RECLAMAÇÃO
Sumário

Texto Integral

I – Relatório;

Reclamante/recorrente: M... Fidalgo;
1º Juízo criminal de Guimarães – processo nº 835/2007.

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Por sentença transitada em julgado (confirmada pela Relação), proferida no processo em referência, foi julgado improcedente o recurso interposto pela arguida, ora reclamante, e mantida a sanção acessória de inibição de conduzir por 105 dias, que lhe fora aplicada pela autoridade administrativa (DGV).

Na parte final dessa sentença ordenou-se a notificação da arguida com a advertência de que, após trânsito, teria o prazo de 15 dias úteis para entregar a carta de condução no tribunal (1º juízo criminal de Guimarães), nos termos do art. 182º, nº 2, alínea a) do Código da Estrada, sob pena de incorrer na prática dum crime de desobediência, de acordo com o nº 3 do art. 160º do mesmo diploma.

Em requerimento que fez juntar aos autos em 21.11.2007, a arguida informou não poder efectuar a entrega da carta de condução no tribunal, por a ter já entregue na Direcção-Geral de Viação, em momento anterior à própria decisão definitiva.

Em resposta ao pedido de informação do Tribunal, a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária – ANSR (sucessora da entretanto extinta DGV) – informou em 03.03.2008 que a arguida não entregara ali a sua carta, para cumprimento da sanção acessória da inibição de conduzir, aplicada no processo de contra-ordenação nº 2466689501.

Notificada para dizer o que tivesse por conveniente, veio a arguida, em 31.03.2008, dizer do seu desconhecimento quanto à fiabilidade da informação prestada pela ANSR e comunicar que tem domicílio em Portugal e Espanha, onde desenvolve actividade profissional, pelo que requisitou às autoridades espanholas a emissão de «permisso de condución», para o que lhe foi exigida a entrega da sua carta portuguesa, o que satisfez.
A entidade espanhola exigiu-lhe a entrega de tal documento para o devolver à portuguesa DGV, pelo que lhe é materialmente impossível endereçá-lo agora ao Tribunal.

Por comunicação de 16.04 2008, a ANSR reiterou que não constava nos seus serviços a entrega da carta de condução da arguida.

Em 22.04.2008 a arguida reafirmou o que alegara em 31.03.2008.

Na sequência de despacho judicial de 29.04.2008, notificada a arguida, também na pessoa do seu defensor, para entregar, no prazo de 10 dias, toda e qualquer carta ou licença de condução de que fosse titular, emitida por autoridade portuguesa ou estrangeira, sob a expressa cominação de desobediência, apresentou aquela novo requerimento (de 16.06.2008) em que sustenta ser titular de licença de condução espanhola, que é propriedade do Estado Espanhol, não tendo Portugal jurisdição sobre o respectivo território.
Acrescenta que a entrega da carta de condução espanhola a impediria de transitar em território espanhol, decisão sancionatória que só as autoridades espanholas podem aplicar, manifestando o seu desconhecimento do dispositivo legal em que se alicerça a decisão que lhe impõe a entrega da carta estrangeira.
Requer, assim, seja declarada nula ou irregular a decisão que lhe impôs a entrega da carta de condução espanhola, por falta de fundamentação de facto e de direito, bem como a aclaração da mesma.

Em despacho judicial de 18.06.2008, assinalou-se que os fundamentos de facto e de direito sobre a sanção aplicada e modo de cumprimento, eram há muito do conhecimento da arguida e do seu defensor, já plasmados quer na decisão da autoridade administrativa, quer na da decisão do Tribunal de 1ª instância, confirmada pela Relação.
Consequentemente determinou se solicitasse à ANSR que comunicasse à competente autoridade espanhola o teor da decisão, bem como a aplicação da sanção acessória à arguida, se solicitasse à GNR de Fafe que informasse se a arguida tem sido vista a conduzir automóveis e para proceder à apreensão de qualquer título de condução encontrado na sua posse.

Em subsequente despacho judicial, de 20.06.2008, pronunciando-se sobre a alegada falta de fundamentação de facto e de direito e pedido de aclaração formulado pela arguida, escreveu o Mmº Juiz a quo que a sentença proferida refere carta de condução, não especificando se portuguesa ou espanhola, o que a lei também não distingue.
Conclui que a decisão em causa se limitou a concretizar a decisão proferida em sede do processo contra-ordenacional, a qual se encontra devidamente fundamentada, sendo clara.

Inconformada com o assim decidido, interpôs a arguida recurso para a Relação (dos despachos de fls. 160, de 29.04.2008 e de fls. 180-181, de 20.06.2008), em cuja motivação, para além da descrição dos factos já supra relatados, suscita, em suma, os vícios de omissão de pronúncia e prematuridade, de contradição, de falta de fundamentação, de ilegalidade e de inconstitucionalidade.

O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pela inadmissibilidade do recurso e pela rejeição do mesmo.

Em despacho judicial de 12.09.2008 (fls. 97-100 destes autos e 267-270 do processo principal), o Mmº Juiz a quo, invocando o disposto no nº 1 do art. 73º do DL 433/82, salientou que a possibilidade de recurso, em sede de procedimento contra-ordenacional, está restringida às sentenças ou aos despachos judiciais proferidos nos termos do art. 64º, não sendo o mesmo admissível de despachos interlocutórios, como seria o caso.
Mais se diz que os despachos recorridos se limitaram a dar execução à decisão proferida pela Direcção-Geral de Viação (mantida pelo Tribunal de 1ª instância e pela Relação), sendo que as decisões deles constantes se contêm na sentença, e que um entendimento diferente significaria violar o caso julgado.
Por último decide-se pela intempestividade do recurso, por ter sido interposto para além do prazo de 10 dias a que se refere o art. 74º, nº1 do DL 433/82, de 27.10, com as alterações introduzidas pelo DL 244/95, de 14.09.
Com tais fundamentos, foi rejeitado o recurso interposto pela arguida.

É desta decisão que vem a presente reclamação, na qual a arguida alinha, em síntese, as seguintes questões:

1ª O art. 73º do DL 433/82 não veda o recurso que a arguida interpôs de decisões posteriores à sentença final, sendo tal interpretação inconstitucional por violação do art. 32º da Constituição;
2ª À concreta situação dos autos – obrigatoriedade de entrega da carta de condução para cumprimento de inibição temporária de conduzir – são aplicáveis as normas do processo penal, nos termos das quais o recurso seria sempre admissível, pois que são aquelas que regulam o regime geral duma sanção acessória de inibição da condução;
3ª Apurado que a arguida não é titular de carta de condução portuguesa, porque a substituiu por carta de condução emitida pelo Estado espanhol, está em causa um desvio entre aquilo que foi sentenciado e aquilo que se pretende ver executado, sendo esse desvio que se pretende ver sindicado;
4ª As decisões recorridas pronunciaram-se sobre uma questão nova, superveniente, que produzem efeitos negativos na esfera jurídica da arguida, não se limitando a regular o normal desenvolvimento do processo, pelo que os respectivos despachos não podem ser qualificados como de mero expediente;
5ª Por efeito do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 27/2006, de 03.03, que julgou inconstitucional a norma constante do nº 1 do art. 74º do DL 433/82, com força obrigatória geral, o prazo de interposição do recurso ali previsto é de 20 dias, nos termos do art. 411º do CPP, pelo que o recurso é tempestivo.

Passemos então a apreciar cada uma destas questões.
II – Fundamentos;


a) Quanto às questões 1ª, 2ª, 3ª e 4ª;

Independentemente de saber quais os casos em que é admissível recurso de decisões proferidas em processo contra-ordenacional, ou mesmo em processo penal, o que aqui está em causa é o alcance dos despachos recorridos, o que se prende necessariamente com a caracterização, ou não, como matéria nova, da questão suscitada relativamente à titularidade da carta de condução espanhola, na posse da arguida, e da obrigatoriedade ou não da respectiva entrega, para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir, que lhe foi aplicada por decisão transitada em julgado.

Estatui o art. 69º do Código Penal, nos seus nºs 3, 4 e 5:

3 - No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.
4 - A secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à Direcção-Geral de Viação (hoje à ANSR) no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, bem como participa ao Ministério Público as situações de incumprimento do disposto no número anterior.
5 - Tratando-se de título de condução emitido em país estrangeiro com valor internacional, a apreensão pode ser substituída por anotação naquele título, pela Direcção-Geral de Viação, da proibição decretada. Se não for viável a anotação, a secretaria, por intermédio da Direcção-Geral de Viação, comunica a decisão ao organismo competente do país que tiver emitido o título. (parêntesis e sublinhado nossos).

Nos termos do artigo 500º do Código de Processo Penal:

1 - A decisão que decretar a proibição de conduzir veículos motorizados é comunicada à Direcção-Geral de Viação (hoje ANSR – Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária).

2 - No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.

3 - Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.

4 - A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.

5 - O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável à licença de condução emitida em país estrangeiro.

6 - No caso previsto no número anterior, a secretaria do tribunal envia a licença à Direcção-Geral de Viação, a fim de nela ser anotada a proibição. Se não for viável a apreensão, a secretaria, por intermédio da Direcção-Geral de Viação, comunica a decisão ao organismo competente do país que tiver emitido a licença (parêntesis e sublinhados nossos).


O artigo 182º, nº 2, alínea a) do Código da Estrada determina que, sendo aplicada a sanção acessória de inibição de conduzir efectiva, o seu cumprimento deve iniciar-se com a entrega do título de condução à entidade competente,

Da conjugação de tais preceitos extrai-se que as decisões reclamadas não se debruçaram sobre quaisquer questões novas, limitando-se a reiterar o que já resultava necessariamente do dispositivo da sentença que confirmou a decisão administrativa, traduzindo-se numa mera insistência do que já naquela fora ordenado (entrega da carta de condução pela arguida, seja ela nacional ou estrangeira, como decorre das citadas disposições legais).

Quem se colocou voluntariamente na situação de titular de licença de condução espanhola, após o trânsito em julgado daquela sentença, foi a arguida, sendo de realçar, em face do que se induz da sua alegação nos vários requerimentos que apresentou, que obteve essa licença por troca com a carta portuguesa, em termos semelhantes aos previstos na Portaria nº 501/96, de 25.09, que procedeu à transcrição da Directiva do Conselho nº 91/439/CEE, de 29.07.91, que também vincula o Estado espanhol (ou seja, a carta espanhola só lhe foi concedida por ser titular de carta portuguesa e nessa exclusiva medida – não por se ter submetido em Espanha a novo exame de condução).

Para o caso de já ser possuidora dessa licença espanhola, à data da sentença que confirmou a sanção de inibição de conduzir, então ainda seria mais grave e censurável a sua conduta, por ter conscientemente omitido esse facto ao Tribunal.

A proceder a capciosa tese da reclamante, estaria encontrada a forma de, generalizadamente, se incumprirem todas as decisões que aplicam a sanção acessória da inibição de conduzir, proferidas em qualquer Estado da União Europeia (até porque, lamentavelmente, ainda não vigora a “Convenção estabelecida com base no artigo k.3 do Tratado da União Europeia, relativa às decisões de inibição de conduzir”, publicada no Jornal Oficial nº C 216 de 10.07.1998, p. 0002 – 0012).

Como se afirma – e bem – no despacho reclamado, a admissão do recurso interposto pela arguida, redundaria na violação do caso julgado entretanto formado com a sentença transitada, uma vez que nele se iria voltar a discutir o que naquela fora decidido.

Assim sendo, improcedem as questões 1ª, 2ª, 3ª e 4ª suscitadas pela reclamante, tal como foram discriminadas supra.


b) Quanto à 5ª questão, sobre a (in)tempestividade do recurso;

É verdade que o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 27/2006, de 10.01.2006, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 74º do DL nº 433/82, na redacção que lhe foi dada pelo DL 244/95, conjugada com o art. 411º do CPP, quando dela decorre que, em processo contra-ordenacional, o prazo para o recorrente motivar o recurso é mais curto do que o prazo da correspondente resposta, por violação do princípio da igualdade de armas, inerente ao princípio do processo equitativo, consagrado no nº 4 do art. 20º da Constituição.

Acontece que essa declaração de inconstitucionalidade teve como pressuposta a interpretação dada pelos Tribunais de instância ao artigo 74º, nº 1 do DL 433/82, no sentido de que o prazo para recorrer era o de 10 dias, ali previsto, e que o prazo para a resposta era de 20 dias, por aplicação subsidiária do art. 411º do CPP.

Ora como esclareceu o mesmo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 573/2006, de 18.10.2006 (sem votos de vencido), «(…) no Acórdão n.º 27/2006, declarou-se a inconstitucio­nalidade, com força obrigatória geral, da norma questionada “quando dela decorre que, em pro­cesso contra-ordenacional, o prazo para o recorrente motivar o recurso é mais curto do que o prazo da correspondente resposta, por violação do princípioo da igualdade de armas, inerente ao princípio do processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição” (realce acrescentado), partindo da interpretação – seguida pelas decisões sobre que recaíram os juízos de inconstitucionalidade a cuja generalização procedeu, interpretação essa cuja cor­recção, em sede de direito ordinário, não competia ao Tribunal Constitucional apreciar – de que o prazo para a resposta era de 15 dias, superior ao prazo de 10 dias para a motivação do recurso da decisão da impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória de infrac­ção contra-ordenacional».

Diferentemente, no presente caso, o despacho reclamado não adoptou essa interpretação, ou seja, a decisão que a arguida pretendeu impugnar, pela via do recurso para esta Relação, não adoptou, expressa ou implicitamente, a interpretação considerada incons­titucional pelo Acórdão n.º 27/2006, pelo que naufraga a tese da reclamante, quanto à pretensão de beneficiar dum prazo mais longo (de 20 dias) para interpor e motivar o seu recurso.

Sendo-lhe aplicável o prazo de 10 dias previsto no citado nº 1 do art. 74º do DL nº 433/82, é manifesta a intempestividade do recurso deduzido pela arguida/reclamante, como bem decidido foi pelo Mmº Juiz a quo.

Em conclusão:

I – Das disposições conjugadas dos artigos 69º do Código Penal, 500º do Código de Processo Penal e 182º, nº 2 do Código da Estrada, decorre que o condenado na sanção acessória de inibição de conduzir, seja titular de licença de condução nacional ou estrangeira, deve entregar esse título na secretaria do tribunal, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.
II – Tratando-se de carta de condução estrangeira, a secretaria do tribunal envia a licença à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ex-DGV), a fim de nela ser anotada a proibição. Se não for viável a apreensão, a secretaria, por intermédio da ANSR, comunica a decisão ao organismo competente do país que tiver emitido a licença.
III – O cumprimento da sanção de inibição de conduzir inicia-se, consoante os casos, com a entrega da carta de condução à autoridade nacional competente, com a anotação ao título de condução efectuada pela ANSR, ou com a confirmação do recebimento da comunicação da ANSR pela autoridade estrangeira competente.
IV – Transitada em julgado a sentença que julga improcedente o recurso interposto da decisão administrativa, que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, não são susceptíveis de recurso os despachos judiciais subsequentes que se limitam a reiterar a ordem para o arguido entregar a carta de condução (nacional ou estrangeira) na secretaria do Tribunal, que determinam a sua apreensão pelas autoridades policiais, ou que comunicam às autoridades competentes a aplicação de tal sanção acessória.
V – Não obstante a jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 27/2006, com força obrigatória geral, o prazo de 10 dias para interpor e motivar o recurso em processo de contra-ordenação, previsto no art. 74º, nº 1 do DL nº 433/82, mantém plena vigência, desde que não se lhe faça corresponder um prazo mais longo para a subsequente resposta (como decorre do decidido no Acórdão nº 273/2006 do mesmo Tribunal).


III – Decisão;

Em face do exposto, ao abrigo do disposto no art. 405º, nº 4 do Código de Processo Penal, desatende-se a reclamação.

Custas pela Reclamante, fixando-se em 3 UC´s a taxa de justiça (art. 8º, nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/08, de 26.02, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 22/2008, de 24.04 e sucessivamente alterado pela Lei nº 43/2008, de 27.08 e pela Lei nº 181/2008, de 28.08, aqui aplicável nos termos do art. 27º, nº 2 do citado DL e do art. 3º da Lei 181/2008.



Guimarães, 23.10.2008


(O vice-presidente da Relação)