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DIREITOS DE AUTOR
Sumário
I. - Ao referir-se a criação intelectual, o CDADC inscreve a obra protegida no campo da cultura e não, apenas, no universo das transacções económicas. Por outro lado, a obra não se confunde com o suporte material que a encerra, o corpus mechanicum (…).O seu carácter criativo, constitui, pois, característica necessária da obra protegida pelo Direito de autor, exigindo-se um mínimo de criatividade, encarada no nosso ordenamento jurídico com o sentido de originalidade ou individualidade, que – como refere Oliveira Ascensão -, “…por vezes se torna até essencial para determinar se há violação do direito de autor preexistente.” II. - A criatividade da obra, resultante da sua concepção como criação intelectual no art. 1º do CDADC, não se confunde com o mérito, que o art. Art. 2º, corpo, expressamente afasta como requisito da obra protegida. A lei exclui o mérito, enquanto manifestação de um juízo estético ou artístico da obra, que traduza a avaliação gradativa da mesma à luz de critérios daquela natureza.. : “ Se não se exige que se reconheça uma personalidade, exige-se que se reconheça positivamente que há um mínimo de criação. Um novo elemento, que não constava do quadro de referências da comunidade, não se apresentava como óbvio, nem se reduz a uma aplicação unívoca de critérios pré - estabelecidos, foi introduzido por um acto criativo. Este é o fundamento da atribuição do Direito de Autor. “ Pode, pois, considerar-se com aquele autor que o carácter criativo da “obra”, a que alude o art. 1º do CDADC, depende de não constituir cópia de outra obra (requisito mínimo), não constituir o resultado da aplicação unívoca de critérios pré – estabelecidos, nomeadamente de natureza técnica, em que estejam ausentes verdadeiras escolhas ou opções do autor e traduzir um resultado que não seja óbvio, banal, e que, portanto, permita distingui-lo de outros, reconhecer-lhe uma individualidade própria, enquanto obra, independentemente do suporte material que a encerra. III. – A questão da qualificação da “obra” como criação artística, abrangida pelo direito de auto tem uma dimensão essencialmente normativa e jurídica e outra factual. A dimensão normativa respeita à interpretação das normas e princípios legais aplicáveis, maxime, os constantes do CDADC, de modo a concluir, ou não, pela exigência de um conteúdo mínimo de criatividade, seu enquadramento e alcance.A dimensão factual tem que ver com a necessidade de a obra ser concretamente apreciada, à luz de parâmetros técnicos e artísticos, por quem disponha de conhecimentos especializados nas respectivas áreas, de modo a habilitar o tribunal a decidir se estamos perante obra protegida pelo direito de autor ou não, ou seja, recorrendo à prova pericial (cfr. art. 153º e sgs do C.P.P.). IV. - Há domínios e situações em que basta a experiência e o senso comum que se pressupõe nos juristas em geral e nos juízes em particular, para decidir se estamos perante criação intelectual, como será o caso da generalidade das obras literárias e mesmo das artes plásticas ou artesanais.Outros domínios e situações há em que só a apreciação dos factos por parte de especialistas permite ao tribunal decidir a final, como é o caso dos presentes projectos de arquitectura. Por um lado, a correcta compreensão do conteúdo dos projectos, o reconhecimento dos seus elementos e relações que devem estabelecer-se entre eles, exige conhecimentos técnicos e mesmo artísticos, nesta área específica, que o tribunal não detém. Por outro lado, é igualmente importante o conhecimento da prática corrente, no que respeita às características dos projectos de arquitectura do ponto de vista da sua individualidade, nomeadamente no que concerne à existência, ou não, de modelos ou projectos standard, despersonalizados, categoria em que, na alegação dos recorridos, se incluirá o projecto do Assistente, valoração esta que também exige especiais conhecimentos e experiência. V. - Entre os dois principais modelos de prova pericial, o processo penal português adoptou o chamado modelo de perícia oficial, seguido na maioria dos países continentais - por contraposição ao modelo de perícia contraditória dos países anglo saxónicos -, que se caracteriza por ser o tribunal ou outra autoridade judiciária a nomear o perito (e não as partes a apresentá-los separadamente, como sucede nos ordenamentos de perícia contraditória), que presta o seu contributo sob a direcção do tribunal (e não da parte que o apresentou), não sendo considerado testemunha (contrariamente ao que sucede nos sistemas de common law, em que têm a designação de expert witness), antes gozando de um estatuto especial. VI. - Daí que, de acordo com o disposto no art. 152º do C.P.P., a perícia deva ser realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado e, subsidiariamente — maxime quando não for possível a realização da perícia por um daqueles organismos —, por perito nomeado pelo tribunal [ou pelo MP na fase de inquérito] de entre pessoas que integram uma lista existente em cada comarca. Na sua falta ou impossibilidade, pode o tribunal nomear pessoa que não conste de lista de peritos, fazendo incidir a sua escolha em pessoa de reconhecida honorabilidade e competência na matéria em causa. VII. - Só pode valer como prova pericial, gozando da especial força probatória reconhecida pelo art. 163º CPP, a perícia realizada por pessoa de reconhecida honorabilidade e competência, em matéria técnica, científica ou artística, cujo conhecimento é necessário para a percepção ou a apreciação de factos que integrem o objecto do processo. VIII. - Assim, a correcta delimitação do objecto das diversas ciências, técnicas e artes, deve assumir-se como questão metodológica fundamental na decisão sobre a necessidade da perícia, o âmbito da mesma e sobre quem deve realizá-la, sob pena de poderem ocorrer desvios decisivos em matéria de aquisição e valoração da prova IX. - A decisão de questão jurídica, enquanto tal, não pode ser objecto de perícia em sentido próprio, visto esta pressupor a necessidade de recorrer a conhecimentos especializados diferentes dos supostos no tribunal, a quem compete decidir do direito, sendo certo que a decisão sobre a eventual violação de direitos de autor por projecto de arquitectura, encerra questão jurídica que, não obstante a sua especificidade, cabe ao tribunal resolver. Logo, não podem os senhores advogados ou outros juristas, enquanto tal, isto é na qualidade de especialistas em qualquer ramo ou área do direito, ser peritos, no sentido próprio que tal designação tem em sede de prova pericial, sem prejuízo de o poderem ser em função de outra qualificação de natureza técnica, científica ou artística que eventualmente cumulem com a formação jurídica, o que não é o caso dos autos, pois apenas são identificados como advogados. X. - Tanto no Inquérito como na Instrução, a existência de indícios suficientes significa que os indícios, com o sentido de conjunto da prova recolhida nas fases preliminares, são suficientes para submeter o arguido a julgamento e isso acontece quando a condenação for provável, como decorre da noção legal de indícios suficientes contida no art. 283 º nº 2 do CPP XI. - “…apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de condenação, (…) responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do estado de Direito democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo” O juízo ou convicção a estabelecer na fase de instrução, como no termo da fase de inquérito, há-de, pois, ser equivalente ao de julgamento, designadamente no que respeita à apreciação do material probatório e ao grau de convicção, que não se compadece com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida. A prova suficiente há-de corresponder à que “… em julgamento levaria à condenação, se aquele ocorresse com o quadro probatório, no tempo e nas circunstâncias que determinam o libelo acusatório“ ou o despacho de pronúncia.
Texto Integral
Rec n.º 526-07
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Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I. Relatório
1. – Nos autos de inquérito que correram termos no DIAP de … foi deduzida acusação pelo MP contra A…. B. …C. …e D…., imputando-lhes a prática dos seguintes crimes:
- aos arguidos A. ..., B. ... e E. …um crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195°, n.º 1 e 197°, n.º 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos;
- ao arguido D. ... de um crime de contrafacção e um crime de violação de direitos morais, p. e p. nos termos dos artigos 196°, n.º 1, 197° e 198°, alínea b) do CDADC.
2. – Na sequência daquela acusação, os arguidos requereram a abertura de Instrução com vista à prolação de despacho de não pronúncia relativamente a todos eles.
3. – Realizada a Instrução, pelo Tribunal de Instrução Criminal de Évora foi proferido despacho de não pronúncia relativamente a todos os arguidos.
4. – Inconformados, recorreram o MP e o Assistente, F. ..., 5. – Da sua motivação extrai o MP as seguintesconclusões:
«CONCLUSÕES
I - A utilização feita pelos três primeiros arguidos dos trabalhos de arquitectura com autoria do assistente não se limitou a dar sequência ao projecto urbanístico de que se tornaram subscritores. Ao invés, requereram o deferimento de substituição ao loteamento (nos moldes em que havia sido aprovado), instruindo-o com projectos que pretenderam substancialmente diferentes e autónomos face aos do assistente, estes agora subscritos pelo quarto arguido;
11 - Assim sendo, não poderia o Mmo Juiz considerar não ilícito o uso feito dos trabalhos do assistente, porque realizado a coberto do projecto urbanístico que haviam adquirido, como universalidade, na medida em que foram utilizados como se de outros se tratassem, e não, como se lhes houvesse sido dado o uso "normal";
111 - Na origem do afastamento da presunção contida no nº1 do artº 163º do Código de Processo Penal, que excepciona a regra geral contida no art°127º do Código de Processo Penal, está a crença na especial capacidade técnica dos peritos quanto à matéria sobre que incide o respectivo juízo;
IV - Por essa razão, para que possa operar-se não bastará, para os efeitos do disposto no art°163°, nº2 do Código de Processo Penal, que o julgador fundamente a sua divergência, sendo exigível que a apreciação assente em critica material da mesma natureza da realizada pelos peritos, facto que não ocorreu na decisão recorrida;
V - Maior relevo deveria ter sido dada à prova pericial recolhida em sede de inquérito, também pelo facto de encontrar correspondência com o sentido de testemunho qualificado e técnico, recolhido em sede de inquérito, prestado por quem, agente da administração, se presume com maior capacidade de isenção que as testemunhas apresentadas pela defesa em sede de instrução, esta fortemente valorizada pelo Mmº Juiz;
VI - Sendo a fase de instrução um momento processual em que a prova recolhida deverá ser apreciada como meramente indiciária da prática do crime, diferente da que deverá suportar uma decisão de condenação, deveria o Mmº Juiz haver considerado indiciada a matéria de facto constante da acusação, permitindo que, em sede de audiência de julgamento, onde vigora em pleno o principio do contraditório, pudesse operar uma mais substancial discussão dos elementos em causa;
VII - Justificá-lo-ia o tecnicismo inerente à matéria em discussão, não indutor de respostas lineares e/ou inequívocas;
VIII - Com a douta decisão proferida terá o Mmº Juiz, e salvo o devido respeito por opinião contrária, violado o disposto nos artigos 163°, nºs s 1 e 2 e 308º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal.
Pelos motivos expostos deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, nos termos do art. 308º nº1, parte final, do CPP, pronuncie os arguidos pela prática dos crimes descritos na acusação, fazendo-se desta fora justiça ».
6. – O Assistente, por sua vez, da sua motivação de recurso, extrai as seguintes
« CONCLUSÕES
1ª Alega o Tribunal a quo que "o projecto de D. ... distingue-se do projecto de E. …. assumindo individualidade e características próprias e como tal veio a ser apresentado e aprovado pelos serviços municipais que o licenciaram como um outro projecto. novo."
Salvo o devido respeito.
2ª Resulta provado nos autos que o projecto de arquitectura do loteamento apresentado pelo Quarto Arguido quando confrontado com o projecto de arquitectura do loteamento elaborado pelo Assistente só difere relativamente a três aspectos (I) inclusão de caves e (ii) a exclusão de disposições regulamentares quanto à arquitectura dos prédios (os alçados tipo do desenho 07) a construir nos lotes (iii) os arranjos dos espaços exteriores.
3ª Resulta provado nos autos que o projecto de arquitectura do loteamento apresentado pelo Quarto Arguido é exactamente igualao elaborado pelo Assistente com excepção dos três aspectos referido na conclusão anterior
4ª Resulta provado nos autos que o projecto de arquitectura do loteamento apresentado pelo Quarto Arguido quando confrontado com o projecto de arquitectura do loteamento elaborado pelo Assistente é exactamente igual, nomeadamente, quanto à forma dos lotes e polígonos de Implantação, número de fogos, áreas destinadas a comércio, STP (superfícies totais de pavimento) totais e parciais de habitação e comércio e configuração das vias, etc ..
5ª Tais factos estão inequivocamente provados pelos projectos do Assistente e do Quarto Arguido (peças escritas e desenhadas) juntos a fls .. no processo de licenciamento que correu termos na autarquia de Évora cujas as cópias certificadas constam dos 8 dossiers apensos aos autos.
6a Tais factos estão inequivocamente provados pelo parecer e declarações do Arq. P. que apreciou e analisou minuciosamente os dois projectos de arquitectura do loteamento em sede de Licenciamento
7ª Tais factos estão inequivocamente provados pela memória descritiva subscrita pelo Quarto Arguido apresentada com o requerimento de substituição o qual esclarece literalmente que "nesta Intervenção, apresenta-se as seguintes alterações, relativamente ao loteamento do alvará de loteamento nº 7/2002: projectam-se em todos os lotes caves destinadas a estacionamento, arrumas ou zonas técnicas em todos os edifícios a construir nos lotes. Não propõe qualquer projecto tipo. Mantém todos os parâmetros urbanísticos (áreas de implantação, S.T.P, cérceas e cotas)" (cfr termo de responsabilidade e memória descritiva a fls 50, 51 e 52 do processo)
8ª Tais factos estão inequivocamente provados pelas declarações do assistente no qual se confirma tudo a alegado nas conclusões anteriores afirmando de forma peremptória que o projecto de loteamento apresentado pelo Quarto Arguido quando confrontado com o projecto de loteamento elaborado pelo Assistente só difere do projecto da autoria do Assistente relativamente a três aspectos (I) inclusão de caves (li) exclusão de disposições regulamentares quanto à arquitectura dos prédios (os alçados tipo do desenho 07) a construir nos lotes (iii) os projectos de arranjo dos espaços exteriores (cfr declarações a fls 259 a 261 no processo).
9ª Tais factos estão inequivocamente provados pelo termo de peritagem do qual consta literalmente "o projecto urbanístico em questão desenvolve-se sempre segundo as mesmas linhas de orientação, contemplando a construção de vários lotes habitacionais num conjunto organizado de forma semelhantes, com a mesma expressão geométrica e o mesmo tipo de organização espacial (. .) "que o projecto apresentado posteriormente não é uma obra original, antes pelo contrário utiliza os mesmo elementos estruturais e apresenta os mesmos desenvolvimento estéticos, carecendo, assim, de individualidade própria" (cfr. termo de peritagem a fls 278 a 279 do processo);
10ª O Tribunal a quo para inquinar toda essa prova apenas trás à colação o testemunho de … a fls 644 e segs o qual nem se refere aos projectos de arquitectura do loteamento subscritos pelo Assistente e pelo Quarto Arguido mas sim do projecto de arquitectura dos edifícios que foram construídos nos lotes, assim revelando um erro grosseiro na apreciação da matéria de facto que só é desculpável por ter sido apreciado por um jurista sem o necessário acompanhamento por parte de um técnico especializado em engenharia ou arquitectura.
11ª Clarificando a situação à luz da legislação administrativa aplicável uma coisa é o proiecto de arquitectura da operacão de loteamento cujo conteúdo material está definido no art. 7º e 8º da Portaria n.o 1110/2001, de 19 de Setembro. outra coisa bem diferente é o proiecto de arquitectura dos edifícios ou construcõesa edificar nos lotes criados pela operação de loteamento cujo conteúdo material está definido nos arts. 11º e 12º da Portaria nº 1110/2001, de 19 de Setembro.
12ª Portanto o projecto de arquitectura do loteamento tem por objecto as acções que tenham por objecto ou por efeito a constituição de um ou mais lotes destinados imediata ou subsequentemente à edificação urbana, e que resulte da divisão de um ou vários prédios, ou do seu emparcelamento ou reparcelamento " (cfr. art 2º ai i) do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, que aprovou o Regime Geral da Edificação e da Urbanização, doravante RJUE);
13ª O projecto de arquitectura dos edifícios tem por objecto '' a actividade ou o resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação de um imóvel destinado a utilização humana, bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência" (cfr art 2º al i) do Decreto-Lei n.o 555/99, de 16 de Dezembro que aprovou o Regime Geral da Edificação e da Urbanização doravante RJUE)
14a O projecto de loteamento precede temporalmente e condiciona o projecto dos edifícios a implantar nos lotes criados pela operação de loteamento, pelo que, no caso concreto a licença e o projecto de loteamento determinavam que os projectos de arquitectura dos edifícios a implantar nos lotes deviam respeitar, em termos de condicionamento, os alçados tipo que constavam da memória descritiva e desenho 07 sob pena de não serem aprovados (cfr. informação a fls. 30).
15ª É aliás, o que resulta do art. 77 no 7 do RJUE e o artigo 121º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) admitem expressamente a existência de eventuais condicionantes impostos noâmbito das deliberações camarárias relativas ao licenciamento" (nesse sentido, vide ainda os revogados artigos 29º, n.º 4 do Decreto-Lei nº 448/91,de 29 de Novembro e 1º al. d) da Portaria nº 216/92. de 20 de Março e o seu anexo IV)
16a Tendo a deliberação de 25.02.1998 condicionado os licenciamentos de construção dos edifícios "ao cumprimento integral do regulamento de construção e alçado tipo que constem da memória descritiva e desenho 07, esse condicionamento tem de ser respeitado pela autarquia, pelo proprietário do prédio e pelos adquirentes dos lotes como dispõe o art. 77º n.º 7 do RJUE, aplicável in casu ex vi dos arts. 128º n.o 1 e 130º do mesmo diploma legal (cfr notificação e proposta para agenda de reunião pública a fls. 417 a 419).
17ª Tais condicionamentos não são legalmente obrigatórias na licença de loteamento pois tem carácter "eventual/" (cfr artº 77º , n.o 7 do RJ U E e o artigo 121º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) mas quando existem tem de ser respeitados pela autarquia e pelos proprietários dos lotes
18ª No caso concreto o condicionamento constante da deliberação de 25.02.1998 obrigava a que os projectos de arquitectura dos edifícios respeitassem os alçados tipo que constavam da memória descritiva e desenho 07" sob pena de não serem aprovados (cfr docs a fls 30 e segs) e obrigava, mais uma vez por razões de direito de Autor, que o Assistente fosse contratado pelos proprietários dos lotes para executar, desta feita, os projectos de arquitectura dos edifícios
19ª Porquanto, enquanto se mantivesse inalterada e em vigor a deliberação de 25.02.1998. a entidade que promovesse a construção nos lotes criados pelo loteamento carecia da autorização do autor do projecto dos alçados cabendo ao Requerente o direito exclusivo de explorar economicamente a utilização dos projectos (cfr arts 9º n.o 1 e 2, 40º al. a), 67º nº1, 68º nº2 al. j) e 161º nº 2 do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos).
20ª Como os Arguidos não quiseram contratar o Assistente para executar o projecto de arquitectura dos edifícios a implantar no loteamento fizeram aprovar uma alteração (adulteração) ao projecto de arquitectura do loteamento apenas com as seguintes alterações (I) Inclusão de caves; (Ií) alteração no projecto de arranjo nos espaços exteriores (ill) exclusão de disposições regulamentares quanto à arquitectura dos prédios a construir nos lotes, isto é a eliminação da obrigação de ser respeitado, em sede de projecto de arquitectura dos edifícios a implantar nos lotes "os alçados tipo que constavam da memória descritiva e desenho 07":
21ª Tudo Isto para dizer que a comparação efectuada pela testemunha ….a a fls .. 644 e segs não é uma comparação entre o projecto de arquitectura do loteamento apresentado pelo Quarto Arguido e o apresentado pelo Assistente matéria que é objecto da acusação formulada nos presentes autos, mas sim uma comparação dos alçados constantes do desenho 07 constantes do condicionamento aos projectos de arquitectura dos edifícios que fazia parte das disposições regulamentares eliminadas na alteração e os projectos de arquitectura dos edifícios que foi possível aprovar Junto da autarquia após eliminado esse condicionamento
22ªTal equívoco ou erro grosseiro por parte do Tribunal a quo é aliás patente na afirmação de que "alteração" foi "apresentado e aprovado pelos serviços municipais que o licenciaram como um outro projecto, novo." (cfr fls. 694), quando, muito pelo contrário a alteração ao “projecto de arquitectura do loteamento" foi "apresentado e aprovado pelos serviços municipais." como uma verdadeira e efectiva "alteração" como se pode comprovar pela análise dos documentos 49 a 71 e o aditamento nº 1 ao alvará de loteamento n° 7/2002 a fls 410 a 412 que titula a "alteração" onde se refere ipsis verbis as referidas alterações, conforme planta que constitui o anexo I, constam da inclusão de caves e a exclusão de disposições regulamentares relativamente à arquitectura dos lotes. mantendo-se as restantes condições constantes do alvará 7/2002
23 ª A decisão Instrutória sub Judice , ao ter assentado a sua decisão na comparação entre os alçados constantes do desenho 07 constantes do condicionamento aos projectos de arquitectura dos edifícios os quais foram eliminados na alteração e os projectos de arquitectura dos edifícios que foram efectivamente executados ao invés da comparação entre o rojecto de arquitectura do loteamento apresentado pelo Quarto Arguido e o projecto de arquitectura do loteamento apresentado pelo Assistente, matéria que é objecto da acusação formulada nos presentes autos, enferma de erro grosseiro na apreciação da prova produzida nos presentes autos tendo ainda violado o art 308°, n° 1 do Código de Processo Penal
24ª Alega o Tribunal a quo "a utilização do trabalho em questão por parte dos adquirentes era o resultado normal da aquisição daquela universalidade e assim foi entendido por todos os intervenientes (mesmo pelo assistente, que como se verifica das suas declarações só entrou em desacordo quanto a uma hipotética alteração do seu projecto para substitui-lo por outro mais de acordo com a vontade dos novos donos, quando estes pretenderam ultrapassar as restrições que constavam das imposições da Câmara - nunca questionando a legitimidade da utilização do projecto que tinha feito)"; e que não consta provado "que os referidos projectos de arquitectura são protegidos no âmbito do direito de autor, são direitos patrimoniais e morais pertencentes em exclusividade ao queixoso"
25ª Salvo o devido respeito, parece-nos que o Tribunal a quo mais uma vez, nem sequer percebeu o que está em causa no crime de usurpação, pois constituem pressupostos da sua tipicidade (i) "quem, sem autorização do autor () utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código' (cfr art. 195° , n° 1 do quem estando autorizado a utilizar uma obra (. ) exceder os limites da autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos neste Código. "
26ª Dos artigos 2°, nº 1, al. l), 25°, 159° do CDADC, resulta de modo inequívoco que o "projecto de arquitectura do loteamento" elaborado pelo Assistente goza de protecção legal nos termos do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos
27ª Como refere Luiz Francisco Rebelo a autorização concedida para a utilização da obra sob determinada forma ou por determinado processo só por essa forma e processo é válida, não podendo estender-se a quaisquer outros se assim não tiver convencionado, ma vez que tais formas e processos são independente entre si" (cfr Luiz Francisco Rebello, CDADC Anotado, 1985. p. 121)
28a Da matéria de facto provada resulta que Assistente apenas transmitiu
autorização ao anterior proprietário para executar o projecto de arquitectura do loteamento de acordo com a sua versão original, isto é, nunca autorizou o proprietário a "alterar" ou a "adulterar" o projecto original de arquitectura do loteamento .
29a Tendo só sido esse o âmbito da autorização que foi transmitida pelo anterior proprietário aos Primeiro, Segundo e Terceiro Arguido é manifesto concluir
que estes últimos, ao "alterarem" ou "adulterarem" o projecto original de arquitectura do loteamento, encontrando-se a obra em execução
excederam os limites da autorização concedida pelo Assistente
30a Tais factos estão inequivocamente provados pelo Requerimento subscrito por um dos arguido a fls. 42 do processo e notificação aos Arguidos efectuada pela Câmara Municipal de Évora no sentido de obterem autorização do Assistente relativamente à alteração do projecto de arquitectura do loteamento aprovado (cfr notificação a fls 46) e pelo processo de licenciamento do loteamento donde não consta qualquer autorização assinada pelo Assistente (cfr os oito dossiers apensos)
31ª Tais factos estão inequivocamente provados pelas declarações da testemunha Arq P., subscritor do parecer a que se alude a ai anterior que confirmando o alegado no parecer afirma não ter sido junta ao processo qualquer autorização assinada pelo Assistente autorizando os Primeiro Segundo e Terceiro Arguidos a "alterarem" ou “adulterarem" o projecto original de arquitectura do loteamento (cfr declarações a fls. 143 e 144),
32ª Tais factos estão inequivocamente provados pelo Requerimento a fls, 47 e segs assinado pelo Assistente e as declarações do assistente no qual se confirma tudo a alegado nas conclusões anteriores afirmando-se de forma peremptória que não autorizou os Primeiro, Segundo e Terceiro Arguido a "alterarem" ou “adulterarem" o projecto original de arquitectura do loteamento
33ª Tais factos estão inequivocamente provados pelas declarações da testemunha …., um dos anteriores proprietários, que nunca afirmou ter tido autorização do Assistente para "alterar" ou "adulterar" o projecto original de arquitectura do loteamento (cfr, declarações a fls 652 a 653);
34ª O Tribunal a quo ao ter concluído que não constava demonstrado que tal projecto de arquitectura fosse protegido no âmbito do direito de autor e que os Primeiro, Segundo e Terceiro Arguido estavam autorizados a “alterarem" ou "adulterarem" o projecto original de arquitectura do loteamento enferma de erro grosseiro na interpretação da prova produzida nos presentes autos tendo violado o art. 308°, nº 1 do Código de Processo Penal
35a Atento à complexidade das questões técnicas suscitadas no presente recurso, é manifesto a necessidade de, nos termos do art 412 ° nº 3, al c) do Código de Processo Penal, requerer a renovação dos depoimentos de P. , melhor identificado a fls 142: F. ..., melhor identificado a fls, 258; V.…, melhor identificado a fls 644 M., melhor identificado a fls. 652; os quais terão por objecto os factos objecto da acusação.
36ª Mais requer nos termos do art. 412°, nº 3, al c) do Código de Processo Penal, a renovação perícia solicitada, desta feita solicitando-se a três arquitectos nomeados pela Ordem dos Arquitectos no sentido de dar resposta há questão de saber se os elementos apresentados pelos três primeiros arguidos à apreciação da CME e subscritos pelo quarto arguido, são mera reprodução dos projectos originalmente subscritos pelo queixoso, carecendo de individualidade própria e se os referidos projectos de arquitectura são protegidos no âmbito do direito de autor são direitos patrimoniais e morais pertencentes em exclusividade, ao queixoso. NESTES TERMOS, e nos melhores de direito aplicáveis,
a) Requer-se, nos termos do art. 412°, nº 3, al. c) do Código de Processo Penal, a renovação dos depoimentos de P…. melhor identificado a fls. 142; F. ..., melhor identificado a fls. 258; V., melhor identificado a fls. 644; M…., melhor identificado a fls. 652; os quais terão por objecto os factos objecto da acusação.
b) Requer-se, nos termos do art. 412°, nº 3, al c) do Código de Processo Penal, a renovação penal solicitada, desta feita solicitando-se parecer a três arquitectos nomeados pela Ordem dos Arquitectos no sentido de dar resposta aos seguintes quesitos:
1. Os elementos apresentados pelos três primeiros arguidos à apresentação do CME, e subscritos pelo quarto arguido, são mera reprodução dos projectos originalmente subscritos pelo queixoso, carecendo de individualidade própria ?
2. Os referidos projectos e arquitectura são protegidos no âmbito do direito de autor, são direitos patrimoniais e morais pertencentes em exclusividade, ao queixoso ?
3. O quarto arguido ao apresentar os referidos projectos e ao introduzir alterações, atentava contra a sua integridade ?
c) Deverá ser dado provimento ao recurso e revogada a douta decisão recorrida e, em consequência. ser a mesma substituída por outra que pronuncie os Arguidos, só assim se fazendo JUSTIÇA»
7. – Responderam os arguidos, pugnando pela manutenção da decisão de não pronúncia. 8. – Nesta Relação, o Senhor Magistrado do MP emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e consequente substituição da decisão instrutória recorrida por outra que pronuncie todos os arguidos pelos crimes que lhes são imputados na acusação.
9. – Cumprido o disposto no art. 417º nº2 do CPP, responderam os arguidos reafirmando o seu entendimento de que os recursos não merecem provimento.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Questão prévia – renovação de prova.
Na sua motivação de recurso, o assistente – invocando o disposto no art. 412º nº 3 al. c) do CPP – vem requerer renovação de prova produzida na fase de instrução, em 1ªinstância, ao solicitar a renovação dos depoimentos das testemunhas P., V. e das declarações do assistente, bem como a renovação da perícia realizada ainda na fase de inquérito, agora com intervenção de três arquitectos nomeados pela Ordem dos Advogados, para responderem aos quesitos com que termina as suas conclusões.
Vejamos.
a) Nos termos do art.430º do CPP, a Relação admite a renovação da prova, quando:
- deva conhecer de facto e de direito;
- se verifique algum dos vícios do art. 410º nº2 CPP;
- haja razões para crer que a renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo para novo julgamento;
- quando a prova produzida não tenha ficado documentada, pois neste último caso atender-se-á à documentação efectuada, sendo inútil a renovação pretendida. [1]
A admissibilidade de renovação da prova depende, assim, do conhecimento e verificação de algum dos vícios da decisão a que se reporta o art. 410º do CPP, por parte do tribunal de recurso, o que é característico do modelo de revista ampliada ou revista alargada adoptado pelo CPP de 1987, com que, nas palavras originárias, do Prof. F. Dias, se pretendeu instituir um “recurso que …se não restringisse à tradicionalmente chamada «questão-de-direito», mas devesse ser admissível face a contradições insanáveis entre as comprovações constantes da sentença e a prova registada, a erros notórios ocorridos na apreciação da prova ou, em geral, a dúvidas sérias suscitadas contra os factos tidos como provados na sentença recorrida.”[2]
«O sistema de revista alargada protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente de erro grosseiro na decisão da matéria de facto) e, desse modo, defende-o do risco de uma sentença injusta». – Cfr Ac TC nº 322/93 de 5.5.93, BMJ 427/109.
Ora, na medida em que toda a prova produzida em Inquérito e na Instrução é necessariamente documentada (cfr arts 296º e 275º, do CPP), em recurso interposto da decisão instrutória o tribunal de recurso sempre conhecerá de facto com toda a amplitude, pelo que não se lhe aplicará o regime previsto nos art.s 410º, 426º, 426º-A, 430º e 431º, do CPP, claramente pensado para a sentença enquanto decisão final do objecto do processo. Mesmo que assim não fosse, sempre a nova perícia pretendida constituiria nova diligência probatória e não renovação da perícia realizada em inquérito, pelo que também por esse motivo a perícia seria inadmissível, pois o art. 430º nº2 refere a renovação de prova produzida em 1ª instância e não a produção de prova nova (cfr Germano M. Silva, ob. citada em nota, p. 367).
Indefere-se, pois, a solicitada renovação de prova em 2ª instância. 1. Delimitação do objecto dos recursos e poderes de cognição do tribunal.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo da decisão das questões de conhecimento oficioso, de acordo com o decidido no Acórdão para Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/1 0/95, in D.R., I-A de 28/12/95.
a) No seu recurso, o MP impugna a decisão de não pronúncia dos três primeiros arguidos, pela prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195º e 197º do CDADC, que lhes imputara na acusação pública, por entender que se encontra suficientemente indiciada a utilização ilícita dos trabalhos de arquitectura realizados pelo assistente.
O MP impugna ainda a decisão de não pronúncia do arguido D… pela prática de um crime de contrafacção p. e p. pelo art. 196º do CDADC e de um crime de Violação do direito moral p. e p. pelo art. 198º al. b) do mesmo CDADC, por entender encontrarem-se indiciados os elementos constitutivos dos respectivos ilícitos típicos. a) As questões de natureza processual suscitadas pelo MP relativamente a todos os tipos penais imputados aos quatro arguidos, são, essencialmente, as seguintes
- do especial valor da prova pericial em processo penal e da valoração dessa mesma prova feita in casu pelo tribunal a quo, face ao preceituado no art. 163º do CPP;
- do conceito de indícios suficientes na fase de instrução – art. 308º nº1 do CPP.
Relativamente ao crime de usurpação imputado aos três primeiros arguidos, impõe-se ainda apreciar e decidir, no plano substantivo, se a factualidade indiciada integra os elementos objectivos daquele tipo penal, uma vez que o MP recorrente entende que os três primeiros arguidos não se limitaram a fazer uso normal do projecto de arquitectura, contrariamente ao decidido pelo senhor juiz a quo.
b) O Assistente que pretende ver todos os arguidos pronunciados pelos crimes que lhe foram imputados pelo MP, suscita as seguintes questões jurídico-penais no recurso que interpôs:
- o projecto de arquitectura do loteamento elaborado pelo assistente, é um projecto original de arquitectura, que goza da protecção legal conferida pelo CDADC ?
- resulta da factualidade indiciada, com base na prova produzida em inquérito e instrução, que o projecto de loteamento (que não se confunde com o projecto de arquitectura dos edifícios ou construções) apresentado pelo arguido ..., não assume individualidade ou características próprias, face ao projecto de loteamento elaborado pelo Assistente, contrariamente ao entendimento manifestado pelo senhor juiz a quo na decisão de não pronúncia ?
- os três primeiros arguidos “alteraram” ou “adulteraram” a versão original do projecto de arquitectura do loteamento, excedendo desse modo os limites da autorização concedida pelo assistente ?
2. – A decisão recorrida. « (…) 4. Fundamentos da abertura da instrução:
Afirmam os arguidos e requerentes que a acusação é nula, por demasiado vaga e imprecisa em termos de factualização, e que para além disso os arguidos adquiriram efectivamente o direito à utilização do trabalho de arquitectura em causa, ao comprarem como universalidade o projecto em que o mesmo estava integrado, pelo que não existiu qualquer usurpação; e diz por seu lado o arguido D. … que o trabalho por si efectuado assume características próprias, não sendo reprodução do trabalho do assistente.
Termo em que concluem todos os arguidos pela sua não pronúncia, por não terem existido os crimes acusados. (…)
7. Discussão e apreciação:
Dispõe o art. 308, n.º 1, do CPP, que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Há assim que fazer uma dupla operação: apurar, face aos elementos de prova existentes, quais os factos indiciados; determinar se tais factos são suficientes para, embora indiciariamente, prefigurar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
No caso presente, entendemos firmemente que não está indiciada matéria criminal susceptível de conduzir à condenação dos arguidos.
Para fundamentar tal convicção, importa fazer algumas considerações sobre o conteúdo das normas criminais em que se prevêem os crimes a que se reporta a acusação.
Aos arguidos A. ..., B. ... e E. ... está imputado um crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195°, n.º 1 e 197°, n.º 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
Ora tal crime tem como pressuposto básico a existência de um uso ilícito de um bem jurídico protegido pelo CDADC.
A nosso ver, e independentemente das considerações expendidas por estes arguidos sobre a existência ou não de direitos autorais a proteger no caso (o que também se apresenta duvidoso), verifica-se desde logo a falta desse requisito essencial. Como se diz na própria acusação, e está bem explicado no depoimento do assistente e também no das testemunhas que foram ouvidas em sede de instrução e tiveram conhecimento directo dos factos enquanto originais promotores do empreendimento e como vendedores do projecto urbanístico, este projecto foi vendido numa fase adiantada, como universalidade, integrando-se no mesmo como um dos elementos o trabalho de arquitectura efectuado pelo assistente de acordo com a encomenda feita pelos promotores, e que aliás lhe fora já pago.
O projecto em causa apenas aguardava a emissão do alvará.
Por conseguinte, a utilização do trabalho em questão por parte dos adquirentes era o resultado normal da aquisição daquela universalidade, e assim foi entendido por todos os intervenientes (mesmo pelo assistente, que como se verifica das suas declarações só entrou em desacordo quanto a uma hipotética alteração do seu projecto, para substitui-lo por outro mais de acordo com a vontade dos novos donos, quando estes pretenderam ultrapassar as restrições que constavam das imposições da Câmara – nunca questionando a legitimidade da utilização do projecto que tinha feito).
Em resumo, entendemos que a utilização feita pelos arguidos A. B. e C. dos trabalhos antes efectuados pelo assistente não podia rotular-se de ilegítima, nem os mesmos a tiveram como tal, pelo que tanto basta para concluir pela inexistência do falado crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195°, n.º 1 e 197°, n.º 1, do CDADC, por ausência dos elementos objectivos e subjectivos do crime.
Quanto ao arguido D. ...,vem este acusado de crime de contrafacção e crime de violação de direitos morais, p. e p. nos termos dos artigos 196°, n.º 1, 197° e 198°, alínea b) do CDADC.
Também aqui se apresentam pertinentes as considerações sobre a inexistência de obra protegida, constantes do requerimento de abertura de instrução. Mas também aqui entendemos que essa questão fica prejudicada por falta de outros requisitos dos crimes, que lhe são logicamente anteriores.
Recorde-se que o crime de contrafacção tem como conduta típica a reprodução total ou parcial da obra intelectual de terceiros.
E o crime de violação de direitos morais do autor exigiria que o agente se arrogasse a paternidade da obra de terceiro, reputando-se o criador de obra alheia, ou desvirtuasse a originalidade e genuinidade da obra alheia.
Assim sendo, parece que no caso não se verificam os crimes dos arts. 196º e 198º do CDADC.
Como explica com pormenor a testemunha V…., que executou a obra em questão, o projecto de… distingue-se do projecto de… assumindo individualidade e características próprias.
E como tal veio a ser apresentado e aprovado pelos serviços municipais, que o licenciaram como um outro projecto, novo.
Pelo que se alcança, nunca o arguido …. se arrogou a autoria do trabalho do assistente; elaborou e assinou um outro projecto, satisfazendo a vontade e os interesses dos empreendedores que lho tinham encomendado.
O projecto do assistente, que como já ficou dito se nos afigura ser de utilização legítima pelos adquirentes uma vez que estes compraram o projecto urbanístico quando apenas faltava a emissão do alvará para o empreendimento, nos termos do referido projecto, acabou por não ser executado por eles; foi apresentado e executado um projecto novo em substituição desse, da autoria do arguido ....
Baseia-se a acusação, no que se refere à sua tese da reprodução, no resultado do relatório dos peritos, a fls. 278 e 279, para além do depoimento do próprio assistente (fls. 258 e seguintes).
Todavia, em face do dito relatório de peritagem afigura-se muito pouco convincente a conclusão. Afirma-se que o projecto de …. carece de individualidade própria, não tem originalidade, adiantando como fundamento pouco mais, em concreto, do que a existência em comum, com o projecto do assistente, de uma espécie de anfiteatro num espaço público de lazer o interior ao loteamento. Porém, ao dizer-se que “o projecto urbanístico em questão desenvolve-se sempre segundo as mesmas linhas de orientação, contemplando a construção de vários blocos habitacionais, num conjunto organizado de formas semelhante, com a mesma expressão geométrica e o mesmo tipo de organização espacial”, não estão a exprimir-se generalidades? Não será que com essa descrição está a descrever-se o que constitui o resultado inevitável da encomenda e das indicações dos empreendedores, conjugadas com as limitações e condicionantes impostas pelo Município? Em que é que nesses pontos pode individualizar-se um projecto como obra de criação original? Não traduzirá isso a “observância integral de aspectos técnicos que, obedecendo a regras urbanísticas definidas administrativamente” teria que estar presente em qualquer projecto?
Parece-nos a este respeito, o da diferenciação, muito mais esclarecedor, preciso e rigoroso o depoimento da testemunha V., a fls. 643 e seguintes, o qual expõe e exemplifica o carácter original e próprio do projecto do arguido ….
De qualquer modo, entende-se que não pode dar-se como assente no trabalho do arguido … esse carácter de reprodução que lhe é atribuído pela acusação (entenda-se “reprodução parcial”, dado que reprodução integral nunca o seria dadas as razões e finalidades da sua própria realização obrigarem a diferenças de vulto em relação ao projecto do assistente).
Terminaremos, por tudo o que fica dito, com a decisão de não pronúncia.
Recordamos antes que os factos suficientemente indiciados, de entre os constantes da acusação particular e do requerimento de abertura de instrução, e tendo em conta os elementos contidos nos autos, são apenas os seguintes:
O queixoso, arquitecto, foi o técnico responsável e o autor dos projectos de arquitectura referentes ao processo de loteamento urbano que, sob o n.º findo o qual foi emitido o Alvará de Loteamento. Os primeiro, segundo e terceiro arguidos são sócios-gerentes da sociedade …, empresa que tem por objecto a construção, ampliação, transformação e restauro de edifícios, associados à compra e venda de imóveis. O quarto arguido é engenheiro civil. No desenvolvimento da sua actividade a Sociedade Lda.", por aquisição do prédio sito na Quinta …, tornou-se a promotora do referido loteamento, que, à data da aquisição, aguardava emissão daquele Alvará. A deliberação camarária que deferiu o projecto de loteamento, datada de 1998, fê-lo condicionando-o à observância integral de aspectos técnicos que, obedecendo a regras urbanísticas definidas administrativamente, haviam sido consagrados nos projectos de arquitectura realizados pelo queixoso, designadamente no regulamento de construção e projectos de alçado tipo para os edifícios a construir. Condicionamento que, uma vez aprovado, permaneceu incluso no Alvará …. Inconformados com tal limitação, os arguidos, na qualidade de representantes legais da "…, Lda." requereram perante a Câmara Municipal a revogação de tal condicionamento no Alvará de loteamento. Revogação a que o queixoso se opôs e que não obteve deferimento. Perante tal, vieram os primeiro, segundo e terceiro arguidos, em 3 de Julho de 2003 e 25 de Setembro de 2003, perante a autarquia, em representação da ", Lda.", requerer a substituição do projecto de loteamento (arquitectura) original. Fizeram-no instruindo o requerimento com memória descritiva, projectos e termo de responsabilidade subscritos pelo quarto arguido, dos quais declarou ser o autor. O assistente nunca autorizou nem acordou, total ou parcialmente, na reprodução e utilização pelos arguidos dos projectos de arquitectura por si antes subscritos. Nestes factos agiram os arguidos livre, voluntária e conscientemente. Agiram os três primeiros arguidos na convicção de que a “….” tinha adquirido aos promotores originais, juntamente com o prédio onde iria ser edificado o empreendimento, todo o projecto tal qual se encontrava, integrando-se aí também o resultado do trabalho de arquitectura feito pelo assistente, o qual lhe havia sido encomendado e pago pelos vendedores.
De entre a factualidade constante da acusação, não se provou, por não existir prova que suficientemente o confirme:
Que os elementos apresentados pelos três primeiros arguidos à apreciação da CM, e subscritos pelo quarto arguido, são mera reprodução dos projectos originalmente subscritos pelo queixoso, carecendo de individualidade própria. Que os referidos projectos de arquitectura são protegidos no âmbito do direito de autor, são direitos patrimoniais e morais pertencentes em exclusividade, ao queixoso. Que sabiam os primeiro, segundo e terceiro arguidos que os projectos que apresentaram aquando do pedido de substituição do projecto de loteamento original eram mera reprodução dos realizados pelo queixoso e que, não haviam sido autorizados a, por qualquer forma, utilizá-los. Que sabiam a sua conduta proibida e punível por lei. Que sabia o quarto arguido que os projectos que apresentou como seus não tinham individualidade própria, antes eram mera reprodução dos projectos apresentados pelo queixoso e que, ao introduzir alterações, atentava contra a sua integridade, tudo em desconformidade com a vontade do queixoso, autor original. Que sabia este que a sua conduta era proibida e punível por lei.
*
8. Decisão:
Face ao exposto:
- Por considerar que da prova recolhida nos autos não existem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena aos arguidos, não pronuncio os referidos arguidos.
*
Pela realização da instrução pagará o assistente 2 UCs. de taxa de justiça - cfr. art. 83º, n.º 2, do C. C. Judiciais. ».
3. Decidindo.
Alinhando as questões jurídico-penais suscitadas em ambos os recursos, de acordo com a precedência lógica que entre as mesmas se estabelece, face ao princípio de que o tribunal de recurso deve conhecer de todas as questões suscitadas, excepto das que fiquem prejudicadas pela decisão dada a outras, comecemos por apreciar e decidir da caracterização do projecto do assistente como obra protegida pelo Código de direito de autor e direitos conexos (CDADC). 3.1. – Do recurso interposto pelo Assistente. 3.1.1. - O projecto de arquitectura do loteamento elaborado pelo assistente é um projecto original de arquitectura, que goza da protecção legal conferida pelo CDADC ?
3.1.1.1. - Da obra protegida pelo CDADC.
Nos presentes autos, discute-se a responsabilidade penal dos quatro arguidos pelos crimes de usurpação, contrafacção e violação do direito moral, todos eles previstos no CDADC, aprovado pelo Decreto-lei nº 63/85 de 14 de Março e alterado pelo Decreto-lei 45/85 de 17 de Setembro, 114/91 de 3 de Setembro, 332/97 e 334/97, ambos de 27 de Novembro, e, por último, pela Lei 5/2004 de 24 de Agosto [3] .
Independentemente da diversa configuração dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos penais em causa, todos eles previstos no CDADC (arts 195º e 197º ,– Usurpação, 196º nº1 e 197º - Contrafacção e 198º al. b) e 197º - Violação do direito Moral ), têm estes em comum representarem a tutela penal de direitos de autor ou direitos conexos, decorrentes de obra protegida pelo CDADC.
Daí que, antes de mais, passemos a abordar a questão de saber se o projecto de arquitectura elaborado pelo Assistente constitui obra protegida pelo CDADC, pois só no caso de resposta afirmativa há que prosseguir na apreciação e decisão das restantes questões suscitadas pelos recorrentes, visto que só nessa hipótese a conduta dos arguidos pode ser subsumível aos tipos penais que lhe foram imputados na acusação pública.
Vejamos então.
a) Projecto de arquitectura - em género.
Como é sabido, o CDADC protege direitos patrimoniais e direitos pessoais, derivados de obra protegida, a qual merece tutela penal relativamente a condutas mais fortemente lesivas dos direitos ali protegidos.
Nos termos do art. 1º nº1 do CDADC “Consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos deste Código, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores. “.
O CDADC distingue entre Obras originais (art. 2º)e Obras equiparadas a originais (3º).
O art. 2º, depois de enunciar a liberdade de forma e conteúdo das criações intelectuais exteriorizadas, enumera exemplificadamente diversas formas que pode revestir o conceito de obra protegida genericamente definido na disposição anterior, incluindo:
- Obras de desenho, tapeçaria, pintura, escultura, cerâmica, azulejo, gravura, litografia e arquitectura (al.g) e
- Projectos, esboços e obras plásticas respeitantes à arquitectura, ao urbanismo, à geografia ou às ciências sociais (al. l).
No caso sub judice, está em causa projecto de arquitectura de loteamento elaborado pelo Assistente, pelo que podemos concluir que, em género, se trata de criação intelectual expressamente prevista no art. 2º al. l) do CDADC e, nessa medida, protegida pelo mesmo Código, o que constitui afirmação não contestada por nenhum dos sujeitos processuais e que aqui destacamos apenas por razões metodológicas.
b) O projecto de arquitectura concretamente elaborado pelo assistente - em espécie.
Um dos argumentos aduzidos pelos arguidos no requerimento de abertura de instrução e retomado nas respostas aos recursos, é o de que o projecto do assistente não constitui obra original protegida pelo CDADC, apresentando um conjunto de edifícios com fisionomia arquitectónica perfeitamente comum e sem traços de originalidade marcante, tal como a adopção da forma de distribuição dos prédios pelo terreno nada tem de específica, nada tem de original ou próprio do trabalho criativo do queixoso, não podendo este arrogar-se da sua criação e exclusivo, nela não fica presente qualquer elemento que se possa dizer dissociado do banal e comum (cfr requerimento para abertura de instrução do arguido ...).
Esta posição pressupõe o entendimento, expressamente afirmado pelos restantes arguidos, de que, “… o que se tutela no direito autoral é, não o projecto ou a memória descritiva, mas a obra, o objecto de criação do espírito humano. Não existe qualquer tutela penal para o mero projecto de arquitectura, onde não fique presente uma criação do espírito do autor mas apenas uma reprodução técnica de características da edificação realizada por um arquitecto. (…)O que se protege pelo direito autoral é, enfim, a obra concreta idealizada pelo autor, não o suporte em que se encontra reproduzida, seja o caso do papel ou em formato digital. Apenas existirá obra (…) quando esta possua um cunho artístico individualizado (…) quando entre a obra e o seu criador exista um vínculo estreito de necessária dependência, quando esta reflicta directamente a imaginação e a capacidade criativa daquele. (…) O direito de autor não tutela, ipso facto, o trabalho do arquitecto, mas apenas a efectiva criação original que, num processo imaginativo, este idealize e execute. Assim, ficam arredados da tutela penal os trabalhos como o que aqui fica em análise, que se quedam pela banalidade, caindo no monótono pano urbanístico da generalidade nacional, comum a tantos outros empreendimentos .”(…) No caso sub judice falamos tão só da instrução documental de um procedimento administrativo de loteamento, cumprindo características de habitabilidade e preceitos regulamentares, possuindo como produto final um projecto comum e banal (…). O que de essencial revela o projecto arquitectónico do queixoso é a sua funcionalidade no aproveitamento e valorização do prédio e o direito de autor não tutela a funcionalidade mas a criação artística e ideal. ( cfr requerimento para abertura de instrução subscrito pelos três primeiros arguidos).
Em síntese, entendem os arguidos que só uma “obra”, original é protegida pelo CDADC e que o projecto de arquitectura realizado pelo assistente não pode reputar-se original, pelo que não é abrangida pelo CDADC, nomeadamente em matéria de tutela penal.
Vejamos então, cada um destes aspectos: a originalidadeou criatividade, como característica de toda a obra protegida pelo CDADC e a questão da sua presença no projecto do assistente, em causa nos autos.
b.1.- Da originalidade ou criatividade da obra protegida pelo direito de autor.
A originalidade enquanto característica da obra, não se confunde com a noção legal que resulta dos arts 2º e 3º do CDADC, os quais, como aludido, apenas distinguem entre as obras que não têm por base uma obra pré-existente (obras originais) e as que derivam de uma outra, designadamente traduções, sumários, dramatizações, etc. (obras equiparadas a originais).
A originalidade que aqui importa, é tomada pela doutrina e jurisprudência como requisito ou característica da obra protegida pelo Direito de Autor, operando como linha de fronteira entre a obra susceptível de ser objecto da protecção do Direito de Autor e aquela que fica fora dessa protecção.
Como lapidarmente afirma o Prof. Oliveira Ascensão, [4] “…o Direito de Autor é justificado pela tutela da criação e não pela repressão da imitação. A repressão da imitação poderá fazer-se por recurso a vários ramos do direito, como a concorrência desleal. Só entra, porém, no domínio do Direito de Autor quando o objecto da imitação for uma verdadeira obra literária ou artística.”
No seu significado mínimo e nessa medida exigido como requisito por todas as legislações nacionais e instrumentos internacionais, a originalidade corresponde a ausência de cópia, pois não se protege a obra que corresponda a mera cópia de uma outra. [5]
Mas não bastará a ausência de cópia para que nos encontremos perante obra protegida pelo direito de autor.
O art. 1º do CDADC começa por definir a obra protegida como criação intelectual, por qualquer modo exteriorizada, acrescentando o art. 2º que a protecção do direito de autor não depende do género, forma de expressão, mérito, modo de comunicação e objectivo. As obras e projectos de arquitectura referidos na exemplificação do art. 2º ( als g) e l, como vimos), encontram-se, pois, abrangidos pela delimitação legal do conceito de obra protegida, pelo que hão-de obedecer às características gerais exigidas a qualquer obra, para considerar-se abrangida pela especial protecção do direito de autor, nomeadamente na sua vertente penal em causa nos presentes autos.
Ao referir-se a criação intelectual, o CDADC inscreve a obra protegida no campo da cultura e não, apenas, no universo das transacções económicas. Por outro lado, a obra não se confunde com o suporte material que a encerra, o corpus mechanicum. “ A obra musical não é a partitura musical: por isso não se perde, se se destruírem todos os exemplares, enquanto houver a possibilidade de ser reconstruída. A obra arquitectónica não é o prédio: ainda que este seja demolido, a imitação não se tornou livre, pois a traça pode ser reconstruída.” [6] . A obra é incorpórea, ainda que não dispense a sua exteriorização por qualquer forma.
Daí que a lei não proteja o projecto de arquitectura concretamente identificado, mas a criação intelectual nele materializada, pelo que o projecto não deixa de ser protegido mesmo que venha a ser destruído, mas também só é protegido na medida em que para além da sua existência material e da função utilitária que pode desempenhar, encerre uma verdadeira criação intelectual.
O seu carácter criativo, constitui, pois, característica necessária da obra protegida pelo Direito de autor, exigindo-se um mínimo de criatividade, encarada no nosso ordenamento jurídico com o sentido de originalidade ou individualidade, que – como refere Oliveira Ascensão -, “…por vezes se torna até essencial para determinar se há violação do direito de autor preexistente.”(cfr. ob. cit. p. 88). Reconduzem-se, pois, à noção de criatividade usada no art. 1º do CDADC, o conceito doutrinário de originalidade e o conceito legal de individualidade própria (vd art. 196º do CDADC- crime de contrafacção), afastando se o nosso direito de autor da noção de marca da personalidade do autor deixada na obra, desenvolvida sobretudo pelo direito francês.
Entende Oliveira Ascensão que a apreciação positiva da individualidade deve ficar num patamar mínimo. Diz ele, “ Parece-nos de facto impossível condicionar a tutela à verificação da marca da personalidade de determinado autor impressa numa «obra». A cultura de consumo leva a que a personificação seja mínima em grande número de casos. Mas fica sempre a exigência de que haja uma criação. Essa é imposta por lei (art. 1º ) e marca a diferença”.
Também a este propósito, refere Luiz Francisco Rebelo [7] que originalidade é sinónimo de criatividade e não de novidade, acrescentando, com base no teor do art. 196º nº1 (contrafacção), que a obra é original desde que “tenha individualidade própria”.
No mesmo sentido tem sido o entendimento da jurisprudência. Como pode ler-se, entre outros, no Ac STJ de 23.03.2000 “ A primeira condição para a protecção de uma obra literária, científica ou artística é a sua originalidade, exteriorizada por certa forma.” [8]
Diga-se ainda a este respeito, que a criatividade da obra, resultante da sua concepção como criação intelectual no art. 1º do CDADC, não se confunde com o mérito, que o art. Art. 2º, corpo, expressamente afasta como requisito da obra protegida.
A lei exclui o mérito, enquanto manifestação de um juízo estético ou artístico da obra, que traduza a avaliação gradativa da mesma à luz de critérios daquela natureza.. É indiferente, pois, que a obra seja mais ou menos valiosa, que represente um nível inferior, superior ou mediano (o que quer que isto signifique) da criação artística, literária ou científica, para merecer a tutela do direito de autor.
O mínimo exigível é o que corresponde ao necessário para que possa falar-se em criação intelectual. Como escreve o Prof. Oliveira Ascensão, “… se só há criação quando se sai do que está ao alcance de toda a gente para chegar a algo de novo, a obra há-de ter sempre aquele mérito que é inerente à criação, embora não tenha mais nenhum: o mérito de trazer algo que não é meramente banal.”. (cfr. ob. cit. p. 93.
b.2. Da criatividade ou originalidade do projecto de arquitectura no caso concreto.
A questão que ora nos ocupa remete-nos, antes de mais, para o problema dos critérios de aferição da criatividade, ou seja, critérios que nos permitam concluir encontrarmo-nos, ou não, perante uma criação intelectual. “Justamente porque é necessário que haja um mínimo de criatividade, não se pode prescindir dum juízo de valor(…) Terá de haver assim critérios de valoração para determinar a fronteira entre a obra literária ou artística e a actividade não criativa.” – Cfr Oliveira Ascensão, ob. cit. p. 90.
Refere ainda o autor a este respeito: “ Se não se exige que se reconheça uma personalidade, exige-se que se reconheça positivamente que há um mínimo de criação. Um novo elemento, que não constava do quadro de referências da comunidade, não se apresentava como óbvio, nem se reduz a uma aplicação unívoca de critérios pré - estabelecidos, foi introduzido por um acto criativo. Este é o fundamento da atribuição do Direito de Autor. “
Pode, pois, considerar-se com aquele autor que o carácter criativo da “obra”, a que alude o art. 1º do CDADC, depende de não constituir cópia de outra obra (requisito mínimo), não constituir o resultado da aplicação unívoca de critérios pré – estabelecidos, nomeadamente de natureza técnica, em que estejam ausentes verdadeiras escolhas ou opções do autor e traduzir um resultado que não seja óbvio, banal, e que, portanto, permita distingui-lo de outros, reconhecer-lhe uma individualidade própria, enquanto obra, independentemente do suporte material que a encerra.
Afigura-se-nos, pois, que são estes os critérios válidos para decidir se, um projecto de arquitectura como o que está em causa nos autos, pode considerar-se obra protegida, não sendo de exigir que os mesmos revistam carácter artístico, [9] o que o CDADC prevê para as obras de arte aplicadas e semelhantes (cfr art. Art. 2º nº1 l) ), precisamente porque o Código continua a não fazer tal exigência para os projectos de arquitectura e restantes espécimes ali previstos, apesar da opinião de Oliveira Ascensão [10] em sentido diverso, ainda na vigência de versões anteriores.
Um outro problema a considerar, respeita à questão de saber se a qualificação da “obra” como criação artística, abrangida pelo direito de autor, é mera matéria de interpretação da lei, da responsabilidade exclusiva dos juízes que compõem o tribunal, ou se a questão implica a averiguação e prova de matéria de facto que se mostre relevante.
Em nosso entender, a questão tem uma dimensão essencialmente normativa e jurídica e outra factual.
A primeira, em que nos situámos até ao momento, respeita à interpretação das normas e princípios legais aplicáveis, maxime, os constantes do CDADC, de modo a concluir, ou não, pela exigência de um conteúdo mínimo de criatividade, seu enquadramento e alcance. A segunda – a dimensão factual – tem que ver com a necessidade – ou não - de a obra ou obras concretamente em causa serem apreciadas, à luz de parâmetros técnicos e artísticos, por quem disponha de conhecimentos especializados nas respectivas áreas, de modo a habilitar o tribunal a decidir se estamos perante obra protegida pelo direito de autor ou não, ou seja, recorrendo à prova pericial (cfr. art. 153º e sgs do C.P.P.).
A este respeito, afigura-se-nos evidente que há domínios e situações em que basta a experiência e o senso comum que se pressupõe nos juristas em geral e nos juízes em particular, para decidir se estamos perante criação intelectual, como será o caso da generalidade das obras literárias e mesmo das artes plásticas ou artesanais.
Outros domínios e situações há em que só a apreciação dos factos por parte de especialistas permite ao tribunal decidir a final.
Abreviando razões, entendemos ser este o caso dos projectos de arquitectura, como os que se discutem nos autos. Por um lado, a correcta compreensão do conteúdo dos projectos, o reconhecimento dos seus elementos e relações que devem estabelecer-se entre eles, exige conhecimentos técnicos e mesmo artísticos, nesta área específica, que o tribunal não detém. Por outro lado, é igualmente importante o conhecimento da prática corrente, no que respeita às características dos projectos de arquitectura do ponto de vista da sua individualidade, nomeadamente no que concerne à existência, ou não, de modelos ou projectos standard, despersonalizados, categoria em que, na alegação dos recorridos, se incluirá o projecto do Assistente, valoração esta que também exige especiais conhecimentos e experiência.
Vale isto por dizer que, em casos como o presente, se mostra indispensável o recurso a prova pericial(cfr art. 151º do C.P.P.), pois só a apreciação concreta do projecto do Assistente por quem possua experiência e saber nos domínio da arquitectura, permite ao tribunal dispor de elementos seguros, credíveis e, portanto, convincentes (descontadas as divergências que mesmo nos diversos campos especializados sempre existirão). Realizada a perícia, fica então o tribunal em condições de decidir pela indiciação suficiente, ou não, do carácter criativo do projecto de arquitectura do assistente, assumindo-se estes conceitos com o sentido e alcance que procurámos fixar supra, o que, por se tratar da determinação do sentido e alcance do regime jurídico aplicável, é da responsabilidade do tribunal.
No caso de resposta positiva, ou seja, concluindo que o projecto do Assistente deve considerar-se criação intelectual abrangida pela tutela penal conferida pelo CDADC, impor-se-á, então, decidir – para efeitos do preenchimento dos elementos dos tipos de contrafacção e de violação de direitos morais, previstos nos artigos 196°, n.º 1, 197° e 198°, alínea b) do CDADC - da identidade, total ou parcial, entre os projectos do assistente e do arguido ….
Pelas razões ora aduzidas, também a comparação entre os projectos do Assistente e do arguido …., com vista a esclarecer o tribunal sobre a existência e relevância de diferenças e semelhanças entre eles, implica o recurso a prova pericial, como terá sido, aliás, entendimento do MP no Inquérito e do Assistente no presente recurso, ao solicitar a realização de perícia nesta Relação.
Ambas as questões – a criatividade do projecto do assistente e a individualidade do projecto do arguido …. face àquele – podem ser objecto da mesma perícia.
Assim, uma vez que o MP ordenou a realização de uma perícia no Inquérito, impõe-se apreciar agora da natureza e valor probatório da diligência respectiva, com vista a apurar se encontramos aí o necessário contributo pericial para decidir dos problemas ora enunciados - a criatividade do projecto do assistente e a individualidade do projecto do arguido …. face àquele – e, na afirmativa, se o tribunal está vinculado às conclusões da designada perícia, nos termos e para efeitos do disposto no art. 163º do C.P.P., questão esta que é expressamente suscitada pelo MP recorrente.
Vejamos então.
3.1.1.2. – Da prova pericial
No inquérito, o MP começou por solicitar à Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) a indicação de pessoa idónea para prestar esclarecimentos relativamente à matéria de direitos de autor em projectos de arquitectura (cfr fls 255). Indicados dois advogados pela SPA e ouvidos os mesmos, acabou o MP por nomeá-los peritos, no despacho de fls 265, para emitirem parecer relativamente à violação de direitos de autor em projectos de arquitectura e concretamente com vista a esclarecer sobre a eventual utilização abusiva de elementos-tipo dos projectos de arquitectura elaborados pelo ora assistente.
Os senhores advogados nomeados peritos apresentaram um termo de peritagem a fls 278 e 279, onde concluem: - “ …parece-nos não existir individualidade nem originalidade das plantas apresentadas posteriormente, bem pelo contrário, o que parece evidenciar a reprodução de uma obra anterior, resultando numa clara violação do disposto nos arts 2º nº1 als g) e l), 68º nº 2 al. j) e 159º, do Código do Autor e dos Direitos Conexos.”.
Parece-nos evidente, porém, que a diligência levada a cabo pelos senhores advogados não pode considerar-se uma perícia, nos termos e para efeitos do disposto no art. 151º e sgs, do CPP, como pretende o MP recorrente.
Na verdade, a prova pericial visa a comprovação de determinados factos que, integrando o objecto da prova, apenas podem ser observados, ou que apenas podem ser compreendidos e valorados cabalmente, em virtude de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, que não é suposto encontrarem-se nos magistrados e juristas em geral.
Na perícia, procura-se a narração de factos por quem possa percepcioná-los por força dos especiais conhecimentos que detém, ou a extracção de conclusões a partir de factos que somente podem ser averiguados e analisados por quem detenha especiais conhecimentos na matéria em causa.
Entre os dois principais modelos de prova pericial, o processo penal português adoptou o chamado modelo de perícia oficial, seguido na maioria dos países continentais - por contraposição ao modelo de perícia contraditória dos países anglo saxónicos -, que se caracteriza por ser o tribunal ou outra autoridade judiciária a nomear o perito (e não as partes a apresentá-los separadamente, como sucede nos ordenamentos de perícia contraditória), que presta o seu contributo sob a direcção do tribunal (e não da parte que o apresentou), não sendo considerado testemunha (contrariamente ao que sucede nos sistemas de common law, em que têm a designação de expert witness), antes gozando de um estatuto especial.
Daí que, de acordo com o disposto no art. 152º do C.P.P., a perícia deva ser realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado e, subsidiariamente — maxime quando não for possível a realização da perícia por um daqueles organismos —, por perito nomeado pelo tribunal [ou pelo MP na fase de inquérito] de entre pessoas que integram uma lista existente em cada comarca. Na sua falta ou impossibilidade, pode o tribunal nomear pessoa que não conste de lista de peritos, fazendo incidir a sua escolha em pessoa de reconhecida honorabilidade e competência na matéria em causa.
Por outro lado, contrariamente à regra geral vigente no direito civil, segundo a qual a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (art. 389.º do Código Civil), a prova pericial representa em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), pois o art. 163.º do CPP dispõe expressamente que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o qual deve fundamentar a sua divergência sempre que a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos.
Só pode valer, pois, como prova pericial, gozando da especial força probatória agora apontada, a perícia realizada por pessoa de reconhecida honorabilidade e competência, em matéria técnica, científica ou artística, cujo conhecimento é necessário para a percepção ou a apreciação de factos que integrem o objecto do processo.
Assim, afigura-se-nos insofismável que a correcta delimitação do objecto das diversas ciências, técnicas e artes, deve assumir-se como questão metodológica fundamental na decisão sobre a necessidade da perícia, o âmbito da mesma e sobre quem deve realizá-la, sob pena de poderem ocorrer desvios decisivos em matéria de aquisição e valoração da prova. Se em muitas áreas, nomeadamente nas chamadas ciências exactas, as dúvidas não serão muitas, outras situações há em que abundam as incertezas, pelo que a questão deve ser resolvida, sempre que necessário, com a colaboração – prévia à própria perícia - das áreas do saber envolvidas, tanto mais que o art. 152º nº2 prevê a realização de perícia interdisciplinar quando a mesma exija a intervenção de especialistas em matérias distintas.
Ora, no caso sub judice, a perícia a realizar sempre teria que ser levada a cabo ou, pelo menos, ter a participação de arquitecto, de reconhecida honorabilidade e competência em matéria de arquitectura, pois estava em causa, como aludido, a eventual caracterização do projecto de arquitectura do assistente como criação intelectual”. Isto é, como obra, abrangida pelo CDADC, e ainda, a sua comparação com o projecto apresentado pelo arguido ..., com vista a assinalar, de forma fundamentada e rigorosa, as suas semelhanças e diferenças à luz de parâmetros próprios da arquitectura, enquanto disciplina técnica e artística.
Por outro lado, resulta do regime legal que a decisão de questão jurídica, enquanto tal, não pode ser objecto de perícia em sentido próprio, visto esta pressupor a necessidade de recorrer a conhecimentos especializados diferentes dos supostos no tribunal, a quem compete decidir do direito, sendo certo que a decisão sobre a eventual violação de direitos de autor por projecto de arquitectura, encerra questão jurídica que, não obstante a sua especificidade, cabe ao tribunal resolver.
Logo, não podem os senhores advogados ou outros juristas, enquanto tal, isto é na qualidade de especialistas em qualquer ramo ou área do direito, ser peritos, no sentido próprio que tal designação tem em sede de prova pericial, sem prejuízo de o poderem ser em função de outra qualificação de natureza técnica, científica ou artística que eventualmente cumulem com a formação jurídica, o que não é o caso dos autos, pois apenas são identificados como advogados.
Natureza e alcance diversos tem a sua intervenção, na qualidade de advogados ou juristas, enquanto autores de parecer técnico (cfr art. 165º nº3 do CPP), que os sujeitos processuais entendam juntar, no âmbito da sua autonomia de actuação processual, com vista a influenciar a decisão, de facto ou de direito, da autoridade judiciária, por força da especial valia técnica, científica ou artística, de quem os emite, mas que não se confunde com a prova pericial.
Concluímos, assim, independentemente de análise mais profunda do conteúdo do relatório (que, em todo o caso, se nos afigura ser ainda bastante insatisfatório do ponto de vista da sua fundamentação), que o acto ou diligência realizado em inquérito pelos senhores advogados signatários do “Termo de peritagem” de fls 278 e 279, não constitui uma perícia em sentido próprio, por não ter sido levada a cabo por quem possua especiais conhecimentos, técnicos e/ou artísticos em matéria de arquitectura, pelo que não se lhe aplica o regime da prova pericial, maxime o disposto no art. 163º do C.P.P. .
Uma vez que a perícia era importante para a decisão instrutória, podia o Juiz de Instrução ordenar a sua realização mesmo oficiosamente. Não o fez, porém, o senhor juiz a quo, nem tal foi requerido no decurso da instrução, pelo que, mesmo a entender-se que a falta de realização da perícia em sentido próprio pode constituir a nulidade de Insuficiência de Instrução, prevista no art. 120º nº 2 d) do CPP, [11] tal nulidade sempre se encontraria sanada por não ter sido invocada até ao encerramento do debate instrutório – cfr nº3 do citado art. 120º do CPP.
Não procede, pois, o fundamento invocado pelo MP recorrente a propósito da vinculação do tribunal a prova pericial, nos termos do art. 163º do CPP.
3.2. – De ambos os recursos
3.2.1. - Da suficiência dos indícios.
Como vimos, entende o Assistente que resulta da factualidade indiciada, com base na prova produzida em inquérito e instrução, que o projecto de loteamento (que não se confunde com o projecto de arquitectura dos edifícios ou construções) apresentado pelo arguido …, não assume individualidade ou características próprias, face ao projecto de loteamento elaborado pelo Assistente, contrariamente ao entendimento manifestado pelo senhor juiz a quo na decisão de não pronúncia.
Por sua vez, o MP recorrente entende que, sendo a fase de instrução um momento processual em que a prova recolhida deverá ser apreciada como meramente indiciária da prática do crime, diferente da que deverá suportar uma decisão de condenação, deveria o Mmº Juiz haver considerado indiciada a matéria de facto constante da acusação, permitindo que, em sede de audiência de julgamento, onde vigora em pleno o principio do contraditório, pudesse operar uma mais substancial discussão dos elementos em causa.
São questões interligadas, na medida em que a valoração da suficiência dos indícios depende do respectivo critério normativo, podendo ser decisivo, em situações de dúvida, que a nossa lei de processo acolha, ou não, a perspectiva veiculada pelo MP recorrente.
3.2.1.2. – O critério legal
Poderá entender-se, com o MP, que “ Sendo a fase de Instrução um momento processual em que a prova recolhida deverá ser apreciada como meramente indiciária da prática do crime, diferente da que deverá suportar uma decisão de condenação… “, deverão os arguidos ser pronunciados, permitindo-se que em audiência de julgamento, onde vigora em pleno o princípio do contraditório, possa operar-se mais substancial discussão dos elementos em causa?
Tanto no Inquérito como na Instrução, a existência de indícios suficientes significa que os indícios, com o sentido de conjunto da prova recolhida nas fases preliminares, são suficientes para submeter o arguido a julgamento e isso acontece quando a condenação for provável, como decorre da noção legal de indícios suficientes contida no art. 283 º nº 2 do CPP
Sobre o significado da locução possibilidade razoável de condenação, utilizada neste preceito, podem distinguir-se três correntes fundamentais, como refere Jorge Noronha e Silveira:
“- uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento;
- numa segunda resposta possível, é necessário uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição;
- uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação.” [12]
Com Carlos Adérito Teixeira, [13] entendemos que “…apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de condenação, (…) responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do estado de Direito democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo”[14]
O juízo ou convicção a estabelecer na fase de instrução, como no termo da fase de inquérito, há-de, pois, ser equivalente ao de julgamento, designadamente no que respeita à apreciação do material probatório e ao grau de convicção, que não se compadece com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida. A prova suficiente há-de corresponder à que “… em julgamento levaria à condenação, se aquele ocorresse com o quadro probatório, no tempo e nas circunstâncias que determinam o libelo acusatório“ [15] ou o despacho de pronúncia.
3.2.1.1. – Apreciação dos indícios.
Precisado o critério legal, apreciemos agora a prova recolhida em inquérito e instrução com interesse para a decisão das questões factuais prévias, que constituem pressuposto da apreciação das restantes questões de que pode depender a decisão de pronúncia ou não pronúncia.
Os factos prévios relevantes, de cuja indiciação suficiente sempre dependeria a pretendida pronúncia dos arguidos, são os respeitantes à caracterização do projecto de arquitectura do loteamento elaborado pelo assistente como “criação intelectual” abrangida pelo CDADC e, em caso de resposta positiva, a falta de individualidade do projecto apresentado pelo arguido … face ao projecto do Assistente.
As provas recolhidas, tal como invocado pelo Assistente no seu recurso, são, essencialmente:
- os projectos apresentados pelo Assistente e pelo Arguido na Câmara Municipal de Évora que constituem os oito dossiers juntos aos autos;
- Parecer e declaração do arquitecto ..., de 17.07.2003
- Memória descritiva subscrita pelo arguido ... com o requerimento de substituição;
- declarações do assistente;
-“ Termo de peritagem.”
Vejamos.
a) Na medida em que se encontram desacompanhados da sua apreciação por quem detenha especiais conhecimentos técnicos e artísticos de arquitectura, os projectos juntos aos autos não habilitam o tribunal a concluir em qualquer dos sentidos, pelas razões expendidas a propósito da ausência de valor pericial da diligência ou acto, que deu origem ao “Termo de peritagem” de fls 278 e 279.
b) Quanto às declarações do arquitecto P., a fls 143 e 144, complementadas pelo Parecer de 17.07.03 (fls 58), vão as mesmas no sentido pretendido pelo MP e o assistente, relativamente à falta de individualidade do projecto do arguido P. , face ao do assistente, constituindo, nessa medida, indício - na terminologia legal para as fases preliminares – do facto respectivo. No entanto, a testemunha não é aí confrontada com a eventual relevância das diferenças verificadas, nomeadamente no que respeita à exclusão de disposições regulamentares quanto à arquitectura dos prédios (alçados tipo do desenho 7), sendo certo que sempre as suas conclusões, designadamente no que respeita à convicção de que se trata de um “plágio” teriam que ser confirmadas por outros elementos probatórios.
Por outro lado, não se refere a testemunha P. à questão prévia da caracterização dos projectos como obras protegidas, ou seja, à individualidade e criatividade exigidas pelo CDADC, à luz de parâmetros arquitectónicos e não jurídicos, pelo que sobre esta questão nada adianta.
c) As declarações do Assistente, nada esclarecem sobre a individualidade ou criatividade do seu projecto, e no que respeita às semelhanças do projecto do 4º arguido, sempre teriam que ser enquadradas e complementadas por perícia oficial que, eventualmente, o corroborasse.
d) A memória descritiva subscrita pelo arguido … com o requerimento de substituição –fls 50 e 51 – nada acrescenta de relevante ao já referido, confirmando que o projecto apresentado pelo arguido …. pretende introduzir algumas alterações ao conteúdo do projecto de loteamento do assistente, ou seja, introduz caves em todos os lotes e não propõe qualquer projecto tipo, mantendo os parâmetros urbanísticos já anteriormente definidos no projecto de loteamento do assistente.
e) Quanto ao “Termo de peritagem” o essencial está dito. Não se trata de relatório pericial e mesmo a considerar-se parecer técnico emitido por advogados (cfr art 165º nº3 do CPP) é, enquanto tal, praticamente irrelevante, pois contém sobretudo conclusões genéricas, escassamente fundamentadas, tanto no plano dos factos, como do direito.
Concluímos, pois, que da prova recolhida em inquérito e instrução no caso concreto (onde não se inclui, como vimos, qualquer perícia em sentido próprio) não resultam suficientemente indiciados os factos de que depende a condenação dos arguidos pelos crimes que lhes vêm imputados, pois não se indicia suficientemente, desde logo, que o projecto de loteamento do assistente constitua obra protegida pelo direito do autor, nem tão pouco – sempre se diga - a falta de individualidade do projecto apresentado pelo arguido …. face ao projecto do Assistente.
3.2..2. – Conclusão relativa a ambos os recursos
Vejamos agora, em síntese, a conclusão a que chegámos sobre cada uma das questões suscitadas pelos recorrentes.
A. - Do recurso do MP
a) Quanto ao especial valor da prova pericial em processo penal e a valoração dessa mesma prova feita in casu pelo tribunal a quo, face ao preceituado no art. 163º do CPP, não merece censura a decisão do tribunal a quo, pois, como referido, por não estar em causa prova pericial não é sequer aplicável o disposto no art. 163º do C.P.P..
b) Dado o conceito de indícios suficientes adoptado pelo nosso CPP, nomeadamente no que à decisão instrutória respeita (cfr arts. 308º nº1 e 283º nº2, do CPP), não deve o tribunal de instrução proferir despacho de pronúncia com vista a que possa apurar-se em julgamento, com maior certeza, a factualidade típica, ou, o mesmo é dizer, em caso de dúvida, pelo que concluímos pela inexistência de indícios suficientes de que aos arguidos pudesse vir a aplicar-se uma pena pelos crimes que lhe foram imputados pela acusação pública.
c) Relativamente ao crime de usurpação imputado aos três primeiros arguidos, fica prejudicada a questão de saber se estes não se limitaram a fazer uso normal do projecto de arquitectura, contrariamente ao decidido pelo senhor juiz a quo, por não se indiciar suficientemente que o projecto de loteamento do assistente constitua “criação intelectual” protegida pelo direito de autor e, consequentemente, pela tutela penal respectiva.
B. – Do recurso do Assistente. a) A questão de saber se o projecto de arquitectura do loteamento elaborado pelo assistente traduz um projecto original de arquitectura, que goza da protecção legal conferida pelo CDADC, encontra-se necessariamente pressuposta no recurso do assistente, na media em que da respectiva caracterização depende gozar a mesma, ou não, de tutela penal, o que mereceu resposta negativa deste tribunal de recurso pelas razões que se deixaram expostas .
b) Independentemente da resposta negativa à questão anterior, concluiu este tribunal ad quem, que não resulta da factualidade indiciada, com base na prova produzida em inquérito e instrução, que o projecto de loteamento apresentado pelo arguido …., não assume individualidade ou características próprias, face ao projecto de loteamento elaborado pelo Assistente, confirmando-se a decisão do senhor juiz a quo.
c) Ficou prejudicada a questão de saber se os três primeiros arguidos “alteraram” ou “adulteraram” a versão original do projecto de arquitectura do loteamento, excedendo desse modo os limites da autorização concedida pelo assistente (contrariamente ao decidido pelo senhor juiz a quo), por não se indiciar suficientemente que o projecto de loteamento do assistente constitui “criação intelectual” protegida pelo direito de autor e, consequentemente, abrangido pela tutela penal respectiva, como referido a propósito de questão similar suscitada pelo recurso do MP.
Confirmamos, assim, a decisão de não pronúncia recorrida, embora com fundamentação parcialmente diversa. III. Dispositivo
Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento aos recursos interpostos pelo MP e pelo Assistente, confirmando a decisão instrutória recorrida.
Custas pelo assistente, fixando-se em 7 UC a taxa de justiça – cfr arts 515º 1 b) do CPP e art. 87º nºs 1 b) e 2, do CCJ.
Évora, 10 de Julho de 2007
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)
(António João Latas)
(Maria Guilhermina Vaz Pereira Santos de Freitas)
(Carlos Jorge Viana Berguete Coelho)
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[1] Assim Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II, 2ªed., 2000 p. 936 e Germano M. Silva, Curso de Processo Penal III, 2ªed. Ed. Verbo-2000 p. 368, afirmando este professor que “ Não há nunca renovação de prova quando tenha tido lugar a documentação da prova produzida em audiência, pois nesse caso a renovação é inútil.”. [2] F. Dias, Para Uma Reforma Global do processo Penal Português in Para uma Nova Justiça Penal, Liv Almedina, 1983, p. [3] Apesar de a sua publicação e vigência em matéria penal ser posterior à data dos factos (cfr art. 9º da Lei 50/2004), considerar-se-á o texto actual do CDADC, na medida em que a Lei 50/2004 não introduziu alterações com relevância directa ou indirecta no regime penal aplicável ao caso sub judice. [4] Cfr Direito Civil. Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra Editora-1992 p. 11. [5] Como refere Maria Vitória Rocha, para que ser protegida pelo copyright, a obra apenas tem que ser criada de forma independente, tanto no direito inglês, como norte-americano, pois apesar de se referirem à originalidade da obra, esta é igual a ausência de cópia. – cfr A Originalidade como requisito de protecção do Direito de Autor. Algumas reflexões - www.verbo jurídico.net/com/org (datado de 23.06.03), p. 15 [6] Oliveira Ascensão, ob. cit. . 61-2. [7] Cfr Introdução ao direito de autor , vol I, Lisboa-1994 citado por Maria Vitória Rocha, est. cit. p. 20. [8] Cfr CJ STJ I/p. 143. Em termos semelhantes, Ac RL de 2.07.2002, CJ IV/p. 65 e Ac RC de 22.01.2002, CJ I/p. 21 [9] Parece-nos ser este o sentido assumido no Ac STJ de 18.06.1997, em cujo sumário pode ler-se: “ Para que uma obra de arquitectura beneficie de protecção legal não se torna necessário que constitua uma obra de arte arquitectónica, uma obra de arte original, pois o seu mérito, propriamente dito, é irrelevante para o efeito.”. [10] Cfr ob. cit. p. 97, pronunciando-se o autor no sentido de ser ainda de exigir um mínimo de carácter artístico no caso dos projectos, esboços e obras plásticas respeitantes à arquitectura, ao urbanismo, à geografia ou às outras ciências, embora se refira particularmente às obras plásticas. [11] Neste sentido (nulidade sanáve) , pode ver-se o Ac STJ de 02.02.1994, BMJ 434/423. O entendimento jurisprudencial e doutrinal comum , porém, é que apenas as diligências de prova obrigatoriamente impostas em Instrução podem consubstanciar a nulidade de insuficiência de Instrução prevista na al. d) do nº 2 do art- 120º do C.P.P. e que as diligências obrigatoriamente impostas em Instrução são o interrogatório de arguido, quando solicitado, e o debate instrutório.- Vd, por todos, Ac STJ de 03.05.2000, CJ II/180, Ac RL de 03.02.1998, CJ I/p. 151, Ac RE de 27.10.98, CJ IV/285, Ac RP de 17.03.04 acessível em www.dgsi.pt e Germano M. Silva, Curso de Processo Penal II, Verbo-1999, p. 80. [12] Cfr O Conceito de Indícios Suficientes no Processo penal Português in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. F. Palma, Almedina-2004, p. 161 [13]“ Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e “instância “ de legitimação concreta do poder-dever de acusar in Revista do CEJ, nº1 – 2004 p. 160. Vd, neste autor e em Noronha de Silveira, est. cit. a cabal exposição dos fundamentos da posição adoptada e a criteriosa refutação das posições que, em menor ou maior escala, apelam a um menor grau de convicção que o exigido em julgamento.. [14] Princípio in dubio pro reo, cuja pertinência na decisão instrutória resulta da consagração constitucional das garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência acolhida no art. 32º nº2 da CRP, conforme se reconheceu no Ac TC 439/2002 de 23 de Outubro- DR II de 29.11.2002 , onde pode ler-se, “ … a interpretação normativa dos artigos citados [ 286º nº1, 298º e 308º nº1, do CPP] que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32º nº2, da Constituição”. [15] Cfr Carlos Adérito Teixeira, est. cit. pp 161 e 160. Vd em sentido idêntico J. Noronha e Silveira, est. cit. pp. 171 e 172, 180 e 181; Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora-2003 pp. 90-4 e Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968) pp. 38 e 39.