AUDIÊNCIA PRELIMINAR
Sumário


I – A convocação da audiência preliminar pressupõe que, previamente, o juiz tenha analisado os articulados, pois só assim poderá convidar o seu aperfeiçoamento ou ser discutida uma excepção.

II – O convite para suprir deficiências ou imprecisões nos articulados bem cmo a concretização de matéria factual é um poder-dever do juiz, sob pena de a sorte de uma acção ficar dependente do juiz a quem for distribuída.

Texto Integral

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PROCESSO Nº 161/07

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

“A”, casado, residente na Rua …, nº 21, …, …, propôs acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra “B”, solteiro, maior, residente na Rua …, Lote A, …, … e “C” e mulher “D”, residentes na Rua …, Lote A, …, …, pedindo a condenação dos RR a pagarem-lhe a quantia de € 42.397,82, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.
Alega, resumidamente:
- era dono de um estabelecimento comercial do ramo da restauração, conhecido pelo nome de "Snack-Bar …", instalado na fracção autónoma designada por letra "B" cave Poente, sito em …, de sua propriedade.
- Por escritura de 15 de Junho de 1992, o A e o seu cônjuge venderam aos RR, a referida fracção, não estando o estabelecimento comercial incluído no negócio.
- Por documento particular de 1 de Junho de 1992, o A. cedeu aos RR. a exploração do referido estabelecimento.
- Tal contrato é nulo, pois, ao tempo, era exigível escritura pública para a cessão de exploração.
- Por documento denominado "Acordo de Princípio", A e RR. acordaram o trespasse do estabelecimento em causa, a ser efectuado após o trânsito em julgado da sentença que decretasse o divórcio entre o A. e o respectivo cônjuge e que corria seus termos na comarca de …
- Os RR. exploraram efectivamente o estabelecimento, e com os respectivos rendimentos auferiram os meios necessários para fazerem face às suas despesas domésticas e aumentar o acervo patrimonial.
- Pelo contrato de "Cessão de Exploração" foi acordado que os cessionários pagariam o valor global de 1.200.000$00.
- Pelo contrato de "Trespasse" foi ajustado que os RR. pagariam pela transmissão do estabelecimento 8.500.000$00.
- Desse preço os RR., apesar do recibo passado pelo A., a pedido deles, os mesmos nada pagaram, pois a declaração de recebimento de 4.000.000$00 não corresponde à verdade.
- De qualquer forma, os RR. passaram, desde a referida data a gozar o estabelecimento comercial como se proprietários fossem.
- E, sem autorização do A., procederam ao respectivo encerramento em 1 de Junho de 2002.
- Quer pela nulidade do contrato de cessão quer pela inexistência de trespasse, assiste ao A. o direito de ser indemnizado pelos prejuízos sofridos.
- O que é mais evidente tendo em conta que o estabelecimento, por ter sido desactivado, não poderá voltar a funcionar com igual valia para o Autor.

Contestaram os RR contrapondo que, com a compra da fracção, adquiriram também o estabelecimento, sendo que a cessão de exploração durou apenas 15 dias, ou seja, entre a data desse documento e a data da venda da fracção e do estabelecimento, com o que a arguida nulidade da mesma não tem qualquer efeito prático.
Por outro lado, o documento "Acordo de Princípio" foi feito no mesmo dia da escritura de compra e venda da fracção e destinou-se a ser apresentado na Câmara Municipal de … para requerer o averbamento do alvará de licença sanitária, visto que a burocracia autárquica obrigava a que, para o efeito, houvesse trespasse, o que o referido documento não configura.
No mais, invocaram a ilegitimidade da Ré mulher, alegaram que a declaração de recebimento pelo A. da quantia de 4.000.000$00 corresponde ao pagamento que lhe fizeram pela compra da existência do estabelecimento e que não vêem qual a razão da indemnização pedida pelo Autor, o qual não consegue demonstrar a existência de qualquer dano ou prejuízo que tenha sofrido e que lhe tenham sido infligidos pelos RR.
Terminam concluindo pela ilegitimidade da ré mulher e pela absolvição dos demais RR e impetrando a condenação do A. como litigante de má fé.

O A. replicou sustentando a legitimidade da Ré mulher e a ausência de litigância de má fé.

Convocada a audiência preliminar "a fim de se proceder à tentativa de conciliação das partes com vista à solução de equidade mais adequada aos termos do litígio, discussão das posições das partes, para concreta delimitação dos termos do litígio, com eventual prolação de despacho saneador e selecção da matéria de facto relevante e assente, bem como da que constará da base instrutória, nos termos do disposto no artº 508, n° 1. a, b, c), d) e e) do CPC", foi a mesma dada sem efeito e substituída, na data para que fora convocada (12.10.2006) pelo que se designou de saneador-sentença, em que se julgou verificada a excepção dilatória de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial com consequente absolvição dos RR. da instância.
Inconformado, interpôs o A. o presente recurso, que qualificou como de agravo, mas que veio a ser recebido como de apelação, a subir imediatamente, nos autos e com efeito devolutivo.
Ouvidos os RR. sobre a espécie de recurso, que o A., nas suas alegações, continuou a sustentar dever ser de agravo, foi proferido despacho pelo relator no sentido de, na verdade, se tratar de agravo, com subida imediata, nos autos e com efeito suspensivo.

Na sua alegação formula o A. as seguintes conclusões:
1 - A nova lei processual consagra o princípio da cooperação processual.
2 - Cabe ao tribunal, como decorrência desse princípio, o dever de convidar as partes para suprir as deficiências e irregularidades.
3 - Cumpre ao tribunal não proferir decisões surpresa, dando oportunidade às partes de sobre elas se pronunciarem;
4 - O enquadramento Jurídico dos factos subjacentes deve ser feito pelo tribunal. Jus novit curia ...
5 - A petição inicial é perfeitamente inteligível, respeitando o estatuído no artº 467º do C.P.C.
6 - De qualquer forma, verifica-se pelo teor da contestação que os RR. a entenderam convenientemente.
7 - Tendo o Senhor Juiz a quo entendido que a petição enfermava de ineptidão, deveria ter proferido um despacho de aperfeiçoamento.
8 - O despacho notificando as partes para a audiência preliminar, constitui caso julgado formal.
9 - O saneador sentença constituiu, in casu, uma "decisão surpresa".
10 - Foram violados, por erro de interpretação, os artºs 467º, 193º, nº 2, 508- A, nº 1 als b) e c) do C. P. Civil.
Termina impetrando a revogação do despacho recorrido, com todas as consequências legais.

Não foi oferecida contra-alegação.

Dispensados os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Porque já atrás se transcreveu o essencial dos articulados das partes, vejamos agora, em síntese os fundamentos da decisão recorrida, no que se corrigem diversos lapsos de escrita, designadamente quando se fala de autora em vez de autor, de réu em vez de réus.
- estamos perante uma acção declarativa de condenação em indemnização, pela nulidade de um contrato e inexistência de outro;
- não é possível alcançar o motivo pelo qual o autor refere a "inexistência" do trespasse;
- terá sido pela sua não celebração, simulação ou pela falta de forma pela qual foi celebrado;
- para que o tribunal possa decidir, necessário se torna que a realidade histórica seja narrada de forma clara e suficiente para ser percebida e, consequentemente, apreciada e decidida;
- acresce que, de acordo com as disposições conjugadas dos artºs 563°, 564° e 565º do C. Civil, para que haja lugar a indemnização, deve-se verificar um dano, que deverá ser concretizado, para que o tribunal possa aferir se existiu e resulta da conduta do réu;
- por isso, os danos devem ser individualizados, especificados e concretizados, não bastando uma alegação vaga de que o autor teve danos que se computam em determinado montante;
- ora, o autor apenas afirmou existirem danos e lançou um valor para os mesmos, não os distinguindo em termos de natureza, isto é, se são patrimoniais ou não patrimoniais;
- desconhece este tribunal se os mesmos respeitam a rendas que deixou de auferir, a lucros que deixou de ter se explorasse directamente o estabelecimento comercial, se a incómodos ou desgostos sofridos;
- o tribunal, perante esta omissão de alegação não sabe quais os danos sofridos, se existiram, se foram provocados pela conduta dos réus, de que montante são cada um deles, se existe uma correspondência real dos mesmos;
- está pois impedido de julgar com rigor e exactidão;
- tais alegações são essenciais ou estruturantes da causa de pedir, sem as quais o pedido do autor não pode proceder;
- importa, pois, concluir pela ineptidão da petição inicial,
- ineptidão que também se verifica por a petição pecar por defeito. Na verdade, embora a causa de pedir se fundamente em factos que conduzem a esse desfecho, o autor não pede a declaração de nulidade do contrato apenas solicitando que os RR sejam condenados a pagar-lhe uma quantia;
- Ora, para que se formule esse pedido, logicamente também terá de ser pedido e declarada a nulidade contratual da cessão de exploração.

Vejamos então.
Antes de mais, caberá observar, a propósito da conclusão 8ª que, perante a cronologia da marcha do processo comum de declaração, a convocação da audiência preliminar pressupõe, efectivamente, nos termos do n° 1 do art° 508°-A do C. P. Civil, que, previamente, o juiz analise os articulados na mira de ajuizar da oportunidade de ordenar as diligências a que se refere o artº 508°, entre elas o convite ao suprimento das excepções dilatórias ou ao aperfeiçoamento dos articulados.
Porém não é legítimo o entendimento de que a convocação de tal audiência, sem observância do artº 508°, constitua caso julgado formal quanto à regularidade dos articulados, posto que as nulidades processuais que possam ocorrer, sobretudo quando, como concluiu a decisão recorrida, se trate da nulidade de todo o processo, não são sanáveis de forma tácita.
Como se sabe, na vigente lei processual deixou de ter lugar o despacho liminar no âmbito do qual, antes da reforma operada pelos Dec. Leis nºs 329°-A/95 de 12 de Dezembro e 180/96 de 25 de Setembro, a petição deveria ser indeferida, designadamente por de ineptidão (artº 474° n° 1, al. a)), caso em que, nos termos do artº 476º, podia o autor apresentar nova petição no prazo de cinco dias, considerando-se a acção proposta na data da entrada em juízo da primeira.
Por outro lado, o despacho de aperfeiçoamento previsto no art° 477° destinava-se a suprir deficiências não enquadráveis no artº 474.
Com a citada reforma, a primeira vez que o juiz entra em contacto com o processo situa-se imediatamente após os termos dos articulados, portanto, numa altura em que sobre a petição inicial já se exercera o contraditório.
E como uma das finalidades dessa primeira intervenção consiste em providenciar pelo suprimento das excepções dilatórias (artº 508°, 1, a)), categoria em que se insere a nulidade de todo o processo, agora nos termos conjugados dos artºs 494° alínea b) e 193° n° 1, poderia pensar-se que o referido suprimento abrangeria tal vício designadamente quando se traduzisse em ineptidão. Só que, remetendo a referida alínea do artº 508° para o art 265°, logo se conclui que se refere apenas às excepções dilatórias inerentes à falta dos necessários pressupostos processuais, designadamente a legitimidade das partes.
Portanto, e salvo o caso previsto no n° 3 do artº 193°, ou seja, quando o réu
contesta arguindo a ineptidão por falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir (remissão para a alínea a) do n° 2), mas se vem a verificar que interpretou convenientemente a petição, a correspondente nulidade é insuprível, tal como já se verificava na lei processual anterior.
Neste contexto, poderia até entender-se que, por maioria de razão, a nulidade não devesse ser decretada quando, como no caso, não tendo sido arguida, se conclui que os RR. interpretaram convenientemente a petição.
De qualquer forma e com todo o respeito pela decisão recorrida, entende-se que não estamos, in casu, perante o vício de ineptidão.
É que se, com efeito, não se descortina a razão por que é alegada a inexistência do trespasse, se há deficiente narração da "realidade histórica", se não se concretiza o dano, a sua natureza e o facto que o gerou, enfim, se não foram alegados os factos geradores da obrigação de indemnizar, o que se verifica é insuficiência dos factos em que se alicerçam as pretensões, para além de que a nulidade de um contrato, designadamente por inobservância da forma legal é de conhecimento oficioso, nos termos do artº 286° do C. Civil.
Ora, para este caso, existe o remédio previsto no n° 3 do citado artº 508°, ou seja o convite "a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada" que não pode deixar de ser entendido como um poder-dever, sob pena de a sorte de uma acção estar dependente dos critérios seguidos por um concreto juiz quando outro rumo se lhe imprimiria se fosse distribuída a juiz diferente, da mesma ou de outra comarca.

Pelo exposto e embora por razoes não inteiramente coincidentes com as aduzidas nas conclusões da alegação, concedem provimento ao agravo e, consequentemente, revogam a decisão recorrida, que deve substituída por outra que, face às insuficiências detectadas, convide o autor a supri-las, em nova petição.
Sem custas.
Évora, 22 de Março de 2007