freguesia e concelho de …, inscrito na matriz da referida freguesia, sob o artigo 2223, descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o número 00645/freguesia de …, por esta o ter comprado a “D” e mulher “E”.
2- Em 17 de Julho de 1991, por escritura lavrada de folhas nove, a folhas onze verso, do livro número três-J, das notas do … Cartório Notarial de …, intitulada "Constituição de Direito de Superfície", cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, outorgada pelos representantes da ré “B” e da autora foi declarado que aquela "é dona e legítima possuidora do prédio urbano, sito na Estrada Nacional número …, na freguesia e concelho de …, inscrito na matriz na dita freguesia sob o artigo dois mil duzentos e vinte e três, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número zero zero seiscentos e quarenta e cinco da dita freguesia e nela inscrito a seu favor pela inscrição G-um" e "que pela presente escritura a representada dos primeiros outorgantes (Ré) constitui a favor da representada dos segundos outorgantes (Autora) e esta aceita, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades o direito de superfície sobre referido o prédio com a faculdade de a mesma nele construir e manter, durante a sua vigência, o edifício e instalações para um Posto de Abastecimento de combustíveis."
3- Na mesma escritura consta que a autora "obriga-se a dar ao Posto ( ... ) por si, directamente ou por outrem, a utilização, que lhe é adequada, de comercialização e abastecimento de combustíveis e outros produtos.
4- Na escritura consta ainda que "o direito de superfície é constituído pelo prazo de trinta anos, susceptível de ser prorrogado" e que "finda a vigência deste contrato, a propriedade do prédio, objecto deste contrato, reverterá para a representada do primeiro outorgante (a Ré “B”). A reversão não abrange os bens mobiliários, maquinismos e outros equipamentos de propriedade da representada dos segundos outorgantes ( a autora) bem como as benfeitorias por esta efectuadas que puderem ser levantadas sem detrimento do prédio.
5- Ainda na mesma escritura consta que "o preço da constituição do direito de superfície é de seis milhões de escudos, pago integralmente neste acto".
6- O acto negocial constante da escritura acima referida foi objecto de registo predial, na competente Conservatária do Registo Predial de … em 20 de Agosto de 2001, registo que caducou em 17-10-2003.
7- A autora construiu, tem mantido e procedido à plena exploração, no logradouro da frente e alguns compartimentos do rés-do-chão do prédio referido em 1) e 2) um posto de abastecimento de combustíveis.
8- Em 28 de Outubro de 1998 a ré “B” requereu e procedeu através do registo predial, à desanexação de uma parcela de terreno, com a área de 50 m2, da área descoberta do prédio urbano identificado em 1), criando uma nova descrição predial para essa área de terreno.
9- Pedido de registo que deu entrada na Conservatória do Registo Predial, sob a apresentação nº 2 de 9.07.98, e que obtendo aí merecimento, teve como consequência o averbamento nº 1 à respectiva descrição predial nº 645/freguesia de …, a respectiva inscrição FI do "Ónus de não fraccionamento" e a abertura da descrição 02082/freguesia de …, respeitante ao novo prédio resultante dessa desanexação.
10- Em 18 de Janeiro de 2001 a ré “B” requereu a rectificação de áreas, coberta e descoberta, reduzindo as mesmas para 1103 m2 e 606m2, respectivamente, dando causa ao averbamento nº 3 da referida descrição 645.
11- Em 28.10.98, sob a apresentação nº 3, a ré “B” deu entrada na referida Conservatória do Registo Predial, ao pedido de registo da hipoteca que constituiu a favor da “C”, para garantia de empréstimo do montante máximo de capital e acessórios, até ao montante de 90.210.000$00.
12- Pedido que tendo sido deferido, deu causa ao registo lavrado nos termos da inscrição C-1, à referida descrição 645.
13- Em 15 de Março de 2001, sob a apresentação nº 4, a ré requereu o registo da constituição em propriedade horizontal do referido prédio urbano, pedido de registo esse que tendo sido deferido na dita Conservatória, deu causa ao averbamento nº 4, da mesma descrição 645.
14- Em 27.04.01, sob a apresentação nº 3, a ré “B” deu entrada na referida Conservatória do Registo Predial, ao pedido de registo da hipoteca que constituiu a favor da “C”, para garantia de empréstimo do montante máximo de capital e acessórios, até ao montante de 15.035.000$00.
15- Pedido que tendo sido deferido, deu causa ao registo predial lavrado nos termos da inscrição C-2, às descrições abertas em consequência do regime de propriedade horizontal constituído no referido prédio descrito sob o n° 645, respeitante às fracções autónomas designadas pelas letras A,B,C,D,E,F e G.
16- “C” em 04.12.98 emprestou à “B”, 60 mil contos, para apoio de tesouraria e obras de remodelação da estação de serviço, e bombas de gasolina tendo o empréstimo ficado garantido por penhor, fiança e hipoteca sobre o prédio descrito na CRP de … sob o nº 00645/170591, freguesia de …, e inscrito na matriz sob o art° 22223°, da referida freguesia.
17- Em 09.05.01, a “C” concedeu à “B” um outro empréstimo, no valor de 10 mil contos, garantido por uma hipoteca sobre todas e cada uma das fracções do dito imóvel (inscrição C1 de 27.04.04).
18- “C” concedeu os empréstimos e procedeu à constituição das hipotecas em causa na convicção de que não lesava interesses de terceiros, nomeadamente da autora.
19- Em 1975 a área construída do prédio urbano em causa nestes autos era constituída por rés-do-chão, primeiro e segundo andar.
20- Nessa altura, o Posto de Abastecimento de Combustíveis permaneceu instalado no logradouro da frente do prédio, utilizando também vários compartimentos do rés-do-chão, a saber: a estação de serviços, o compartimento de apoio oposto, duas casas de banho e compartimentos onde funcionava café-bar, restaurante com cozinha e casa de banho, num total de cerca de oito divisões.
21- Após a constituição do prédio em propriedade horizontal todo o espaço que era utilizado pelo Posto de Combustíveis manteve-se na totalidade afecto a essa exploração, correspondendo hoje à fracção A.
22- O posto de abastecimento está instalado no local onde sempre esteve e nunca o autor necessitou de outra parte do prédio para assegurar esse objectivo.
23- Pelo menos desde a outorga da escritura referida em 2). que a Autora apenas vem possuindo o rés-do-chão e o logradouro hoje correspondentes à Fracção A.

***
III. Nos termos dos art.°s 684°, n.º 3, e 690°, n.º 1, do C.P. Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.° 660° do mesmo Código.
As questões a decidir resumem-se, pois, a saber:
    A) Recurso da A. “A”: se a acção deve proceder na sua totalidade.
    B) Recurso da Ré “B”:
    a) qual o âmbito do direito de superfície constituído a favor da A;
    b) se deve ser julgado procedente o pedido reconvencional e revogar a sentença proferida.

Antes de entrar propriamente na matéria objecto dos presentes recursos, façamos um enquadramento jurídico das matérias que se discutem no âmbito deste processo.
Comecemos em primeiro lugar por fazer uma sucinta análise do direito de superfície.
Como se retira do instituto consagrado nos art.°s 1524° a 1542° do Cód. Civ., o direito de superfície, no que ao caso interessa, consiste na faculdade do seu titular construir ou manter obra construída em prédio alheio, perpétua ou temporariamente, ficando com o domínio exclusivo sobre essa obra.
Pode assim o titular do direito de superfície, em conformidade com o seu título constituído por alguma das formas previstas no art.º 1528° do Cód. Civ., construir uma obra de raiz em terreno alheio (art.o 1524º do Cód. Civ.), como construir sobre edifício já construído (direito de sobreelevação - art.º 1526° do Cód. Civ.), como ainda manter uma obra já construída que para o efeito seja ou esteja separada da propriedade do solo (art.º 1524° do Cód. Civ.).
E no caso do direito superfície ter por objecto a construção, esse domínio pode alargar-se para além da parte do solo necessária à construção, desde que tenha utilidade para uso da obra (artºo 1525° do Cód. Civ.).
Este domínio sobre a obra, constituindo um direito real autónomo, qual direito de propriedade sobre a obra, independente do direito de propriedade sobre o solo, que pode ser transmitido ou onerado pelo superficiário sem consentimento do fundieiro (art.o 1534° do Cód. Civ.), pese embora o direito de preferência deste no caso de alienação do direito de superfície (n.º 1 do art.º 1535° do Cód. Civ.).
E a obra, como bem refere Antunes Varela (in Cód. Civ. Anotado, Vol. III, 2a ed., pág. 590), tanto pode consistir num edifício qualquer que seja o fim a que se destine, mas qualquer outra actividade do homem que seja qualificada de obra, desde a construção de um muro à implantação de carris ou cabos eléctricos.
Normalmente, pela constituição do direito de superfície, paga-se um preço, doutrinariamente denominado cânon superficiário.
Se o direito de construir não se exercer durante o prazo de dez anos, após a sua constituição, o mesmo extingue-se, aplicando-se ao caso as regras da prescrição (art.º 1536, n.º 1, a), e n.º 3, do Cód. Civ.), nomeadamente a de que precisa de ser invocada pelo interessado para que opere (art.º 303° do Cód. Civ.)
Resta saber se é possível a constituição, pelo mesmo título, de mais do que uma modalidade de direito de superfície, ou seja, por exemplo, se pelo mesmo título se pode constituir um direito de superfície que implique a faculdade do direito de construir sobre um terreno alheio, sobre um edifício aí construído e da manter esse mesmo edifício.
Diremos desde já que a tal não obsta a lei.
A questão prende-se com a substituição da conjunção “e” que ligava as palavras construção e manutenção, no primeiro diploma do ordenamento jurídico português que veio expressamente a reconhecer o direito de superfície (Lei 2030, de 22 de Junho de 1948 - art.o 21 e sgs.), pela conjunção “ou” que veio a ser consagrada no art.° 15240 do Cód. Civ ..
A nosso ver, essa substituição de conjunção, só veio alargar o âmbito do instituto, permitindo, para além da construção e manutenção de uma construção em prédio alheio, a possibilidade de se constituir o direito de superfície sobre prédio já construído que para o efeito seja separado da propriedade do solo, mantendo essa construção, cujo domínio passará para o superficiário.
E este ou indica alternativa, sem exclusão, ou seja com possibilidade de cumulação (há outros ou para além do que representa, em matemática, um operador de disjunção!).
Aliás não se compreenderia que, devendo o direito adaptar-se às novas realidades emergentes, nomeadamente no plano económico, que exigem uma maleabilidade do direito por forma a não cristalizar os interesses económicas, se constituísse o direito de superfície sobre um prédio em que existem já construídas estruturas para a exploração de uma determinada actividade, por exemplo um posto de venda de combustíveis e reparação de automóveis e não se permitisse, pelo mesmo título, a par da manutenção da obra a construção de outras que o superficiário necessitasse para a sua exploração, que vão desde a ampliação do edifício, à realização de outras obras como muros, estação de lavagem de veículos, etc ..
Concluindo, nesta parte, é perfeitamente admissível a cumulação, no mesmo título constitutivo, de várias modalidades do direito de superfície.

Uma outra questão que importa analisar é o campo de aplicação do disposto no art.° 291° do Cód. Civ. e no n.º 2 do art.° 17° do Cód. Reg. Predial.
Tanto na doutrina, como na jurisprudência, não têm sido pacífica a delimitação do campo de aplicação dos dois preceitos.
As teses em confronto, privilegiam ou a titularidade substantiva ou a inscrição registral, conforme entendam que é essa a tendência de prevalência do ordenamento jurídico português.
No caso da primeira tese, o disposto no n.º 2 do art.° 17° do C.R.P. aplica-se apenas às nulidades registrais, enunciadas no art.° 16° do mesmo Código, e o disposto no art.° 291 ° do Cód. Civ., às nulidades substantivas, sendo que alguns (vide Oliveira Ascensão, Direitos Civil - Reais, 5ª ed., págs. 368 e sgs), vão mesmo ao ponto de considerar ser de aplicar analogicamente o disposto no n.º 2 do art.° 291° às nulidades registrais, uma vez que normalmente a nulidade registral é mais grave que a nulidade substantiva.
Defendendo a segunda tese, que dá uma especial prevalência ao campo de aplicação do n.º 2 do art.° 17° do C.R.P., restringindo o do art.º 291 ° do Cód. Civ., temos os que, como Isabel Pereira Mendes (vide Estudos sobre o Registo Predial, págs. 91 a 94 e 161 a 170), entendem que o art.º 291 se aplica apenas às invalidades substantivas, em que o adquirente registou a aquisição que fez ao transmitente, mas não existia registo prévio do direito transmitido a favor deste último, aplicando-se o n.º 2 do art.° 17°, a todos os casos em que haja registo prévio do direito a favor do transmitente.

Em nosso entender, esta última tese peca pelo exacerbar excessivo do papel do direito registral no ordenamento jurídico português, estendendo o âmbito de aplicação do art.° 17° do C.R.P., para além do que resulta da própria Lei registral.
Na verdade, embora a bondade da tese da citada ilustre jurista - que se nos afigura que irá no futuro moldar o ordenamento jurídico português, através da alteração das normas em confronto - desde logo esbarra com um escolho importante, o da enumeração taxativa do art.º 16° do C.R.P., que nos parece incontornável, em face da redacção do preceito, do que resulta não se dever incluir, no âmbito de aplicação do disposto no n.º 2 do art.° 17°, as nulidades substantivas, por não caberem no contexto do citado art.º 16°.
Por outro lado, o facto do nosso sistema registral ser meramente declarativo - o que implica que o registo apenas faz presumir que o direito existe, pertence ao titular inscrito e está completo, não assegura que o mesmo está conforme a realidade, e daí que esta presunção derivada do registo seja elidível - não se nos afigura bastante, para limitar o disposto no art.º 291 ° às invalidades substantivas, atinentes à aquisição de um direito, sem que o direito do transmitente estivesse registado, uma vez que por essa via se diminui a importância da prevalência da titularidade substantiva em detrimento da presunção registral, ou seja, vedar-se-ia a todos aqueles que adquiriram um direito sobre um determinado imóvel, mas que só registaram o seu direito e propuseram a acção impugnatória da transmissão de um direito incompatível com o seu (que resulta de um outro negócio, imediatamente anterior ao seu, nulo ou anulável), após o registo deste, de fazerem prevalecer tal direito, desde que intentem a acção impugnatória num prazo que o legislador civil entendeu ser o suficiente para que, se tal não ocorrer, esse direito incompatível se consolide no tráfico jurídico.
Aliás, com a obrigação indirecta da realização do registo, a atentar na segunda tese, o art.° 291 ° do Cód. Civ. esvazia-se de aplicação.
Acresce, como bem se refere no Parecer do Conselho Técnico, publicado a fls. 11 a 24, do Boletim dos Registos e Notariado, de Setembro de 2003, no nosso sistema jurídico prevalece a titularidade substantiva sobre os interesses do tráfego jurídico, o que aliás tem quartado a consagração de uma presunção iures et de iure da titularidade do direito inscrito registralmente.
Daí que se conclua que o disposto no art.o 2910 é aplicável às nulidades substantivas e o disposto no n.o 2 do art.° 170 do C.R.P. às nulidades consagradas no art.º 16° do mesmo Código.
Mas para que esteja definido o campo de aplicação, dos dispositivos em confronto, falta apurar quem são os terceiros de boa fé, que adquiriram a título oneroso, a que se referem ambos os preceitos.
Como referem Isabel Pereira Mendes (obra cit. págs. 165 e 166) e Ferreira de Almeida (Publicidade e Teoria dos Registos, pgs. 264 e sgs. citado na obra anterior a fis. 93), o terceiro de que falam os art.o 2910 do Cód. Civ. e 17°, n.o 2 do C.R.P., é o subadquirente, ou seja aquele que adquiriu um direito, nomeadamente sobre um imóvel, de um transmitente, estando o direito deste último fundado em negócio nulo ou anulável.
Têm pois de existir dois negócios sucessivos, o primeiro dos quais nulo ou anulável, para se considerar que existe um terceiro subadquirente, cujo direito é incompatível com o direito transmitido pelo primitivo transmitente desse direito a um outro adquirente.
Mas se é assim nos negócios translativos, como acontecerá quando o negócio nulo ou anulável, é um negócio unilateral?
Neste caso, apesar de haver dois negócios sucessivos, o primeiro é um negócio unilateral, e por isso, não existe verdadeiramente um subadquirente, porque o transmitente dos dois negócios incompatíveis é o mesmo.
Mas será que o requisito essencial para a aplicação do disposto nos n.ºs 2 do art.° 17° e do art.° 291°, é a existência da figura do subadquirente, ou apenas a existência de dois negócios sucessivos, um dos quais, o primeiro, é nulo ou anulável, sendo o segundo, o em que intervém o adquirente de boa fé a que se reportam os citados artigos?
É certo que a doutrina consultada e citada se reporta sempre à figura do subadquirente, porque na maioria dos casos o negócio nulo ou anulável é um negócio translativo.
Mas compulsado o teor dos art.°s 17°, n.º 2 e 291°, verifica-se que os mesmos aludem a um terceiro de boa fé, ou seja a um adquirente que não participou no negócio nulo ou anulável, não exigindo que o negócio nulo ou anulável seja um negócio translativo, não havendo pois fundamento para que não possa ser um negócio unilateral.
Mais, não se exige que o transmitente directo dos direitos incompatíveis seja o mesmo.
Podemos assim concluir que o requisito essencial para a aplicação tanto do art.° 17°, n.º 2 do C.R.P., como do art.º 291 ° do Cód. Civil, é a existência de dois negócios' sucessivos, sendo o primeiro nulo ou anulável.
E o terceiro de boa fé, que adquiriu por negócio oneroso, a que se reportam esses artigos, é um terceiro em relação ao negócio nulo ou anulável, independentemente deste ser um negócio unilateral ou translativo, cuja aquisição, na cadeia de transmissão do direito, sucede, no imediato, ao negócio nulo ou anulável.
Quando assim não ocorra, ou seja quando a situação não couber no âmbito dos citados dispositivos, temos de nos socorrer do disposto nos art.°s 5°, 6°, 7° e 8° do C.R.P., onde se estabelecem os direitos de terceiros (terceiros civis) que adquiriram do mesmo transmitente direitos incompatíveis.
Nos termos dos art.os 5° e 6° do C.R.P., perante dois direitos incompatíveis sobre o mesmo bem, prevalece o primeiro inscrito, mesmo que substancialmente inválido, daí resultando que esse direito existe e que pertence ao titular inscrito.
No entanto, tal presunção pode ser destruída, pela declaração de invalidade do negócio que lhe serviu de base e consequentemente cancelado tal registo, com as atinentes consequências.

Feito este pequeno intróito, cabe descer ao objecto deste recurso e apreciá-lo.

Em face do documento de fls. 13 a 19, e do teor do ponto 2 da matéria de facto assente, por força de contrato vazado na escritura pública, foi constituído a favor da ora A “A” um direito de superfície sobre o prédio aí identificado, com a faculdade de aí construir e de manter o edifício e instalações para um posto de abastecimento de combustíveis (prédio urbano aí referenciado, que está melhor descrito na certidão de fls. 20 a 22 dos autos) .
Por via do citado contrato, e atento o que acima dissemos sobre a possibilidade de cumulação de modalidades do direito de superfície, é evidente que o contrato em apreço é perfeitamente válido.
Resta saber qual o domínio que foi adquirido pela ora A “A”.
Resulta do texto do contrato, que foi constituído a favor da ora A "o direito de superfície sobre o referido prédio" identificado na primeira parte da escritura, por remissão para a descrição predial, que consta da certidão de fls. 20 a 22 dos autos, "com a faculdade de a mesma nele construir e manter, durante a sua vigência, o edifício e instalações para um posto de abastecimento de combustíveis". Mais se fez consagrar que a ora A se obrigou a dar ao Posto referido, por si ou por terceiros, a utilização atinente à comercialização e abastecimento de combustíveis e outros produtos do seu comércio.
Perante o texto do contrato, a descrição registral do prédio e a matéria dada como provada cumpre tecer algumas considerações, com vista à sua interpretação.
A primeira questão que se põe é de saber porque é que, sendo o fim último da constituição deste direito de superfície a prossecução da actividade da ora A “A”, por via da exploração do "Posto de Abastecimento", por si ou por terceiros, as partes contrataram o direito de superfície sobre o prédio e não apenas sobre o rés-do-chão do edifício e o logradouro?
A atentar no teor da descrição predial, os 1° e 2° andares do prédio em apreço, com duas fracções em cada andar, são destinados aparentemente à habitação, sendo certo que tais andares nunca foram utilizados ou ocupados pela ora A. “A”, restringindo-se a sua ocupação do prédio ao r/c e ao logradouro.
E porque é que o valor do cânon superficiário foi fixado em 1991 em 6.000.000$00, quando a avaliação feita pela “C” em 1998 de todo o prédio, permitiu o empréstimo de 60.000.000$00, dando de garantia, por hipoteca, o prédio em apreço, isto sem falar das acrescidas hipotecas, após a constituição do prédio em propriedade horizontal?
Não terá aquele valor, aparentemente diminuto, qualquer relação com a exploração do posto que veio a ser efectuada?
Tudo isto nos leva a conjecturar sobre o real sentido que as partes quiseram estabelecer quanto ao domínio cedido à ora A A”, porque o mesmo, nesta envolvência, não é de forma alguma linear.
No entanto, a Ré “B”, em vez de carrear para os autos factos, que uma vez provados, permitissem apurar da real vontade das partes documentada pela citada escritura, que explicitassem qual o real destino dado aos dois andares, quem aí habita, a que título o faz, no caso de serem fracções arrendadas a quem é paga a renda, etc., que permitissem uma interpretação, por via documental ou testemunhal do texto contratual, não enveredou, e mal, por esse caminho.
Ora perante a tão parca matéria que resulta dos autos, que logo ressalta da leitura atenta da base instrutória, mais propriamente do questionário, mais não nos resta que, atentar à letra da escritura e fazer a sua interpretação em conformidade com a que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, faz do texto contratual (art.° 236° do Cód. Civ.).
E esta, em face do que dissemos e perante a falta de resposta a algumas dúvidas que se podem levantar, não pode ser outra senão a que resulta do texto do contrato, ou seja, a de que o direito de superfície foi constituído sobre todo o prédio.
Daí que não haja qualquer abuso de direito da A ao deduzir a presente acção.

Definida a legalidade do contrato e o seu âmbito, resta analisar quais as suas implicações na disponibilidade do prédio em apreço.
Por via da constituição do direito de superfície, é retirado ao direito pleno sobre o prédio, que é o direito de propriedade, uma parte substancial, ficando este reduzido à propriedade do solo.
Constituindo o direito de superfície da ora A “A” o direito de construir e manter a obra já construída, tal direito abarca todo o prédio, porque a possibilidade construir obra, tanto pode ser efectuada em altura, sobreelevando o prédio existente, no caso de a tal não se opor o PDM em vigor, como de construir obras no logradouro, que tanto podem consistir em obras tão díspares como muros divisórios ou um túnel para lavagem de veículos.
É certo que, passados dez anos sobre a data da constituição do direito, se o titular não construir obra, extingue-se essa parte do direito de superfície, restando o direito de manter a obra existente.
Mas como tal extinção não foi invocada pela Ré “B”, este Tribunal não pode conhecer da mesma.
Daí que o direito da A a atender nestes autos, é o direito de superfície tal
como acima o delimitámos, ou seja, de construir sobre a totalidade do prédio descrito a fls. 21 e de manter a parte construída.
Perante este quadro, apreciemos os actos praticados pela Ré “B”, que estão enunciados nos pontos 8 e 9, 10 e 13, a saber, a desanexação de uma parcela do prédio em apreço, a rectificação da área do prédio remanescente e a constituição de propriedade horizontal do mesmo prédio. Como acima se disse, constituído o direito de superfície, o direito de propriedade que incidia sobre a plena propriedade ficou restringido ao direito de propriedade sobre o solo, ou seja ao dominus soli.
O domínio de tudo que extravasa essa propriedade do solo, deixou, durante o período de vigência do direito de superfície, de pertencer ao anterior proprietário, agora mero fundieiro, passando tal domínio para a exclusidade do superficiário e daí que o fundieiro não possa dispor desse direito.
Ao desanexar uma parcela do prédio em apreço, mesmo que se trate de uma mera fatia de terreno, a ora Ré “B” atentou contra o direito de superfície da A “A”, na vertente da disponibilidade para construção que tinha, por via do citado contrato, dispondo assim sobre coisa alheia.
O mesmo acontecendo com a constituição em propriedade horizontal do prédio que a Ré “B” deu de manutenção à A “A”.
Sendo aplicável ao caso em apreço, na falta de disposição especial sobre a matéria, o consagrado no Código Civil, quando ao contrato de compra e venda, por força do disposto no art.° 939° do Cód. Civ., com as necessárias adaptações, é evidente que estamos perante disposições sobre bens alheios, para as quais a Ré “B” carecia de legitimidade substantiva, o que conduz à nulidade das mesmas (art.° 892° do Cód. Civ.).
E quais serão as implicações, nos presentes autos, dessa falta de legitimidade substantiva?
Entendeu a Sr.a Juíza "a quo" limitar a decisão proferida nestes autos à simples declaração da falta dessa legitimidade substantiva, sem tirar daí as restantes consequências, na vertente da nulidade desses actos e do consequente cancelamento dos atinentes registos, por os documentos onde estão consubstanciados esses actos não estarem juntos ao processo.
No entanto, estando em face de direitos sujeitos a registo, que foram formalmente registados, e vigorando no nosso direito registral o princípio da legalidade (art.° 68° do C.R.P.), que se consubstancia na apreciação pelo Conservador do pedido de registo, em face do direito aplicável, dos documentos apresentados, da legitimidade dos interessados e da validade formal dos títulos e dos actos dispositivos neles contidos, é de presumir, não havendo indicação em contrário, que os actos registados estão em conformidade com os títulos apresentados, formalmente válidos.
Daí que a Sr.a Juíza "a quo" devesse ter ido mais longe e ter levado a ilegitimidade substancial da Ré “B”, para proceder aos actos acima enunciados, às suas últimas consequências, declarando a sua nulidade e ordenando o cancelamento dos registos efectuados como base nos mesmos, o que agora se decidirá.
E por via dessa nulidade e do consequente cancelamento dos atinentes registos, será arrastada a rectificação das áreas do prédio que perde todo o sentido.
Resta saber quais as consequências da constituição de hipotecas sobre o prédio em apreço.
A constituição de hipoteca sobre prédio parcialmente alheio, pelas razões acima aduzidas, traduz-se num negócio parcialmente nulo, por versar sobre coisa parcialmente alheia.
E dizemos parcialmente alheia, porque versando a hipoteca sobre a plenitude do prédio, ou mais propriamente sobre o direito de propriedade sobre o prédio, estando o direito da Ré “B” restringido ao direito de propriedade do solo desse prédio - porque no mais é alheio - as hipotecas só poderiam incidir sobre este direito.
No entanto, importa distinguir as duas hipotecas realizadas, porque têm um enquadramento jurídico diferente.
Em relação à primeira hipoteca, que resulta do contrato de mútuo junto aos autos a fls. 142 a 147 (o de 60.000.000$00), o negócio celebrado não tem a montante qualquer outro negócio nulo ou anulável, sendo ele próprio o negócio parcialmente anulável, na medida em que, por via do mesmo, se constitui uma hipoteca a favor da “C”, para garantia do pagamento do capital mutuado, sobre um bem que a Ré “B” não podia dispor na plenitude.
E assim não é aplicável ao caso o disposto no art.º 291 ° do Cód. Civil (nem o art.° 17°, n.º 2 do C.R.P.), pois este dispositivo só se aplica no caso de existirem dois negócios sucessivos, o primeiro dos quais seja nulo ou anulável, sendo o beneficiário da hipoteca terceiro em relação a esse negócio. E a “C”. não é um terceiro em relação ao negócio subjacente à constituição desta hipoteca.
Aplica-se sim disposto nos art.°s 5°, 6°, 7° e 8° do C.R.P, uma vez que, existe um registo de uma hipoteca constituída a favor da “C”, que pode ser destruído parcial ou totalmente, desde que o negócio subjacente, seja total ou parcialmente nulo ou anulável.
No caso dos autos, como atrás se disse, verifica-se que o negócio celebrado em primeiro lugar entre a A “A” e a Ré “B”, restringiu o direito desta última sobre o prédio em apreço, ficando o direito da Ré “B” limitado ao direito de propriedade do solo do referido prédio.
Ao constituir uma hipoteca sobre a totalidade do prédio, ou seja sobre o direito de propriedade plena, a “B” estava a onerar um bem que não lhe pertencia na totalidade, um bem parcialmente alheio, e daí que a mesma seja reduzível aos limites do direito que a Ré “B” tinha sobre o dito prédio, ou seja, este direito real de garantia, deve ficar reduzido à hipoteca sobre o direito de propriedade do solo do prédio em apreço (art.°s 939°, 832° e 292°, todos do Cód. Civ.).
Consequentemente deve ser parcialmente cancelado o registo de tal hipoteca, na parte que extravasa o direito que à data a Ré “B” tinha sobre o prédio em apreço.
Em relação à segunda hipoteca, tendo a A “A” impugnado o acto de constituição da propriedade horizontal e peticionado a declaração da sua nulidade e o consequente cancelamento do seu registo, com a destruição deste negócio unilateral, o direito da Ré “B” fica restringido ao dominus soli.
No entanto, em relação a esta hipoteca, mais propriamente em relação ao contrato que instituiu a hipoteca, existe a montante um negócio nulo, por ter disposto sobre bem alheio - estamo-nos a reportar à constituição do prédio em apreço em propriedade horizontal.
Existem assim dois negócios sucessivos, o primeiro dos quais é nulo por dispor sobre bem alheio, sendo a “C”, em relação a esse negócio unilateral, um terceiro de boa fé, que constituiu um direito real de garantia sobre as diversas fracções do prédio, a título oneroso, pelo que em tese o disposto no n.º 1 do art.° 291 ° do Cód. Civ. ser-lhe-ia aplicável.
No entanto, como se pode ver dos registos constantes da certidão de fls. 15º e sgs. a hipoteca sobre cada uma das fracções foi registada em 27/04/2001 e a presente acção de impugnação foi registada em 29/10/2001, pelo que a acção foi proposta e registada dentro dos três anos imediatos ao registo da hipoteca, e daí que a “C” não possa beneficiar do disposto no n.º 1 do art.° 291 ° do Cód. Civ. (n.º 2 do mesmo art.º).
Sendo nulo o negócio constitutivo do prédio em propriedade horizontal, esta nulidade arrasta os negócios que a jusante lhe estão directamente ligados.
No entanto, como acima dissemos, apesar da Ré “B” não poder constituir o prédio em apreço em propriedade horizontal, tinha um direito de propriedade sobre o solo do mesmo prédio, pelo que, pese embora a nulidade da constituição do prédio em propriedade horizontal, destruído este, mantém-se o direito de propriedade sobre o solo, pelo que, pelas razões acima expostas, esta hipoteca deve ser reduzida à hipoteca sobre o direito de propriedade do solo (art.°s 939, 892 e 292, todos do Cód. Civ.).

Concluindo, quanto ao recurso interposto pela A “A”, procede o mesmo nos seguintes termos:
a) Declara-se nula desanexação a que se reportam os pontos 8 e 9 da matéria assente;
b) Declara-se nula a consequente rectificação das áreas do prédio em apreço, a que alude o ponto 10;
c) Declara-se nula constituição do prédio em apreço em propriedade horizontal, a que se reportam os pontos 13, 14 e 15;
d) Ordena-se o cancelamento dos registos correspondentes:
1) à inscrição F-2 correspondente à Ap. 04/010315 (fls. 154) e todas as descrições, inscrições e averbamentos, atinentes à constituição do prédio em propriedade horizontal;
2) 0 averbamento AV.2 Ap. 02/281098 (fls. 153);
e) Declaram-se parcialmente nulos os contratos de mutuo juntos a fls. 142 a 146 e 149 a 151, na parte que em que é constituída hipoteca sobre a parte que excede o direito da Ré “B”, ou seja sobre a parte que excede o seu direito de propriedade sobre o solo, reduzindo-se as ditas hipotecas a esse direito de propriedade do solo do prédio descrito a fls. 153;
f)Consequentemente, ordena-se o cancelamento parcial:
1) da inscrição C-1 Ap. 03/281098 e do Av. 1 Ap. 03/150199 (conversão) (fls. 154);
2) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 156);
3) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 159);
4) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 162);
5) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 165);
6) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 168);
7) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 171);
g) Passando as duas hipotecas voluntárias a incidir apenas sobre o direito e propriedade do solo do prédio identificado a fls. 153.

No mais pela improcedência do recurso.

No que respeita ao recurso interposto pela Ré “B”, pela improcedência do mesmo.
***
IV. Pelo acima exposto, decide-se:
A) Recurso interposto pela A “A”:
1 )Pela procedência parcial do recurso e consequentemente:
a)Declara-se nula a desanexação a que se reportam os pontos 8 e 9 da matéria assente;
b )Declara-se nula a consequente rectificação das áreas do prédio em apreço, a que alude o ponto 10 da matéria assente;
c)Declara-se nula constituição do prédio em apreço em propriedade horizontal, a que se reportam os pontos 13, 14 e 15 da matéria assente;
d)Ordena-se o cancelamento dos registos correspondentes:
1) à inscrição F-2 correspondente à Ap. 04/010315 (fls. 154) e todas as descrições, inscrições e averbamentos, atinentes à constituição do prédio em propriedade horizontal;
2) 0 averbamento Av.2 Ap. 02/281098 (fls. 153);
e) Declaram-se parcialmente nulos os contratos de mutuo juntos a fls. 142 a 146 e 149 a 151, na parte que em que é constituída hipoteca sobre a parte que excede o direito da Ré “B”, ou seja sobre a parte que excede o seu direito de propriedade sobre o solo do prédio identificado a fls. 153, reduzindo-se as ditas hipotecas a esse direito de propriedade do solo do prédio;
f) Consequentemente, ordena-se o cancelamento parcial:
1) da inscrição C-I Ap. 03/281098 e do Av.l Ap. 03/150199 (conversão) (fls. 154);
2) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 156);
3) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 159);
4) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 162);
5) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 165);
6) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 168);
7) da inscrição C-2 Ap. 01/010427 e do Av- 02/010612 (conversão) (fls. 171);
g)Passando as duas hipotecas voluntárias a incidir sobre o direito de propriedade do solo do prédio identificado a fls. 153.
2) No mais pela improcedência do recurso.

B) Recurso interposto pela Ré “B”: . pela improcedência do recurso.

C) No mais manter a sentença recorrida.

Custas do recurso interposto pela A “A”, em 1/6 pela Apelante e na restante parte pelos Apelados.
Custa do recurso interposto pela Ré “B”, por esta.

Registe e notifique.
Évora, 25 de Janeiro de 2007