PEDIDO CÍVEL
NULIDADES
Sumário


1- O pedido de indemnização civil pode ser deduzido pelo lesado desde o início do inquérito até ao fim do prazo referido e demarcado pelo art. 77.º do CPP.

2 - O n.º3 do art. 77.º do CPP visa, em última instância, permitir ao lesado, menos diligente, que não manifestou nos autos, no decurso do inquérito, o propósito de deduzir pedido cível, ou que não foi notificado nos termos do n.º2 do mesmo preceito – ainda que devesse sê-lo - uma derradeira oportunidade de se ver ressarcido, no âmbito do processo penal, dos prejuízos sofridos com o crime.

3 - A falta de notificação da acusação ao lesado (não constituído assistente) não constitui nulidade, sanável ou insanável, como resulta do disposto nos arts.118.º, nº1 e 119.º do Código de Processo Penal, uma vez que não se encontra elencada no n.º 2, do art.120.º do mesmo diploma, nem como tal prevista em qualquer outra disposição legal. Tal omissão só constituiria nulidade insanável se fosse designada como tal por disposição expressa (art.119.º do CPP).

4 - Não constituindo nulidade só poderia constituir uma irregularidade processual, nos termos do art.123.º, nº1 do Código de Processo Penal e, por isso dependente de arguição, que não foi feita em devido tempo, ou seja, nos três dias subsequentes à notificação do despacho que determinou o arquivamento do processo relativamente a um dos arguidos. E também não é caso de suprimento oficioso da mesma, pois que tal irregularidade não só não afecta a validade intrínseca do acto (ou seja, daquela mesma Acusação), como não afecta os actos posteriores ou os direitos processuais da Recorrente, nos exactos termos pretendidos (a dedução de pedido cível), pelo que não pode ser oficiosamente conhecida (artigo 123.º n.º2°).

5 – Perante a omissão de notificação da acusação pública ao lesado e uma vez ultrapassado o prazo prevenido no n.º3 do art. 77.º do CPP, aquele apenas poderá recorrer ao foro cível para ressarcimento dos danos emergentes da prática do crime, de harmonia com o disposto no art.72.º n.º1, alin. i) do mesmo diploma legal.

Texto Integral


Acordam, precedendo conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


1. Nos autos de processo comum singular n.º …., do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de …, o queixoso I.S.S., ora assistente, após ter tido conhecimento da designação de data para realização da audiência de julgamento naqueles autos, em que são arguidos MR, A.C. e E.R., sob imputação da prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. actualmente pelo art. 107.º n.º1 do Regime Geral de Infracções Tributárias, veio dizer que não foi notificado do despacho de acusação proferido pelo Ministério Público, apesar de aquando da elaboração do Relatório Final, no qual propôs a acusação dos arguidos, ter manifestado logo a intenção de deduzir o respectivo pedido de indemnização cível, em conformidade com o disposto no n.º2 do art. 75.º do CPP, requerendo, em conformidade, a notificação do Instituto de Segurança Social, IP, de harmonia com o preceituado no art. 283.º, 277.º n.º3 e 77.º n.º2, todos do CPP.

Tal pretensão foi objecto de indeferimento, por despacho proferido em 14.9.2006, com o fundamento de já se encontrar ultrapassado o limite temporal previsto no n.º3 do art. 77.º do CPP.

2. Inconformado, o queixoso interpôs recurso daquele despacho, pugnando pela sua revogação e que lhe seja notificada a acusação, a fim de poder deduzir o competente pedido de indemnização civil, concluindo a correspondente motivação por dizer (transcrição):

- Salvo o devido respeito, entendemos que o n.° 3 do artigo 77.° do CPP, pelas razões atrás aduzidas, não tem aplicação no caso vertente.

- Acontece que, o I.S.S., manifestou o propósito de deduzir o pedido de indemnização civil, nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 75.° do C.P.P..

- A decisão recorrida deveria ter aplicado a norma constante do n.° 2 do artigo 77.° do Código de Processo Penal.

- E assim, ter-se ordenado a notificação do despacho de acusação, para o I.S.S., querendo, deduzir o pedido de indemnização civil no prazo de vinte dias.

- Com a decisão recorrida não pôde o lesado utilizar o mecanismo legal previsto nos artigos 74.° e seguintes do Código de Processo Penal.

- A inobservância do estatuído nos artigos 77.°, n.° 2, e 283.°, n.° 5, do C.P.P., afectou de forma clara e inequívoca, a realização de um direito e de um interesse público, ao não permitir que fosse deduzido o pedido de indemnização civil por perdas e danos, resultante da prática de um crime, que afecta o património da S.S.

- "(...) nos crimes contra a segurança social o bem jurídico protegido, sendo de interesse e ordem pública, é incumbência atribuída ao Estado pelo artigo 63°, n.° 2 da CRP «organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social», com vista à defesa dos interesses públicos subjacentes às normas reguladoras dos regimes de segurança social, no entanto também aí imediatamente se protege um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, isto é, protege-se o património da segurança social (...) (Ac. Da Relação do Porto n.° 2397/03, de 29/10/03).

3. O recurso foi admitido por despacho de 20.6.2007 e notificado aos restantes sujeitos processuais, que não apresentaram qualquer resposta.

4. O senhor juiz titular do processo, por seu despacho de 4.2.2005, limitou-se a mandar subir os autos, sem sustentar ou reparar o despacho recorrido (cf. art.414 n.º4 do CPP).

5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, por entender que inexiste, em concreto, notificação à participante, nos termos e para os efeitos prevenidos no art. 77.º n.º2 do CPP, apesar desta ter manifestado expressamente o seu propósito de deduzir pedido de indemnização civil.

6. Cumprido o disposto no art. 417.º n.º2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

7. Do processo extraem-se os seguintes factos relevantes:

- O I.S.S., concluídas as investigações no âmbito da sua competência, e aquando da elaboração do Relatório Final, no qual propôs a acusação de alguns arguidos, manifestou a sua intenção de deduzir pedido de indemnização civil (cf. fls.17 a 23).

- O Ministério Público veio a determinar o arquivamento dos autos relativamente à arguida A… e a deduzir acusação apenas relativamente aos arguidos M.R., A.C. e E.R., acima referidos (v.fls.24-29).

- Como consta fls.31, o ora recorrente, enquanto queixoso, foi notificado, por ofício de 10.11.2005, do despacho de arquivamento.

- Por requerimento entrado em 8 de Setembro de 2006, o referido Instituto da Segurança Social, tendo tido conhecimento de que foi designado o dia 7.12.2006, pelas 14 horas, para realização da audiência de julgamento, veio informar que, nos termos e para os efeitos do preceituado no n.º3 do art. 277.º do CPP, aplicável ex vi pelo n.º5 do art. 283.º do mesmo diploma legal, não foi notificado do despacho de acusação proferido pelo Ministério Público, não obstante, aquando da elaboração do Relatório Final, ter manifestado desde logo a intenção de deduzir o respectivo pedido de indemnização cível, em conformidade com o disposto no n.º2 do art. 75.º do CPP, requerendo, a final, fosse ordenada a sua notificação de harmonia com o preceituado no art. 283, 277.º n.º3 e 77.º n.º2 do CPP.

- Em 14 de Setembro de 2006 foi proferido o seguinte despacho:

Fls. 501: Indefere-se o requerido, atendendo ao limite temporal previsto no n.º3 do artigo 77.º do CPP já se encontrar ultrapassado.”

- O Instituto da Segurança Social veio, então, a interpor o presente recurso, requerendo também a sua constituição como parte assistente, vindo a ser admitida a sua intervenção nessa qualidade (v.fls.4 e 10).

8. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art. 403.º n.º1 e 412.º n.º1 do CPP, podendo sempre o tribunal de recurso conhecer «ex officio»- [1] ) dos vícios da matéria de facto a que se reporta, designadamente, o n.º 2 do art.410.º do CPP, quando for caso disso.

No caso em apreço, impõe-se conhecer tão-somente se o ora assistente, ao tempo agindo na qualidade de mero lesado, deve ser notificado do despacho de acusação, como requereu, para efeitos de dedução de pedido de indemnização cível, bem como as consequências de tal omissão, o que naturalmente pressupõe a apreciação do regime da sua dedução.

Vejamos:

Por força do princípio da adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (art. 71.º do C.P.P. quer antes quer depois da revisão operada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, quer pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto).

O art. 75.º do C.P.P. impõe o dever de informação do lesado da possibilidade de dedução do pedido cível em processo penal e das formalidades a observar, estabelecendo o n.º 2 que quem tiver legitimidade para deduzir pedido de indemnização civil deve manifestar no processo, até ao encerramento do inquérito, o propósito de o fazer.

A obrigatoriedade de declaração do propósito de deduzir pedido de indemnização visa garantir, de modo mais eficaz, a constituição de partes civis e a sua intervenção processual, utilizando-se para tanto formas de notificação específicas e imperativas.

A regra processual normal – art. 77.º do Código Processo Penal na redacção anterior à Lei 59/98 de 25 de Agosto - era a de que quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido seria deduzido na acusação ou no prazo em que esta devesse ser formulada e, fora destes casos, o pedido seria deduzido, em requerimento articulado, até cinco dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de pronúncia, ou se o não houvesse, o despacho que designa dia para julgamento.

Com a Lei 59/98, o nº 2 do preceito passou a ter a seguinte redacção: “O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do artigo 75º nº 2, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia se a ele houver lugar, para querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de vinte dias.”

E, o nº 3 do mesmo normativo passou a dispor:

Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até dez dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se o não houver, o despacho de pronúncia”.

Assim, o pedido de indemnização civil podia ser deduzido pelo lesado desde o início do inquérito até ao fim do prazo referido e demarcado pelo art. 77.º na redacção vigente na data da sua apresentação.

Não podia era ultrapassar tal prazo.

O que a lei baliza é o termo do prazo de apresentação do pedido cível e, não o seu início (v. C.J. XVII, tomo 5,246).

Relativamente ao prazo de apresentação do pedido de indemnização civil inserido na lei, escreve Maia Gonçalves (in Código de Processo Penal Anotado, 1999, 10ª edição, p. 227, nota 2):

“ Este prazo poderá parecer excessivamente reduzido mas na realidade não o é, já que o lesado que deduz ele próprio o pedido pode fazê-lo em qualquer momento, até aquele que foi apontado, portanto mesmo durante o inquérito, e até logo quando da apresentação da queixa. Em tal caso o requerimento com o pedido de indemnização ficará logo no processo para, oportunamente, seguir seus termos”.

Aliás, a própria teleologia do citado art. 75.º do C.P.P. ao impor o dever de informação ao lesado, pela autoridade judiciária pretende acautelar desde logo o exercício do direito do lesado na dedução do referido pedido de indemnização civil em processo penal.

Como se escreveu no Acórdão de 17 de Outubro de 1995 desta Relação de Évora, (in C.J. ano XX, 1995, tomo V, p. 296):

Ao lesado, apesar de tudo, é concedido um prazo incerto, mas dilatado, que lhe permite sem dificuldade deduzir querendo, o pedido cível. E só por inércia da sua parte o não faz, deixando para a última hora o exercício desse direito. Embora possamos entender que, no caso, o prazo deveria contar da data da sua própria notificação para o julgamento, tal posição porém, não encontra na lei uma base minimamente sólida em que se baseie

Também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 611/94, in D.R., II Série, de 5-1-95, e, que não julgou inconstitucional a norma do art. 77.º nº 2 do C.P.P., considerava que para a dedução do pedido indemnizatório a parte dispunha “para isso não apenas dos cinco dias contados a partir da notificação ao arguido, mas de todos os que decorreram a partir da comissão do crime pelo qual aquele foi acusado”.

É certo que o ofendido – entretanto constituído assistente -, não foi notificado da acusação, como deveria ter sido, pelos serviços do Ministério Público, nos termos dos artigos 283.º nº 5, 277.º nº 3 e 77.º n.º2 do CPP, e, que por força deste último preceito, a notificação da acusação ser-lhe ia essencial para poder beneficiar do prazo ali aludido para efeitos de dedução de pedido de indemnização civil.

O n.º3 do art. 77.º do CPP visa, em última instância, permitir ao lesado, menos diligente, que não manifestou nos autos, no decurso do inquérito, o propósito de deduzir pedido cível, ou que não foi notificado nos termos do n.º2 do mesmo preceito – ainda que devesse sê-lo - uma derradeira oportunidade de se ver ressarcido, no âmbito do processo penal, dos prejuízos sofridos com o crime.

Com efeito, confere-se aí ao lesado (não assistente) e que não tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, ou que não tenha sido notificado nos termos do n.º2 do mesmo preceito, a possibilidade de deduzir tal pedido dentro dos dez dias seguintes à notificação ao arguido do despacho de acusação ou, se o não houver, do despacho de pronúncia.

Mas, a falta de notificação da acusação ao lesado não constitui nulidade, sanável ou insanável, como resulta do disposto nos arts.118.º, nº1 e 119.º do Código de Processo Penal, uma vez que não se encontra elencada no n.º 2, do art.120.º do mesmo diploma, nem como tal prevista em qualquer outra disposição legal.

Tal omissão só constituiria nulidade insanável se fosse designada como tal por disposição expressa (art.119.º do CPP).

Não constituindo nulidade só poderia constituir uma irregularidade processual, nos termos do art.123.º, nº1 do Código de Processo Penal e, por isso dependente de arguição, que não foi feita em devido tempo, ou seja, nos três dias subsequentes à notificação do despacho que determinou o arquivamento do processo relativamente a um dos arguidos. E também não é caso de suprimento oficioso da mesma, pois que tal irregularidade não só não afecta a validade intrínseca do acto (ou seja, daquela mesma Acusação), como não afecta os actos posteriores ou os direitos processuais da Recorrente, nos exactos termos pretendidos (a dedução de pedido cível), pelo que não pode ser oficiosamente conhecida (artigo 123.º n.º2°).

Por outro lado, de harmonia com o disposto no art. 72.º n.º 1, al. i), do mesmo Código, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado quando o lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do art. 75.º n.º1, e 77.º, n.º 2.

Face aos termos expostos, conclui-se que a omissão consubstanciada na irregularidade da falta de notificação, não prejudicou necessariamente nem lesou os direitos do ora assistente Instituto da Segurança Social, IP, em participar no processo crime, nem de ser ressarcido pelos danos provocados pela prática do crime, não obstante ter de recorrer ao foro cível.

O recurso não merece, por conseguinte, provimento.

9. Nestes termos, negam provimento ao recurso e confirmam o despacho recorrido.

Tributam o recorrente em 2 Ucs de taxa de justiça (cf.art.515.º n.º1, alin. b) do CPP e 87.º n.º1, alin. b) e n.º3 do CCJ).


(Processado por computador e revisto pelo relator).

Évora, 2007.10.30
Fernando Ribeiro Cardoso




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[1] cf. acórdão do S.T.J. de 19-10-95, no D.R., 1.ª Série A, de 28-12-95.