ACUSAÇÃO
PODERES DE COGNIÇÃO
Sumário


1 – Proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode, depois, o juiz proferir outro despacho a rejeitá-la, pois o seu poder de cognição ficou esgotado com a prolação do despacho de recebimento.

2 – Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença, após realização da audiência de discussão e julgamento, o juiz não pode conhecer do mérito da acusação, mas tão-só de questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa - artigos 338.º, n.º 1 e 368.º, n.º 1, ambos do CPP.

3 - O art. 338.º n.º1 do CPP apenas permite o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa - que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc) ou adjectiva (incompetência do tribunal, desistência de queixa, ilegitimidade, etc.), acerca das quais não tenha havido decisão e de que possa desde logo conhecer.

3 - Fixado o tipo legal de crime, no despacho que recebeu a acusação, qualquer convolação ou alteração da qualificação jurídica só poderá ter lugar se vierem a ser apurados factos posteriores a esse momento que a ela conduzam. E tais factos, como é óbvio, só em julgamento se poderão apurar, após a produção de prova, com observância do princípio do contraditório.

Texto Integral


Acordam, precedendo conferência, na Secção Criminal do Tribunal Relação de Évora:


1. Nos autos de processo comum n.º …/ do Tribunal Judicial da comarca…, o arguido M.. foi acusado da prática de um crime de burla para a obtenção de serviços, p. e p. pelo art. 220.º n.º1, alin. c) do Código Penal, com base nos factos constantes da acusação de fls.22 e 23, ocorridos no dia 8 de Outubro de 1999.

1.1 - A acusação foi recebida, por despacho proferido em 13.10.2000 (v.fls.30) e, depois de goradas as diligências efectuadas para a notificação do arguido, foi este declarado contumaz, por despacho de 26.04.2002 (v.fls.56).

1.2 - Após ter sido declarada cessada a contumácia, em virtude da apresentação do arguido, foi designado o dia 23 de Janeiro de 2007 para realização do julgamento.

2. Na data designada para a realização do julgamento e, após a abertura da audiência, a senhora juíza proferiu o seguinte despacho:

“O bem jurídico tutelado com o tipo de ilícito previsto no art.º 220.º, n.º 1, al. c) do Código Penal é o património, sendo que a infracção descrita integra uma burla privilegiada, que tem de preencher todos os elementos constitutivos do tipo legal previsto no art.º 217.º do Código Penal (cfr, neste sentido Almeida Costa, in Comentário Conimbricense, Tomo II, p. 322 e seguintes). Como exemplos paradigmáticos destas situações, apontam-se, entre outras, o fornecimento de alimentos ou de bebidas, mesmo de uma máquina automática, a utilização de um meio de transporte (autocarro, eléctrico, metro, comboio, avião, barco) ou de um parque de estacionamento, implicando tal prestação, uma contraprestação do utilizador, que corresponde ao pagamento de um preço, que normalmente é em dinheiro (cfr., igualmente M. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”. p. 160 e ss).

Está em causa um ilícito que implica, do ponto de vista do elemento subjectivo, a intenção de não pagar “traduzida no animus de enriquecimento que faz dele um delito de intenção” (cfr. Almeida Costa, Comentário, ob. cit, p. 322).

Quanto a este ponto, entendeu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/05/2005 (disponível no site www.dgsi.pt), que “Para que se verifique o crime do art. 220.º do Código Penal de 1995, em relação à utilização de meio transporte, é necessário que a intenção de não pagar exista antes da utilização do meio de transporte”.

Neste contexto, e no que concerne ao tipo objectivo do ilícito em apreço, entende-se, em conformidade com o decidido no Acórdão do Tribunal da mesma Relação de 21/06/2006 (disponível no site www.dgsi.pt) que tal tipo objectivo se desdobra em dois momentos distintos, correspondendo o primeiro à utilização de um meio de transporte (para o qual é razoável pressupor-se que se exige o pagamento de um preço, como contrapartida desse uso) e o segundo à recusa em pagar “a dívida contraída”.

Sendo inequívoco que o elemento integrador do crime de burla, previsto e punível nos termos do art.º 220.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, é a negação do arguido em solver a dívida contraída, constata-se que a jurisprudência se tem vindo a dividir quanto à amplitude deste requisito.

Assim, verifica-se que há uma corrente jurisprudencial que defende que sendo o meio de transporte utilizado o comboio, a “dívida contraída” referida na parte final do n.º 1 do art. 220.º do C. Penal é, não só o preço do bilhete, mas ainda a “sobretaxa” que àquele acresce, por falta do respectivo bilhete – neste sentido decidiram, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08/01/2003 (in CJ, Tomo I, p207) e 29/06/2005 (CJ, Tomo III, p.222).

Uma outra orientação jurisprudencial, tem vindo a entender que “estando em causa a utilização de meio de transporte, a dívida contraída, para efeitos do art. 220.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal de 1995, é referida ao valor do bilhete, em singelo” (vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto 06/07/2005 (recurso n.º 0541313) e de 29/03/2006 (Recurso n.º 0546855) e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/04/2000 (CJ, Tomo II, p. 289)).

Analisadas estas duas posições divergentes, entendo que é de sufragar esta última, que traduz uma interpretação mais restritiva da lei, mas que se afigura, igualmente, mais consentânea com o seu espírito.

Como se acentua no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/06/2006, acima citado, se é certo que em qualquer uma das situações contempladas no n.º 1 deste normativo está subjacente a existência de um contrato, mediante uma manifestação expressa ou tácita de vontade, de duas partes, em contratar um fornecimento (alimentos ou bebidas), um serviço (hotelaria ou restauração), ou um transporte, ou uma entrada num recinto público mediante o pagamento de um preço, não faz qualquer sentido ter-se uma interpretação distinta de “dívida contraída”, consoante se trate de um contrato subsumível às al. a) e b), ou à al. c).

Efectivamente, a expressão “dívida contraída” respeita indistintamente a cada um dos contratos previstos naquelas três alíneas, razão pela qual tal referência legal deve dar lugar a um sentido uniforme para qualquer um dos segmentos normativos descritos no n.º1 deste artigo.

Não se compreenderia, portanto, que relativamente aos alimentos, bebidas ou à utilização de um quarto num hotel, a contrapartida por parte de quem presta esse serviço fosse o recebimento do correspondente preço, sem qualquer outro acréscimo (al. a) e b) do n.º 1 do art. 220.º) e, no caso da utilização de meio de transporte, previsto na al. c), se entendesse que a dívida contraída englobasse, para além do preço do bilhete, também os legais acréscimos por falta desse bilhete.

Esta conclusão não é afastada pela análise da legislação especial que vigora para os transportes públicos em geral e para o transporte ferroviário em particular.

A este propósito, no caso dos transportes ferroviários, dispõe o art. 39.º do Regulamento instituído pelo Decreto n.º 39.780 que “O passageiro deve munir-se de um bilhete que lhe assegure o direito ao transporte e imponha à empresa a obrigação correspondente”, daqui decorrendo a existência de um contrato de transporte, o qual é regulado, segundo o anexo da Portaria n.º 403/75, de 30/06, “pela legislação vigente que lhe respeite e pelo disposto na presente tarifa (art.º 5.º).

Este bilhete corresponde ao preço do transporte do passageiro e da sua bagagem, segundo tabela de preços e taxas acessórias constantes nos anexos I e II, o qual é fixado em função da categoria do comboio utilizado e dos quilómetros a percorrer entre as estações onde se inicia a marcha e aquela quer será o seu destino (cfr. art. 20.º, n.º 1, 2 e 3 do mesmo diploma legal).

Da análise destes preceitos resulta, inequivocamente, que a contrapartida pelo transporte ferroviário é o pagamento do preço que corresponde ao bilhete em singelo, que lhe permite efectuar a viagem entre essas duas estações (cfr. art. 7.º).

Complementarmente, estabelece o art.º 1.º do DL n.º 415-A/86, de 17/12 que “os preços dos transportes ferroviário, rodoviário, rodo-ferroviário e fluvial de mercadorias são fixados pelos operadores”.

Ora, na eventualidade de o passageiro se apresentar sem bilhete, ou com um bilhete que não seja válido, deverá o mesmo pagar o preço da respectiva viagem para a qual não tem título de transporte, acrescido de uma sobretaxa, a que alude no art. 14.º, na redacção da Portaria n.º 1116/80, de 31/12, estabelecendo-se na parte final deste inciso legal que “o mínimo de cobrança é o fixado no anexo II, n.º 4.”

De tudo o que vem sendo exposto é possível concluir que o “preço da viagem” - correspondente à contrapartida devida por qualquer passageiro que utilize o serviço de transporte ferroviário – em nada se confunde com a “sobretaxa” que acresce àquele quantitativo, e que apenas surge para sancionar a falta de título de transporte.

Esta “sobretaxa” reveste, assim, um carácter sancionatório, não correspondendo a qualquer contrapartida devida (enquanto preço) pelo serviço de transporte prestado.

Neste contexto, considerar que a “dívida contraída” corresponde, além do mais, à dita sobretaxa, pressupõe, como se considera no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/06/2006 uma interpretação extensiva desta referência legal, susceptível de violar o princípio da tipicidade, enquanto corolário do princípio da legalidade, decorrente do art. 29.º, n.º 1 da CRP e art.º 1.º do Código Penal.

Verificando-se que o efectivo prejuízo da CP foi o preço do bilhete, o qual traduz o prejuízo que o arguido sabia e decidiu que ia causar, impõe-se concluir que a expressão “dívida contraída” se tem que reconduzir ao preço do bilhete na bilheteira, sem qualquer acréscimo.

Não constam da acusação quaisquer factos de onde se possa retirar que o arguido se tenha negado a pagar o preço correspondente ao preço da contrapartida pelo serviço de transporte prestado – preço do bilhete.

No mesmo contexto, a acusação pública, ao incluir a sobretaxa na recusa do pagamento da dívida contraída pelo arguido e ao enquadrar essa conduta na previsão do art.º 220.º, n.º 1, al. c) viola o referido princípio da tipicidade.

Assim, e sem necessidade de mais considerações, entendo que a falta deste elemento constitutivo do crime de burla para obtenção de serviço obsta à apreciação do mérito da causa, em conformidade com o que resulta do n.º 1 do art.º 338.º do Código de Processo Penal.

Sem custas.

Notifique.”

3. Não conformado, o Ministério Público interpôs recurso, pugnando pela revogação daquela decisão e substituição por outra que receba a acusação pública deduzida e marque datas para a audiência de julgamento, extraindo da correspondente motivação as seguintes conclusões:

“1- O Tribunal a quo rejeitou a acusação pública formulada nos autos por considerá-la manifestamente infundada, invocando que os factos imputados ao arguido não preenchem o tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 220.°, n.° 1, alínea c), do Código Penal, ou seja não preenchem a recusa em solver a dívida, enquanto elemento do tipo legal de crime

2- A douta decisão formula a presente conclusão por interpretar restritivamente a expressão "dívida contraída" contida no referido ilícito penal, no sentido de que se refere apenas ao valor do preço do bilhete em singelo e já não os acréscimos legais por falta desse bilhete, os quais revestem um carácter sancionatório e não uma contrapartida por um serviço prestado.

3- Diversamente, entende-se que a sobretaxa em causa, legalmente prevista (cfr. artigos 1.° do Decreto-Lei n.° 415-A/86, de 17.12 e artigos 7.° e 14.° da Tarifa Geral de Transportes aprovada pela Portaria n.° 403/75, de 30 de Junho, com a redacção que lhes foi dada pela Portaria n.º1116/80, de 31 de Dezembro,) é uma parte do preço do bilhete de comboio, nele incluída pela única razão de o passageiro não ter efectuado a compra do bilhete antes do início da viagem.

4- No próprio normativo penal o legislador fez menção ao valor da dívida e não ao preço do bilhete, a letra da lei estabelece como necessário que o agente se recuse a solver a dívida contraída.

5- Pelo que, a dívida considera-se contraída quando o arguido, não comprando um bilhete no cais de embarque e embarcando, fica sujeito ao pagamento do aludido preço acrescido de uma sobretaxa, que passa a ser o montante global do preço do bilhete, por não ser adquirido antes daquele embarque.

6- A interpretação da expressão "dívida contraída" contida neste ilícito penal com o sentido supra explanado não viola o princípio da tipicidade, ao contrário do que foi afirmado na douta decisão recorrida, uma vez que não se está a efectuar uma interpretação extensiva da expressão supra mencionada, apenas se impõe que a mesma seja concretizada procedendo à competente hermenêutica das disposições legais supra citadas aplicáveis no caso concreto.

7- As normas acima transcritas sujeitam qualquer passageiro não detentor de bilhete válido ao pagamento do valor do mesmo acrescido de uma sobretaxa de 50%, com o mínimo de cobrança fixado na tabela anexa supra-referida.

8- Este bilhete, específico para passageiros nas condições particularizadas no artigo 7.° do diploma supra citado, assume o valor do preço do serviço, tendo sido na situação dos autos o valor que foi exigido ao arguido.

9- Por isso, a dívida contraída, para efeitos do artigo 220.°, n.° 1, alínea c), do Código Penal, corresponde ao preço do bilhete que deve ser emitido sempre que o passageiro viaje sem título de transporte, ou seja ao preço em singelo do bilhete acrescido da sobretaxa referida.

10- Apesar de ter sido concedido ao arguido prazo para efectuar o pagamento, o mesmo, sabendo que aquele montante lhe era devido, nada fez para solver a sua dívida, na qual se inclui o preço do bilhete em singelo.

11- Por todo o exposto, a acusação contém factos que preenchem suficientemente a recusa do pagamento da dívida contraída, pois que, havendo aquele disposto de dois momentos para o fazer, não solveu a mesma.

12- A descrita conduta do arguido indicia que o seu propósito, ao utilizar o meio de transporte em causa, fora sempre o de não vir a efectuar o pagamento do preço do serviço prestado, propósito este posteriormente confirmado com a sua não efectivação.

13- Deste modo, verificada a intenção do não pagamento, e a recusa tácita na posterior efectivação do mesmo, indicia-se a prática, pelo arguido, de um crime de "burla para obtenção de serviços", p. e p. pelo artigo 220.° n.° 1, alínea c), do Código Penal.

14- Assim sendo, a acusação deduzida preenche todos os pressupostos típicos do ilícito penal, p. e p. pelo artigo 220.° n.° 1. c) do Código Penal, pelo qual foi requerido o julgamento do arguido.
15- Por todo o exposto, a decisão recorrida por violadora do disposto nos artigos 220.°, n.° 1, c), do Código Penal, interpretado em conformidade com o plasmado nos artigos 7.° e 14.° da Portaria n.° 403/75, de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.° 1116/80, de 31 de Dezembro e do artigo 338.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, deverá ser revogada e substituída por outra que marque nova data para a realização de audiência de discussão e julgamento e que aprecie o mérito da causa.”

4. O recurso foi admitido por despacho de fls. 129.

5. O arguido não respondeu.

6. Nesta instância a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta na vista que lhe foi dada manifestou o entendimento de que o recurso deve proceder (cf. fls.143 e 144).

7. Cumprido o disposto no art. 417.º n.º2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta por parte do arguido.

8. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.

É consabido que o objecto do recurso é extremado pelo teor das conclusões que cada recorrente extrai da correspondente motivação, conforme o n.º 1 do art. 412 do Código de Processo Penal, sem prejuízo para a apreciação das questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer.

E o que está em discussão, face ao teor das conclusões formuladas, é, em resumo, saber se o processo deve ou não prosseguir para julgamento.

9. O MÉRITO DO RECURSO

Em primeiro lugar, impõe-se reiterar que o despacho revidendo foi proferido já em fase de julgamento, mais precisamente após a abertura da audiência, como questão prévia, razão pela qual este tribunal, na procedência do recurso, nunca poderá determinar ao tribunal recorrido que receba a acusação, como pede o Ministério Público, pois esta já foi recebida em tempo oportuno.

No caso em apreciação, a senhora juíza, em sede de audiência de julgamento – sem que tenha sido produzida qualquer prova – entendeu, como questão prévia, que os factos constantes da acusação não integravam o crime de burla para a obtenção de serviços, p. e p. pelo art. 220.º n.º1, alin. c) do Código Penal, por alegadamente não constarem daquela peça processual factos de onde se possa retirar que o arguido se tenha negado a pagar o preço correspondente ao bilhete, o que, em seu entender, obstaria à apreciação do mérito da causa.

Com o devido respeito, não podemos concordar com tal decisão, pela intempestividade da sua prolação – pois o que a senhora juíza fez foi conhecer do mérito da acusação e não de qualquer questão prévia, com a virtualidade de obstar ao seu conhecimento.

Como é óbvio, a apreciação de mérito sobre a acusação só é possível após realização integral e plena do acto processual que é o julgamento, cujos procedimentos previstos na lei processual são essenciais para a descoberta da verdade material, o qual terminará com a sentença.

O juiz recebeu a acusação tal como foi deduzida, concordou com ela não só em matéria de indícios suficientes como no que respeita à própria incriminação (cf. fls.30).
Assim, fixado o tipo legal de crime, no despacho que recebeu a acusação, qualquer convolação ou alteração da qualificação jurídica só poderá ter lugar se vierem a ser apurados factos posteriores a esse momento que a ela conduzam.

E tais factos, como é óbvio, só em julgamento se poderão apurar, após a produção de prova, com observância do princípio do contraditório.

Refira-se que os nossos Tribunais Superiores vêm decidindo quase unanimemente no sentido de que «Proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode, depois, o juiz proferir outro despacho a rejeitá-la, pois o seu poder de cognição ficou esgotado com a prolação do despacho de recebimento» - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 10 de Maio de 2000, publicado in Colectânea de Jurisprudência [CJ], Ano XXV, Tomo III, págs.224/5 -; «I - O juiz não pode, no início da audiência, alterar a qualificação jurídica dada na acusação ou na pronúncia aos factos imputados ao arguido, …» - Acórdão da Relação de Coimbra, de 15 de Fevereiro de 1995, in CJ, Ano XX, Tomo I, pág. 62 -; «I - Depois de decidir, no despacho a que aludem os artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal de 1998, que os factos descritos na acusação integram um crime, não pode mais tarde o juiz vir a dizer que, afinal, nada melhor, aqueles factos não preenchem qualquer tipo criminal. …»; «Entre a pronúncia e o julgamento não é possível alterar a qualificação jurídica dos factos feita naquela» - Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, disponíveis no site www.dgsi.pt com os n.ºs convencionais respectivos JTRP00036388 e JTRP00037305. Assim também no aresto datado de 20 de Novembro de 1996, e publicado no B.M.J. n.º 461, a pág. 524 se exarou que “nada obsta a que, após o despacho de pronúncia e antes do início da audiência de julgamento, o juiz conheça da questões prévias, se no despacho a que alude o artigo 311.º do CPP a questão não foi concretamente considerada; no intervalo entre a pronúncia e o julgamento não é, todavia, possível alterar os factos e a sua qualificação, tal como foram definidos na pronúncia, ainda que a pretexto do conhecimento oficioso ou a requerimento sobre qualquer questão prévia.”

A ratio da posição vinda de assumir como dito radica no entendimento de que ao juiz apenas é facultado praticar os actos permitidos por lei. Quando para o acto ilegal não for cominada a nulidade, o mesmo é irregular, e dessa irregularidade pode-se conhecer oficiosamente, no momento em que dela se tomar conhecimento, quando poder afectar o valor do acto praticado – art. 118.º, n.ºs 1 e 2 e 123.º, n.º 2, ambos do CPP.

Se o juiz ao receber a acusação deduzida pelo Ministério Público entende que existem indícios suficientes para levar a julgamento o arguido profere o despacho que designa dia para julgamento; desse despacho, no qual se dá o recebimento da acusação, não há recurso, conforme artigo 313.º, n.º 4 do CPP; só em sede de audiência e depois da produção da prova e das alegações se pode na sentença confirmar ou infirmar a acusação recebida, proferindo decisão condenatória ou absolutória, respectivamente, pronunciando-se sobre o mérito da causa.

Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença, após realização da audiência de discussão e julgamento, o juiz não pode conhecer do mérito da acusação, mas tão-só de questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa - artigos 338.º, n.º 1 e 368.º, n.º 1, ambos do CPP.

Da acusação devem constar, nomeadamente, a enumeração dos factos delituosos praticados pelo agente da infracção e a respectiva qualificação jurídica - artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c).

O juiz ao proferir o despacho do seu recebimento pode, se assim o entender, qualificar diversamente os factos dela constantes, sendo, então, esta nova qualificação que persiste até à prolação da sentença. O que é distinto do caso dos autos em que a Mma. Juíza a quo acabou por, sem que houvessem surgido circunstâncias supervenientes que devessem ser ponderadas, veio a desdizer um juízo de mérito sobre a relação jurídico-processual estabelecida.

Relembram as decisões citadas que esta era forma de dar o dito por não dito, contrariar a estabilidade de uma decisão jurisdicional, o que se mostra intolerável, sob pena de se criar a desordem, incerteza, confusão.

Apenas o tribunal superior pode, por via de recurso, alterar ou revogar uma decisão que não seja de simples expediente. Não se mostra viável, ao invés, que o próprio juiz autor de uma decisão ou outro posteriormente, antes de efectuado o julgamento, e sem a emergência das apontadas circunstâncias supervenientes, venha proferir decisão totalmente oposta.

Tudo a significar, então, que se mostrava vedado à Mma. Juíza proferir, nos termos em que o fez, o despacho exarado no início da audiência de julgamento, relativamente aos factos apontados ao arguido.

O art. 338.º n.º1 do CPP apenas permite o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa - que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc) ou adjectiva (incompetência do tribunal, desistência de queixa, ilegitimidade, etc.), acerca das quais não tenha havido decisão e de que possa desde logo conhecer.

É manifesto que esse conhecimento de questões prévias ou incidentais não passa pelo conhecimento do mérito da causa. Por isso que uma qualquer alteração não substancial dos factos ou da qualificação jurídica só pode ter lugar na sentença.

É que, para além das razões aduzidas, sempre haveria que apurar em audiência qual a factualidade provada ou não provada, para se obterem elementos seguros em ordem a um correcto ajuizamento – mormente para qualificar tal conduta como crime ou contra-ordenação, tendo presente que no dia 4 de Novembro de 2006 entrou em vigor a Lei 28/2006, de 4 de Julho, que revogou, entre outros, o art.43.º do Regulamento para a Polícia e Exploração dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39780, de 21 de Agosto de 1954.

Esta maneira de proceder é a que melhor se coaduna com o aproveitamento integral e pleno do acto processual que é o julgamento, sendo, assim, possibilitado, em caso de divergência de posições uma apreciação total dos problemas pelo Tribunal Superior, por via de recurso interposto, dado existirem, desta maneira, todos os elementos para uma decisão cabal.

Assim, o processo terá de prosseguir para realização do julgamento, a menos que surja alguma causa de natureza adjectiva ou substantiva que impeça o conhecimento de mérito em sede própria, ou seja, na sentença.

Fica, por isso, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso, nomeadamente a de saber qual o alcance da expressão “ negar a solver a dívida contraída” a que alude o art. 220.º n.º1 do Código Penal, que, como se refere no despacho recorrido, não tem sido objecto de interpretação uniforme.

Pelo sumariamente exposto se entende que o recurso interposto pelo Ministério Público não pode deixar de proceder no que respeita ao prosseguimento dos autos.

10. Face ao exposto, decide-se conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que designe nova data para continuação do julgamento e que aprecie a final do mérito da causa.

Não é devida tributação.



(Este acórdão foi revisto pelo relator que assina e rubrica as demais folhas).


Évora, 2008.02.26
Fernando Ribeiro Cardoso