PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Sumário


Um procedimento cautelar surge como colocado ao serviço de uma ulterior actividade jurisdicional que estabelecerá, de modo definitivo, a observância do direito.
Daí, que o procedimento cautelar se deva ajustar, ponto por ponto, ao conteúdo da acção principal.

Texto Integral

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PROCESSO Nº 1622/07 – 3

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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Por apenso à acção nº … a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, veio o autor “A” intentar o presente procedimento cautelar contra “B”, ré naquela acção, formulando o seguinte pedido:
"Ser decretada, sem prévia audição da requerida, a proibição da prática de qualquer acto de disposição ou oneração sobre o prédio misto situado em … ou …, freguesia e concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1706, inscrito na respectiva matriz rústica sob o art. 7 da Secção AL e com declaração para a sua inscrição na matriz urbana apresentada na Repartição de Finanças de … em 1 de Julho de 1998".
Foi liminarmente proferido o seguinte despacho, que transcrevemos "ipsis verbis" por conter, a nosso ver, algumas imprecisões linguísticas:
"”A” intentou o presente procedimento cautelar não especificado, contra “B”, como incidente de processo pendente.
Pede que seja decretada a proibição da prática de qualquer acto de disposição ou oneração sobre o prédio misto descrito na Conservatória de Registo Predial de … sob o nº 1706.
Alega para tal e em síntese que, tal prédio o único bem imóvel da requerida e que o actual administrador único da requerida tem vindo a adoptar uma estratégia de apropriação progressiva das participações sociais dos restantes accionistas, sendo que a deliberação que o nomeou único administrador da requerida enferma de diversas invalidades, tendo o requerente já intentado a competente providência cautelar para suspensão de tal deliberação social.
Teme o requerente que o referido administrador único da requerida, aproveitando-se de tal qualidade, vinha a fazer com que a requerida se desfaça ou onere o referido imóvel, sem seu próprio benefício.
Cumpre apreciar e decidir:
Nos termos das disposições conjugadas dos arts 381°,383° e 387° do C.P. C., são dois os requisitos substantivos de que depende o decretamento de providência cautelar não especificada:
1. A provável existência do direito do requerente;
2. O fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito do requerente.
Se relativamente ao primeiro requisito apontado, a factualidade alegada, a provar-se, é susceptível de nos permitir concluir pela provável existência do direito do requerente em ver anulada a deliberação social que nomeou o actual administrador único da requerida, já quanto ao segundo requisito, tal factualidade alegada, ainda que se prove, não é susceptível de integrar a existência de fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito do requerente, por outro meio.
Com efeito, as providências cautelares têm efeito subsidiário e destinam-se a pôr cobro a prováveis e eminentes lesões, ou em execução, de direitos, que, de outro modo (ou seja, por modo diferente do decretamento da providência em causa) dificilmente seriam reparáveis.
No caso, tendo o requerente, conforme o próprio afirma, já proposto (outra) providência de cautelar tendente a suspender provisoriamente a deliberação social que nomeou administrador único o actual administrador da requerida, com o decretamento de tal providência cautelar, ficam acautelados os seus receios.
Na verdade, se as desconfianças do requerente (de que venha ser dissipado o património da requerida) incidem sobre o actual administrador, com a suspensão da deliberação que nomeou o actual administrador (través da providência cautelar que o requerente afirma ter já intentado), deixará este de poder dispor do património da requerida e, assim, ficarão suficientemente salvaguardados os seus "direitos" e receios.
De outro modo estaremos perante uma multiplicação de providências cautelares tendentes a acautelar o mesmo "receio" do requerente.
Pelo exposto, indefiro o presente procedimento cautelar não especificado requerido por “A” contra “B”.
Custas pelo requerente (artº 446°, nºs 1 e 2 do C.P.C.).
Registe e notifique."

O requerente pediu a aclaração do despacho, mas tal pedido veio a ser indeferido por despacho de fls. 128.
Inconformado com a decisão de indeferimento do requerimento inicial, recorreu o requerente “A”.
Na impossibilidade de transcrever as extensas alegações do recorrente, em virtude de a disquete por ele enviada ter vindo em mau estado e apenas reproduzir parte do texto alegatório, limitamo-nos a referir o que o recorrente escreve na sua 1ª conclusão:
"O âmbito objectivo do presente recurso é limitado à apreciação da questão de saber se os factos alegados pelo ora recorrente no seu requerimento inicial, caso resultem provados, são ou não suficientes para integrar a existência de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito do requerente".
Não obstante o requerente ter pedido no seu requerimento inicial a não audição prévia da requerida, o Exmo Juiz entendeu citar aquela para os termos da acção e do recurso. Porém a requerida não fez qualquer intervenção ao processo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
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De acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso determina-se em face das conclusões da alegação do recorrente pelo que só abrange as questões aí contidas, como resulta das disposições conjugadas dos arts. 690°, nº 1 e 684 nº 3 do Cód. Proc. Civil - cfr. Acórdãos do S.T.J. de 2/12/82, BMJ nº 322, pág. 315; de 15/3/2005, nº 04B3876 e de 11/10/2005, nº 05B 179, ambos publicados nas Bases de Dados Jurídicos do ITIJ.
Nesta conformidade, temos como delimitado o âmbito do recurso nos termos atrás referidos e que conforma a conclusão 1ª do recorrente.
E no que diz respeito a tal apreciação, vejamos o que o recorrente alega em sede de recurso:
“… isto porque os receios do requerente, ora Recorrente, ficariam - no entendimento do Tribunal a quo - suficientemente acautelados por uma outra providência cautelar por ele requerida, tendente a suspender provisoriamente a deliberação social que nomeou administrador único o actual administrador da sociedade Requerida, o que teria, por si só, o efeito de impossibilitar aquele administrador de dispor do património da Requerida."
“… importa aqui referir, sumariamente, que o direito do ora Recorrente, decorre da sua qualidade de sócio detentor de 20% do capital social da Requerida e de seu administrador, eleito para o quadriénio de 2003-2006, …por duas deliberações sociais inválidas, alegadamente tomadas em assembleia geral dos sócios da Requerida nas datas de 20 de Abril e 6 de Dezembro de 2006.
Pela primeira deliberação, ter-se-á pretendido alterar os estatutos da sociedade Requerida de modo a que o seu órgão de administração deixasse de ser um conselho de administração composto por três membros, para passar a consistir num administrador único, com todos os poderes de gestão e representação da sociedade Requerida, alteração que foi inscrita no registo comercial da Requerida em 5 de Maio de 2006.
Pela segunda deliberação, ter-se-á pretendido eleger para o cargo de administrador único da Requerida o Senhor “C” (sócio detentor de uma participação de 20% do capital da Requerida), eleição que foi inscrita no registo comercial da Requerida em 7 de Dezembro de 2006.
Como resulta claro do alegado e documentalmente provado no requerimento inicial destes autos, a deliberação pretensamente tomada em 20 de Abril de 2006 é inexistente ou, pelo menos, nula, uma vez que a assembleia que alegadamente terá ocorrido nesse dia não foi convocada nem a ela compareceram todos os sócios.
… a lesão grave, e já em curso, dos direitos sociais do Recorrente, além de consistir na violação grave do seu direito de participar nas deliberações sociais da sociedade de que é sócio consiste na criação, pelo Senhor “C”, da aparência de uma falsa situação jurídica da sociedade:
- a aparência (resultante do registo comercial da Requerida) de que a sociedade teria um administrador único, o Senhor “C”, que teria legitimidade para, em representação da sociedade, dispor do seu único bem - o imóvel objecto da providência requerida -, e
- a aparência (pretensamente resultante das "declarações de venda" de acções constantes dos autos) de que o mesmo Senhor “C” seria sócio detentor de 80% (e não apenas 20%) do capital da sociedade.
A lesão dos direitos do Recorrente tornar-se-á irreversível e irreparável quando o único bem imóvel da Requerida - o imóvel situado em …, através do qual a sociedade prossegue o seu objecto social - for vendido, ou por qualquer outra forma transmitido ou onerado, por um qualquer preço que a sociedade pode até nem receber, ainda mais se for transmitido a um terceiro de "boa fé", devidamente conluiado como "administrador único" da sociedade .
... E só o decretamento da providência cautelar requerida nestes autos é que pode impedir que a lesão dos direitos do Recorrente designadamente, do direito a que o destino do único bem da sociedade de que o Recorrente é sócio e administrador não esteja nas mãos de alguém que não tem qualquer poder de gestão ou representação da sociedade e que não passa de um sócio detentor de 20% do seu capital - se torne irreversível e irreparável."

Convém assinalar que no referido procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, cujo requerimento inicial mandámos juntar - cfr. despacho de fls. 195 - se pedia "a) a suspensão da execução da deliberação social de alteração do contrato de sociedade; b) ser decretada a suspensão da execução da deliberação social e, em consequência, ser notificada à sociedade a impossibilidade de nomeação de qualquer administrador único" (cópia de fls. 277).
O recorrente, quer naquele requerimento quer no requerimento inicial destes autos, alega que o órgão de administração da sociedade consistia num conselho de administração, composto por três membros eleitos para o quadriénio de 2003-2006, “C”; “D” e o Recorrente, mas que estavam em funções apenas os dois últimos, dado que o Senhor “C” havia renunciado ao seu cargo em 30 de Novembro de 2005; que a sociedade era detida pelos seus cinco sócios fundadores – “C”, “D”, “E”, “F” e o Recorrente - detentores, cada um, de 20% do capital social da Requerida, nunca tendo havido qualquer transferência de propriedade sobre as acções representativas do capital da Requerida, pois que as acções nunca foram sequer emitidas.

Apreciando o despacho recorrido, diz o Exmo Juiz:
" ... No caso, tendo o requerente, conforme o próprio afirma, já proposto (outra) providência de cautelar tendente a suspender provisoriamente a deliberação social que nomeou administrador único o actual administrador da requerida, com o decretamento de tal providência cautelar, ficam acautelados os seus receios.
Na verdade, se as desconfianças do requerente (de que venha ser dissipado o património da requerida) incidem sobre o actual administrador, com a suspensão da deliberação que nomeou o actual administrador (través da providência cautelar que o requerente afirma ter já intentado), deixará este de poder dispor do património da requerida e, assim, ficarão suficientemente salvaguardados os seus "direitos" e receios.
De outro modo estaremos perante uma multiplicação de providências cautelares tendentes a acautelar o mesmo receio do requerente ...”
Não obstante a parca e pobre fundamentação utilizada, não podemos deixar de concordar com a decisão proferida.
Mesmo que o presente procedimento cautelar fosse o único utilizado pelo recorrente, face aos factos que alega e que constitui a causa de pedir dos autos, nunca através dele o requerente poderia obter o efeito útil que pretende.
Vejamos:
Lê-se no art. 381 nº 1 do Código de Processo Civil que "sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado". E refere-se no nº 3 da mesma disposição legal que "Não são aplicáveis as providências referidas no nº 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte."
Apreciando a norma do art. 381, tem-se como requisitos gerais dos procedimentos cautelares: (a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objecto de acção declarativa -, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; (b) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; (c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 3930 a 4270 do CPC; (d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; (e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar" - cfr. Abílio Neto, Código de Processo Civil, Anotado - anotação ao referido artigo.
A providência cautelar aparece, pois, posta ao serviço da ulterior actividade jurisdicional que deverá estabelecer, de modo definitivo a observância do direito. E estando relacionada com uma acção, é necessário que a providência se ajuste, ponto por ponto, ao conteúdo da acção. A providência surge, assim, como anúncio e antecipação da outra providência jurisdicional, de modo a que esta possa chegar a tempo - ver Calamandrei em "Instituciones de Derecho Procesal Civil", vol. 1 pág. 159, tradução das EJEA, Buenos Airs.
Posto isto, vejamos se aos factos alegados é de aplicar uma da providência cautelar não especificada ou se ao caso deve aplicar-se outro procedimento cautelar regulado na Lei, dando assim resposta à questão colocada no recurso em apreço.
Resulta com clareza do requerimento inicial que a providência pedida tem como fim, evitar que o novo e único administrador da requerida, “B”, pratique qualquer acto de disposição ou oneração sobre o prédio que identifica.
Só que os factos que o requerente alega para a verificação do primeiro requisito exigido pelo cit. art. 381 - existência do direito tido por ameaçado, objecto de acção declarativa - passa pela verificação da legitimidade dos poderes que a requerida detém através do seu administrador que, segundo alega o recorrente, está viciada por ter sido obtida através de uma deliberação social tomada quer em desconformidade com o contrato por que se regia a requerida quer em desconformidade com a lei.
Portanto, só após a verificação de que a requerida se rege sob uma deliberação social contrária à lei e ao contrato (art. 396 do Código de Processo Civil) é que é possível passar à constatação dos restantes requisitos apontados.
Referindo o art° 381.° do Código de Processo Civil que, para serem decretadas providências cautelares não especificadas, é necessário que se verifiquem cumulativamente os requisitos da probabilidade séria da existência do direito invocado e o justo receio de que alguém pratique factos susceptíveis de causar lesão grave e de difícil reparação desse direito, temos também que esta norma pressupõe, logo em primeiro lugar, que haja um lesante contra o qual é dirigida a providência.
Ora para a verificação deste lesante, há que seguir também a apreciação supra referida, ou seja a verificação dos pressupostos apontados no nº 1 do art. 396 do Código de Processo Civil.
Assim sendo, o procedimento cautelar ajustado a verificar se a requerida está lesar o invocado direito do recorrente e providenciar pela sustação da lesão a esse direito, onde naturalmente se inclui o pedido destes autos, é o procedimento cautelar especificado nos arts. 396 e 397 do Código de Processo Civil.
Ora dispondo o nº 3 do art. 381 do Código de Processo Civil que não são aplicáveis as providências referidas no nº 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte, o recorrente não pode, através do presente procedimento cautelar não especificado, obter a satisfação imediata do seu direito.
Portanto, quando o Exmo juiz refere no despacho recorrido que "tendo o requerente, conforme o próprio afirma, já proposto (outra) providência de cautelar tendente a suspender provisoriamente a deliberação social que nomeou administrador único o actual administrador da requerida, com o decretamento de tal providência cautelar, ficam acautelados os seus receios", não deixa de ter razão.

Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes que compõem a Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao agravo e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Évora, 25.10.07