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PARTILHA EXTRAJUDICIAL
CUMULAÇÃO DE INVENTÁRIOS
Sumário
I - Tendo sido omitidos ou não tendo sido partilhados, em partilha extrajudicial, todos os bens do autor da herança, é possível exigir judicialmente a partilha desses bens . II – Sendo esses bens pertencentes à herança de cônjuge predefunto , e tendo vigorado na vigência do casamento o regime da comunhão geral de bens, pode e deve cumular-se aquele inventário com o do cônjuge supérstite.
Texto Integral
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Proc. nº 100/07-3ª
Agravo
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 138º, nº 5-CPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I – RELATÓRIO:
Em processo de inventário instaurado no Tribunal da Comarca de Elvas, por óbito de João Joaquim Garrancho Caramelo, a cabeça-de-casal, sua filha, Maria de Jesus Nabeiro Caramelo Garcia, requereu cumulação de inventários, ao abrigo do artº 1337º, nº 1, al. b), do CPC, de modo a incluir naquele processo o inventário por morte da sua mãe, Clarisse da Ascenção Azinhais Nabeiro Caramelo, enquanto cônjuge predefunto daquele inventariado.
No respectivo requerimento, alega que a sua mãe não fez testamento e deixou como únicos e universais herdeiros o seu cônjuge e aqui inventariado, João Joaquim Garrancho Caramelo, a sua filha e ora cabeça-de-casal, Maria de Jesus Nabeiro Caramelo Garcia, e seu filho, José Manuel Nabeiro Caramelo. Mais afirma que seus pais eram casados no regime de comunhão geral, pelo que a sua mãe deixou como herança a sua meação nos bens comuns do casal, devendo estes bens ser objecto do inventário a cumular.
Apesar do que se afirma nesse requerimento, constatou o tribunal a quo que se encontra junta aos autos uma escritura de «partilha e doações», lavrada no Cartório Notarial de Elvas, em 4/6/93, e em que outorgaram os referidos três herdeiros de Clarisse Caramelo e os cônjuges dos segundo e terceiro herdeiros, na qual se procede a uma «partilha da herança» daquela, afirmando que a mesma «é constituída» por certo prédio urbano, seguidamente objecto de adjudicação ao cônjuge supérstite, com tornas aos demais herdeiros, e subsequente doação do respectivo direito de propriedade aos filhos do segundo herdeiro.
Perante a existência dessa escritura, o tribunal notificou a cabeça-de- -casal para esclarecer a discrepância entre o teor dessa escritura e a afirmação no requerimento de cumulação de inventários de que estão por partilhar os bens de sua mãe. A cabeça-de-casal esclareceu que naquela escritura, não obstante o que ali se afirma, apenas se procedeu a uma partilha parcial da herança – concretamente, só do prédio urbano ali identificado –, ficando por partilhar a meação da mãe nos bens comuns do casal indicados, como tal, na relação de bens já apresentada no presente inventário e respeitante ao seu cônjuge e aqui inventariado.
Recaiu então sobre o requerimento de cumulação de inventários um despacho de indeferimento do mesmo. Aí se sustenta – para o que invoca a opinião de João António Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, e o disposto no nº 1 do artº 1395º do CPC – que essa cumulação, a admitir-se, se traduziria numa partilha adicional (dos bens omitidos na partilha extrajudicial por óbito da mãe, consubstanciada na referida escritura), a realizar em sede de processo judicial, a qual apenas será admissível no caso de a prévia omissão ter ocorrido em partilha judicial, mas já não quando essa omissão se deu em partilha extrajudicial. E concluiu-se que a requerente só por via extrajudicial poderia obter essa partilha adicional.
Inconformado com tal decisão, dela agravou a requerente, pugnando pelo deferimento da requerida cumulação de inventários. E culmina as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1º Requereu-se a cumulação de inventários e não uma partilha adicional.
2º A cumulação de inventários respeita necessariamente a duas heranças distintas, abertas por morte de pessoas igualmente diversas e está prevista no artigo 1337º do C.P.C.
3º A partilha adicional respeita a bens diversos da mesma herança, aberta pelo óbito da mesma pessoa e está prevista no artigo 1395º do C.P.C.
4º Os argumentos utilizados pelo M.mo Juiz a quo levam apenas a que se indefira, e bem, o pedido de partilha adicional...que se não formulou. Mas,
5º Recusar a cumulação de inventários violaria o disposto no artigo 1337º, nº 1, aI. b), do C.P.C., que por forma expressa a admite, e
6º Colocaria nas mãos de qualquer herdeiro a possibilidade de, bloqueando segunda partilha extrajudicial, forçar os outros a permanecer na indivisão contra o que preceitua o artigo 2101º, nº 1, do Código Civil.
7º Assim, a douta decisão recorrida viola por erro de interpretação os artigos 1337º, nº 1, alínea b), e 1395º do C.P.C. e o artigo 2101º, nº 1, do Código Civil, termos em que
8º Com o douto suprimento de Vs. Exas., que se pede e espera, deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que admita a requerida cumulação de inventários, com o que se fará, como sempre, Justiça.»
O agravado José Manuel Nabeiro Caramelo formulou contra-alegações em defesa da solução encontrada na decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
«1ª De acordo com a certidão carreada para os autos pela própria agravante e cabeça de casal, a 4 de Junho de 1993, no Cartório Notarial de Elvas, compareceu João Joaquim Garrancho Caramelo (inventariado no presente processo), seus filhos José Manuel Nabeiro Caramelo (agravado) e Maria de Jesus Nabeiro Caramelo Garcia (agravante e cabeça de casal) e respectivos cônjuges, para outorga de escritura de "Partilha e doações";
2ª Intervieram enquanto únicos herdeiros de sua mulher e mãe Clarisse Ascensão Azinhais Nabeiro Caramelo, em relação à qual ora foi requerido pela cabeça de casal a cumulação de inventários;
3ª Por todos, na mencionada qualidade, foi assumido “que assim são eles os interessados na partilha da herança da referida mulher e mãe que é constituída pelo seguinte prédio urbano que se destina exclusivamente a habitação...”;
4ª Tendo em conta que tal documento, faz "...a prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade oficial ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora" (nº 1 do art. 371º do Código Civil);
5ª Força probatória que só poderia ser ilidida com base na sua falsidade (nº 1 do art. 372º do Código Civil), que pela agravante nem sequer foi questionada;
6ª Razão pela qual outra decisão não poderia ser tomada pelo Meritíssimo Juiz "a quo" senão reconhecer que, de forma extrajudicial, pela identificada escritura se realizaram as partilhas decorrentes do falecimento de Clarisse Ascensão Azinhais Nabeiro;
7ª Não existindo bens a partilhar de Clarisse Ascensão Azinhais Nabeiro, bem decidiu o Meritíssimo Juiz ao indeferir o pedido de cumulação.»
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artos 660º, nº 2, e 664, ex vi do artº 713º, nº 2, do CPC).
Do teor das alegações da recorrente resulta que a única questão a decidir se resume a saber, em face do direito aplicável, se pode ser cumulado, a certo processo de inventário, outro inventário por óbito de cônjuge predefunto do primitivo inventariado, quanto a bens daquele que ficaram omissos em anterior partilha extrajudicial àquele respeitante.
Cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:
Como vimos, está sob recurso despacho que indeferiu requerimento de cumulação de inventários, sendo que o inventário que se pretende cumular respeita ao cônjuge predefunto (Clarisse da Ascenção Azinhais Nabeiro Caramelo) do primitivo inventariado (João Joaquim Garrancho Caramelo) e a bens seus que alegadamente ainda não foram partilhados. No relatório ficaram já enunciados os elementos que relevam para a apreciação do recurso: foi realizada escritura pública de partilha de bem pertencente a esse cônjuge predefunto; mas há ainda bens deste que ficaram por partilhar.
Quanto a este último ponto, refira-se ser de estranhar que o agravado afirme não haver mais bens desse cônjuge predefunto a partilhar, quando não nega que o regime de bens de seus pais era o de comunhão geral e não contestou expressamente a indicação, como tal, de bens comuns do casal na relação de bens do primitivo inventariado. Mas, atentando melhor nas alegações do agravado, percebe-se que pretende deduzir essa afirmação da mera declaração, na escritura de partilha supra referida, de que a herança de sua mãe seria constituída apenas pelo bem aí partilhado – o que, por figurar em documento autêntico, faria prova plena, nos termos do artº 371º do C.Civil.
Diga-se, desde já, que tal afirmação não tem qualquer fundamento – como logo emerge do próprio teor do nº 1 do artº 371º do C.Civil. É pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que a força probatória plena atribuída às declarações documentadas em documentos autênticos limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não se estendendo à exactidão ou veracidade das mesmas. Ou seja, no caso concreto, apenas se prova plenamente que as partes declararam perante o oficial público em causa (notário) que o referido prédio urbano era o único bem integrante da herança do cônjuge predefunto, mas não fica provado que aquela não conterá mais bens deste, nem fica precludida a possibilidade de serem partilhados outros bens seus.
Deve, portanto, partir-se da factualidade descrita pela agravante, que não foi relevantemente impugnada pelo agravado, quanto à existência de bens por partilhar integrados na herança de sua mãe. Admitindo, assim, que há outros bens (para além do que foi partilhado na referida escritura) que devem ser objecto de partilha – designadamente, a respectiva meação nos bens comuns do casal –, importa então apurar se essa partilha pode ter lugar em processo judicial (por via da cumulação de inventários) ou se ela deve ocorrer extrajudicialmente (como se sustenta na decisão recorrida).
Note-se que uma das hipóteses de cumulação de inventários ocorre precisamente – nos termos do artº 1337º, nº 1, al. b), do CPC – «quando se trate de heranças deixadas pelos dois cônjuges», cabendo aí as situações em que «se não procedeu a inventário por óbito do cônjuge predefunto» (neste sentido, JOÃO ANTÓNIO LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, vol. I, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 1990, p. 196). E esse autor afirma mesmo que no caso desse preceito legal «não pode a cumulação deixar de ser ordenada quando requerida» (ob. cit., p. 201).
Mas diz também esse autor que a omissão de bens da herança determina a partilha adicional dos bens e que «a partilha adicional só é consentida no caso de omissão em “partilha judicial”, ou seja, não é admissível quando a omissão se deu não em processo de inventário mas em partilha extrajudicial» (ob. cit., vol. II, p. 584). É precisamente neste trecho que se funda o despacho recorrido para sustentar que não é possível no presente processo de inventário proceder (por cumulação) à partilha dos bens omitidos do cônjuge predefunto, por ter já havido partilha de outro bem por via extrajudicial. Será possível deduzir daquelas palavras do autor uma tal asserção?
Dispõe o nº 1 do artº 1395º do CPC que «quando se reconheça, depois de feita a partilha judicial, que houve omissão de alguns bens, proceder-se-á no mesmo processo a partilha adicional, com observância, na parte aplicável, do que se acha disposto nesta secção e nas anteriores». O que neste preceito se afirma claramente é que a figura da «partilha adicional» em processo de inventário só faz sentido quando já houve uma partilha judicial anterior nesse mesmo processo – se não houve essa partilha judicial anterior, mas antes uma partilha extrajudicial, então quando haja necessidade de partilhar bens omitidos nessa anterior partilha, já não se pode falar em partilha adicional, mas (quando não haja acordo para partilha extrajudicial) mais propriamente em partilha em processo autónomo.
Nada mais que isto parece poder-se retirar do preceito em causa – o que significa que o conceito de «partilha adicional» não será mais que um conceito meramente processual, de que não se podem extrair consequências substantivas.
Este mesmo se afigura ser, aliás, o entendimento do próprio J. A. LOPES CARDOSO quando refere que quando se obtém o reconhecimento de omissão de bens no decurso do inventário «não se procede a partilha adicional, mas acusa-se a falta de descrição de bens» (ob. cit., vol. II, p. 583). E só uma tal leitura do entendimento desse autor explica a sua adesão à orientação do Ac. RL de 11/4/73 (in BMJ, nº 226, p. 266, citado na nota nº 3193 da página 583 do livro): «Se determinado processo de inventário veio a terminar por desistência de todos os interessados após a realização da partilha extrajudicial em escritura notarial, não pode mais tarde tal processo prosseguir para eventual partilha de bens omitidos nessa escritura, antes haverá que instaurar processo autónomo». Se o autor entendesse que, feita uma partilha extrajudicial, a partilha subsequente de bens omitidos nessa primeira partilha tivesse de ser feita por via extrajudicial, nunca poderia aceitar a afirmação produzida no aresto citado de que essa partilha subsequente pode ser feita em processo judicial (que, nesse caso, só seria autónomo, porque não houve anterior partilha no primeiro processo).
Aliás, diga-se que a hipotética tese (supostamente defendida pelo referido autor, segundo a decisão recorrida) de que a uma partilha extrajudicial não se poderia seguir uma partilha judicial dos restantes bens omitidos na primeira partilha, criaria uma situação (incompreensível e insustentável) de impossibilidade de proceder à partilha desses restantes bens sempre que a partilha extrajudicial fosse inviabilizada pela falta de acordo dos interessados – com o que ficaria gravemente afectado o direito de exigir partilha que assiste a qualquer interessado e consagrado no artº 2101º do C.Civil.
Seria, afinal, esta a consequência da posição sustentada pela decisão recorrida: quando nesta se declara que deve a requerente «diligenciar, querendo, pela realização extrajudicial da partilha adicional», olvida-se que essa partilha extrajudicial depende do acordo de todos os interessados, o qual poderá não ser obtido (ou até não ser viável no caso, pois se o fosse já provavelmente teria ocorrido), com o que ficaria bloqueado o exercício do mencionado direito de exigir partilha.
A concluir, diremos, pois, que na decisão recorrida se extrapola, a partir do texto de J. A. LOPES CARDOSO, para uma interpretação que o mesmo não comporta. Não pretende a requerente uma verdadeira e própria partilha adicional (que, como sugere a sua designação, pressupõe uma prévia partilha judicial), mas uma partilha judicial (lícita) de bens omitidos em anterior partilha extrajudicial – a qual, porque se refere a bens pertencentes a cônjuge predefundo, pode cumular-se ao inventário do cônjuge supérstite, uma vez que se verificam os pressupostos da cumulação de inventários, ao abrigo do artº 1337º do CPC.
Nesta conformidade, merece provimento o presente agravo, por se considerar que não havia motivo para o despacho de indeferimento sob recurso, que deverá ser revogado e substituído por outro despacho que admita a requerida cumulação de inventários e dê seguimento aos demais trâmites processuais daí decorrentes.
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III – DECISÃO:
Pelo exposto, concede-se provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, deferindo o requerimento da cabeça-de-casal e ora agravante, admita a requerida cumulação de inventários, ao abrigo do artº 1337º, nº 1, al. b), do CPC (de forma a juntar-se, ao inventário já pendente por óbito de João Joaquim Garrancho Caramelo, o inventário por óbito de Clarisse da Ascenção Azinhais Nabeiro Caramelo, enquanto cônjuge predefunto do primitivo inventariado, e quanto aos bens desta ainda não objecto de partilha), e que dê seguimento aos demais trâmites legalmente previstos.