ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
FALTA DE RESIDÊNCIA PERMANENTE
Sumário


Justifica-se a resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de residência permanente se o arrendatário contrai casamento e passa a residir em casa do cônjuge, sita em outra localidade, onde passa a confeccionar e comer refeições, dormir, receber amigos, visitas e correspondência e para cuja freguesia altera o seu domicilio eleitoral, logo após o casamento, não obstante continuar a pernoitar e a confeccionar refeições dois ou três dias por semana no locado onde, há alguns anos, vivia, e permaneceu a viver, um seu filho, maior de idade.

Texto Integral

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PROCESSO Nº 245/07- 2

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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RELATÓRIO
No Tribunal de …, foi proposta por “A” contra “B” acção com vista à resolução do contrato de arrendamento do prédio urbano sito na Rua do …, nº , em …, concelho de … com fundamento em falta de residência permanente aí da inquilina.
Contestada a acção por impugnação, prosseguiu o processo a respectiva tramitação com realização da audiência de julgamento e sentença que a julgou improcedente e absolveu a Ré do pedido.
Inconformado, apelou o Autor para esta Relação, arguindo na respectiva alegação a nulidade por falta de gravação da audiência e impugnando a decisão jurídica dada pela 1ª instância, por entender que os factos provados deveriam conduzir à procedência da acção.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Remetido o processo a esta Relação, foi no despacho preliminar desatendida a arguição de nulidade por extemporaneidade e, seguidamente, corridos os vistos legais.
Nada continua a obstar ao conhecimento da apelação.
FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. O A. é dono e legítimo possuidor do prédio urbano sito na Rua do …, n° …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 01 098/220688;
2. Tal prédio foi adquirido pelo A. mediante a outorga de escritura de compra e venda, exarada no dia 5 de Fevereiro de 1999, no 2° Cartório Notarial de …;
3. Quando tal prédio foi adquirido pelo A., a Ré era arrendatária do mesmo;
4. Tal arrendamento tinha como fim exclusivo a habitação;
5. A Ré e “C” contraíram casamento um com o outro no dia 28 de Outubro de 2004;
6. Desde essa data, a Ré e o seu marido dormem 3 a 4 vezes por semana numa casa sita no Sítio…, na freguesia de …, a qual é pertença daquele;
7. Nos restantes dias da semana, a Ré e o seu marido dormem no arrendado, sito em …
8. A Ré recebe correspondência na casa sita no Sítio …;
9. A Ré recebe amigos e outras visitas na casa sita no Sítio …;
10. A Ré, quando aí pernoita, confecciona refeições na casa sita no Sítio …;
11. A Ré encontra-se recenseada na freguesia de … desde 9 de Novembro de 2004;
12. Em Outubro de 2004 a renda do arrendado era de € 5 (cinco euros);
13. “D”, filho da Ré, vive no arrendado pelo menos desde Dezembro de 2002,
14. Data em que se separou de facto da sua mulher, deixando a casa de ambos em … e passando a viver com a mãe no arrendado;
15. É no arrendado que o “D” dorme e toma refeições;
16. É no arrendado que o “D”, no âmbito do direito de visitas, recebe a sua filha menor.

Como factos não provados, ficou expressamente consignado que:
I. A Ré não dorme no arrendado;
II. A Ré não recebe correspondência no arrendado;
III. A Ré não cozinha no arrendado;
IV. A Ré não se desloca ao arrendado desde Outubro de 2004.

A matéria de facto não foi impugnada nem nela se descortinam vícios lógicos justificativos da intervenção oficiosa da Relação.

DE DIREITO
Consideremos, antes de mais, o objecto do recurso de apelação, através da delimitação proposta pelo recorrente com a síntese conclusiva da respectiva alegação e que é a seguinte, depois de liminarmente indeferida a arguição de nulidade:
- A acção foi julgada improcedente por duas ordens de razão não podia o douto tribunal ad quo ter julgado improcedente a acção.
- O douto tribunal recorrido ao decidir como decidiu, dando como provada a matéria de facto que deu, decidiu mal. Pois,
- O douto tribunal de 1ª Instância, em face da matéria que deu como provada deveria ter decretado a resolução do contrato de arrendamento sub judice e ordenando o respectivo despejo.
- Ao não fazê-lo, sempre com o devido e merecido respeito, o douto tribunal violou o preceituado na 2ª parte da alínea i), do artigo 64° da RAU, aprovada pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15/10. Dado que,
- De acordo com a mesma referida no ponto imediatamente anterior, o senhorio, in casu, o A., pode resolver o contrato de arrendamento, se o inquilino, in casu, a R., não tiver no arrendado residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia e desde que o imóvel seja destinado à habitação.
- O douto tribunal recorrido deu como provado que a R. dorme com o marido no arrendado 3 ou 4 noites por semana. Contudo,
- Tal prova, não pode levar à conclusão de que a R. tem residência permanente no arrendado. Até porque,
- Conjugada com a restante factualidade, dada como provada, tem que forçosamente levar à conclusão contrária. Na verdade,
- A R. foi inquilina no arrendado vários anos, sendo que a partir de, pelo menos Dezembro de 2002, passou com ela a residir o seu filho, “D”, que acabava de se separar da mulher e, passava com eles, uma filha menor do “D”, quando em regime de visitas. Contudo,
- A R. quando casou com “C”, em 28/10/2004 deixou de ter residência permanente no arrendado, dado que, passou a residir na casa do marido, sita em …, freguesia de …, tendo mandado para lá todos os seus pertences, passando para lá toda a sua vida familiar e social, não deixando, certamente, de por vezes, visitar o seu filho, que vive só, até para o ajudar no tratamento da roupa e arranjo da casa, podendo inclusive lá pernoitar alguma ou algumas noites. Mas,
- Se mantinha a residência permanente no arrendado com que finalidade alterou o recenseamento e a recepção da correspondência, tendo colocado uma caixa de correio em seu nome no aludido Sítio dos …?
- Ora não é por pernoitar nas noites na casa de habitação do filho que se pode concluir que a R. lá tem residência permanente, pois não é lícita essa conclusão. Pois,
- Todos os restantes factos dados como provados e não provados indiciam precisamente o contrário. Isto é,
- Que a R. não tem residência permanente no arrendado.
- Julgou assim incorrectamente, o douto tribunal recorrido, o facto da R. receber correspondência numa caixa do correio, em seu nome, no Sítio do …; o facto de a R. dormir com o seu marido, numa casa deste, sita no dito Sítio dos …; o facto da R. ter contraído casamento com o seu actual marido em 28/10/2004; o facto da R. confeccionar refeições, receber visitas e amigos na casa sita no Sítio dos …, pertença do marido; o facto da R. se encontrar recenseada na freguesia de …; o facto do filho da R. viver só no arrendado desde pelo menos, Dezembro de 2002.
- Se o douto tribunal ad quo tivesse julgado correctamente, tinha concluído pela decretação da resolução do contrato de arrendamento e consequente despejo.

Apreciando, pois:
A 1ª instância entendeu que a Ré dispunha de duas residências permanentes alternadas uma das quais no arrendado - sem qualquer hierarquização entre elas e julgou improcedente a acção.
Parece-nos, todavia, que menos acertadamente. Vejamos:
A única residência permanente da Ré, inquilina, era no arrendado até ao seu casamento em 28-10-2004.
A partir dessa data, passou a dormir e a confeccionar refeições, três ou quatro dias por semana, na casa de seu marido, em …, local onde também recebe amigos, visitas e correspondência, se bem que nos restantes dias da semana pernoite com seu marido no arrendado e aí confeccione refeições.
Concedendo que no arrendado continuasse a manter, não apenas um mero quarto de dormir e cozinha, mas a sua habitação montada ou instalada (mobilada), o certo é que a mudança operada na sequência do seu casamento e a sua nova habitação montada na casa de seu marido veio alterar o statu quo subjacente e pressuposto na celebração e na protecção do arrendamento para residência permanente do arrendatário e que era a sua necessidade de habitação.
A residência permanente é a casa em que o arrendatário tem o centro ou a sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica: a casa em que o arrendatário, estável ou habitualmente dorme, toma as suas refeições, convive e recebe a sua correspondência; o local em que tem instalada e organizada a sua vida familiar e a sua economia doméstica - o seu lar, que constitui o centro ou sede dessa organização, de onde sai para trabalhar ou desempenhar actividades sociais e aonde regressa, findo o trabalho ou essas actividades, para comer, descansar, passar os seus tempos livres, onde guarda os seus objectos pessoais e pertences, em suma, para a privacidade e intimidade da vida familiar, onde consta morar junto das diversas Instituições e Organismos - do fisco, do recenseamento, da saúde, da política e da polícia - e onde podem ser encontrados como moradores os que integram a sua família (cfr. Inocêncio Galvão Teles, CJ, 1989, tomo II, pág. 31; Aragão Seia, in "Arrendamento Urbano", 3ª ed. pg. 344 e Pais de Sousa, in "Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano", 6ª ed. pg. 217; Acs. do STJ de 5/3/85 e de 7/6/88, no BMJ, respectivamente, n.º 345, pág. 372 e n.º 378, pág. 672, e de 11/10/2001, na CJ - STJ -, ano IX, tomo III, pág. 69; da RL de 9/4/2002, na CJ, ano XXVII, tomo II, pág; 92; da RC de 11/1/2000, na CJ, ano XXV, tomo I, pág. 10; da RE de 12/6/97 e de 25/9/97, no BMJ n.º 468, pág. 493 e n.º 469, pág. 678; e desta Relação de 25/6/2002).
Deste modo, podemos dizer que são traços constitutivos e indispensáveis para o preenchimento do conceito de residência permanente, a habitualidade, a estabilidade e a circunstância de constituir o centro da organização da vida doméstica e do agregado familiar.
A residência pode ser habitual - e esta, por sua vez, pode ser também alternada - ou ocasional (art. 82° n° 1 e 2 CC) e ainda profissional (art. 83° CC).
Logo, não pode ser excluída a possibilidade de residências alternadas, em diferentes localidades, se servirem em paridade para a instalação da vida doméstica, com estabilidade, habitualidade e durabilidade.
Mas é indispensável que os senhorios, no momento da celebração dos contratos, tenham ou devam ter conhecimento dessa necessidade de dupla habitação do arrendatário por forma a garantir a reciprocidade e correspectividade das prestações ajustadas, designadamente quanto ao montante da renda convencionada.
Com efeito, é inquestionável que o arrendatário não deixa de ter residência permanente na casa arrendada para habitação, pelo simples facto de ter adquirido entretanto uma residência secundária ou acidental (para veraneio, para descanso semanal ou outros fins que não prejudiquem a afectação da residência principal); logo, o senhorio não pode invocar falta de residência permanente para obter a resolução daquele contrato.
Como também não pode invocar tal fundamento se, tendo já o inquilino residência permanente numa localidade e conhecendo ou devendo conhecer esse facto, aceitar celebrar contrato de arrendamento para habitação permanente alternada com essa noutra localidade.
Mas já poderá invocar a falta de residência permanente se a outra residência ainda não existia à data do contrato (ou se a sua existência lhe foi ocultada pelo inquilino).
É que "os senhorios podem ter fundadas razões para não consentirem que, contra as suas expectativas, a sua casa permaneça fechada durante três a quatro dias por semana, quinze dias em cada mês ou meio ano em cada ano de duração do contrato.
Por outro lado, também se compreende que a lei não dispense a tutela excepcional vinculística, própria do arrendamento para habitação, ao inquilino que ocupe simultaneamente duas ou mais casas alheias, quando o parque habitacional do país não chega para proporcionar uma só casa a todos aqueles que, não possuindo casa própria, pretendam habitar imóvel doutrem" (Cfr. Antunes Varela, RLJ 117, p. 176).
No caso em apreço, a conceder-se a dupla residência permanente do inquilino, esta é posterior ao contrato de arrendamento.
O que só por si é susceptível de legitimar ao senhorio a resolução do contrato de arrendamento, pois que nada justifica a imposição ao senhorio de um arrendamento celebrado para habitação permanente - com inquilino que então não tinha habitação - depois de este obter outra; este facto é susceptível de equiparação a uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar não cobertas pelos riscos próprios do contrato e ofensiva dos princípios da boa-fé, justificador da resolução do contrato (art. 437° nº 1 CC).
Mas nem sequer é líquida a dupla residência permanente da inquilina.
A residência familiar deve ser escolhida pelos cônjuges de comum acordo (art. 1673° nº 1 CC).
Ora, tendo contraído casamento em 28-10-2004, a Ré alterou o seu recenseamento eleitoral para a freguesia de … na área da qual se localiza o Sítio …, onde se localiza a casa de seu marido e onde passou a pernoitar e a confeccionar refeições alguns dias por semana, a receber correspondência, amigos e visitas.
Não revelará esta alteração do domicílio eleitoral subsequente ao casamento só por si um propósito de substituição e mudança de residência?
Com efeito, se continuava a residir no arrendado - é a Ré quem sustenta tal posição - e se os actos eleitorais têm realização esporádica com intervalos de anos, para quê a necessidade dessa alteração?
Sobretudo se ponderarmos a facilidade e frequência com que, afinal, se desloca à casa arrendada onde confecciona refeições, come e dorme durante cerca de metade da semana?
É óbvio que tudo inculca que a Ré deixou e quis deixar de ter a sua habitação permanente no arrendado para a passar a ter no denominado Sítio dos … que passou a ser o centro da sua nova vida familiar.
O contrato de arrendamento é tido como de eficácia reflexa sobre terceiros, pois que o uso do imóvel é conferido não apenas ao locatário, mas a todo o seu agregado familiar que habita com ele (Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., p. 411).
E, na verdade, nos arrendamentos para habitação, podem residir no prédio, além do arrendatário, todos os que com ele vivam em economia comum e um máximo de três hóspedes (art. 76° nº 1 RAU), considerando-se sempre como vivendo em economia comum, entre outros, os seus parentes ou afins na linha recta e as pessoas relativamente às quais por força da lei haja obrigação de convivência ou de alimentos (art. 76° n° 2 RAU).
São estas as pessoas que, por efeito reflexo do direito do arrendatário, podem residir no arrendado.
A relação entre o arrendatário e estas pessoas presume-se, pois, por força deste n° 2 do art. 76°, de economia comum.
Daí que o n° 2 do art. 64° do RAU exclua a virtualidade resolutiva da falta de residência permanente, entre outros, no caso de permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele convivesse há mais de um ano, ou seja, os terceiros para quem o arrendamento tem eficácia protectora.
Só que "não basta que no arrendado permaneçam esses familiares ou alguns deles.
Necessário se torna, ainda, a existência de um elo ou vínculo de dependência económica entre o arrendatário e eles ou a casa".
"Havendo desintegração do agregado familiar não existe causa impeditiva do direito de resolução do contrato de arrendamento, mesmo que na casa fiquem familiares constituindo um novo agregado familiar, pois o agregado familiar contemplado nesta alínea é o do arrendatário e não o constituído por familiares que dele de desagregaram (Cfr. Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 3a ed., p. 354-355).
Ora, não é concebível que a Ré, tendo contraído casamento e com isso constituído nova família, continuasse a manter a unidade familiar, constituída por ela e seu filho, sediada no arrendado.
Daí que procedam as conclusões da apelação, não podendo subsistir a sentença recorrida.

Em síntese:
Justifica-se a resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de residência permanente se o arrendatário contrai casamento e passa a residir em casa do cônjuge, sita em outra localidade, onde passa a confeccionar e comer refeições, dormir, receber amigos, visitas e correspondência e para cuja freguesia altera o seu domicilio eleitoral, logo após o casamento, não obstante continuar a pernoitar e a confeccionar refeições dois ou três dias por semana no locado onde, há alguns anos, vivia, e permaneceu a viver, um seu filho, maior de idade.
Com efeito, por via do seu casamento operou-se a constituição de um novo agregado familiar, pelo que cessou a unidade familiar com o seu filho, subjacente à ·eficácia impeditiva da permanência de familiares no arrendado relativamente à virtualidade resolutiva da falta de residência permanente.
ACÓRDÃO
Nesta conformidade, acorda-se nesta Relação em, julgando procedente a apelação, revogar a sentença recorrida e, com fundamento em falta de residência permanente, decretar a resolução do contrato de arrendamento dos autos e condenar a Ré no despejo do locado.
Custas pela Ré.
Évora e Tribunal da Relação, 17.05.2007