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FALSIDADE DE TESTEMUNHO
Sumário
1. A falsidade da declaração reside na contradição entre o declarado e a realidade, entre a palavra e a realidade ou verdade histórica. Somente a discrepância entre o conteúdo da declaração e o acontecimento fáctico objectivo ao qual a declaração se reporta constitui falsidade. 2. O tribunal recorrido ao consignar que determinadas declarações são falsas, sem afirmar os factos objectivos e concretos donde emerge aquela asserção, limita-se a proferir uma conclusão, um juízo de valor desacompanhado das premissas donde aquela se pudesse extrair. Essa conclusão deveria antes ser o resultado da indagação da factualidade correspondente. É puramente tautológico dar como provado aquilo mesmo que a prova se destina a provar, pelo que deve ser considerado irrelevante dar-se como provado ser falsa determinada declaração, pois o que se exigiria era que se tivessem provado os factos donde pudesse extrair-se tal conclusão.
Texto Integral
Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
RELATÓRIO.
Decisão recorrida.
No processo comum nº… do 1º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de …., o arguido A…, devidamente identificado nos autos, sob acusação do Ministério Público foi pronunciado pelos factos nela descritos, imputando-se-lhe a prática em autoria material de um crime de falsidade de testemunho, pp. pelo art.360º, nºs 1 e 3 do Código Penal.
Submetido a julgamento perante tribunal singular, por sentença de 2/7/2007 o arguido foi condenado pela prática daquele crime, na pena de cem dias de multa à taxa diária de € 4,00, a que corresponde subsidiariamente 66 dias de prisão.
Recurso.
Inconformado com esta decisão dela recorreu o arguido, pugnando pela sua absolvição, rematando a motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
1º. Da matéria de facto que o tribunal recorrido considerou provada, entendemos que os factos nela constantes nos números 3, 4, 5 e 6, deveriam ter sido considerados como factos não provados, em virtude da prova produzida na Audiência de Discussão e Julgamento.
2º. Discordamos igualmente do Tribunal quando este, ao formar a sua convicção quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, sustenta que a versão do arguido havia sido contrariada pelos demais meios de prova; que a testemunha professora … e a testemunha …. depuseram de modo coerente; e que a posição processual que a … detinha à data dos factos suscita dúvidas quanto à sua isenção.
3º. Ao contrário do que a douta sentença sustenta, a versão do arguido não foi contrariada pelos demais meios de prova em virtude dos depoimentos das testemunhas … (2ª Testemunha de Acusação - depoimento gravado em cassete I, lado A, rot. 10.00 a 14.00) e da testemunha professora …. (3ª Testemunha de Acusação - depoimento gravado em cassete I, lado A, rot. 14.00 a 17.00) cujas transcrições se requer, coincidirem com as declarações do recorrente.
4º. Logo os depoimentos destas duas testemunhas e declarações do arguido constituem provas credíveis porque convergentes e impõem decisão diversa da recorrida.
5º. Curioso que apenas o depoimento da professora … (1ª Testemunha de Acusação - depoimento gravado em cassete I, lado A, rot. 06.00 a 09.00) cuja transcrição se requer, diverge das declarações prestadas pelo arguido.
6º. Pese embora a Meritíssima Juiz tenha considerado que os depoimentos das testemunhas … e … são coerentes entre si, após análise comparativa do teor dos mesmos é forçoso concluir que tal não acontece, senão vejamos:
7º. Segundo a professora …(1ª Testemunha de Acusação - depoimento gravado em cassete I, lado A, rot. 06.00 a 09.00) o recorrente nesta reunião terá dito que a … havia perguntado pela localização das madeiras e que esta teria também dito que corria um boato na escola de que as madeiras teriam ido para casa da ….
8º. De acordo com a professora …(3ª Testemunha de Acusação - depoimento gravado em cassete I, lado A, rot. 14.00 a 17.00) o recorrente, nessa mesma reunião, terá dito apenas que a … lhe tinha perguntado onde estariam umas madeiras e portas, mas que ele não tinha referido que tinham ido para casa da professora ….
9º. E o que a professora … relatou a respeito do que o arguido terá dito à professora … na reunião é precisamente aquilo que o recorrente contou ao Tribunal, daí que o depoimento desta testemunha imponha decisão diversa da recorrida
10º. Entendemos que o depoimento da testemunha … não foi totalmente valorado, porquanto a parte mais pertinente do mesmo foi simplesmente ignorada.
11º. Não está aqui em causa saber se o recorrente terá mentido noutras ocasiões a alguma das testemunhas, o que se pretendia nos presentes autos era saber o que é que o recorrente havia dito na reunião a fim de se aferir se o mesmo mentiu na qualidade de testemunha ao Tribunal.
12º. De salientar que não há uma única testemunha que corrobore a versão da professora … no que diz respeito ao teor das declarações apresentadas pelo arguido na reunião em causa.
13º. Relativamente à segunda reunião que a professora … alega ter existido, não é despiciendo referir que não há testemunhas que confirmem que a mesma tenha ocorrido.
14º. A isto acresce que, a existência desta segunda reunião não faz qualquer sentido se tivermos em consideração a versão dos factos apresentada pela testemunha ….
15º. Isto porque, se por um lado a professora …. sustenta que o recorrente na reunião (primeira) não falou que as madeiras estariam na casa dela, por outro a professora … sustenta que o recorrente na segunda reunião lhe disse que teria mentido na primeira reunião ao falar que as madeiras estariam na casa da professora ….?!?
16º. O Tribunal recorrido desvalorizou, as declarações da testemunha … e de acordo com o mesmo fê-lo devido à posição processual que esta testemunha detinha à data dos factos.
17º. Com o devido respeito não concordamos com este entendimento, pois no âmbito do presente processo é apenas relevante saber o que o recorrente disse na reunião que ocorreu no Conselho Executivo, independentemente de se saber se o que ele afirmou correspondia ou não à verdade.
18º. Além disso, houve uma desistência de queixa no processo em que a … era arguida e que deu origem aos presentes autos, daí que, em virtude de não poder vir a ocupar novamente aquela posição processual, esta testemunha não tem qualquer interesse no desfecho deste processo.
19º. Posto isto, em nossa opinião, o depoimento desta testemunha é isento e merece tanta credibilidade quanto o das outras, impondo também decisão diversa da recorrida.
20º. O Tribunal violou o disposto nos artigos 124º, n.º 1 e 127 do C.P.P., uma vez que face à prova testemunhal produzida, não podia o mesmo ter dado como provada a factualidade que deu.
21º. Analisando toda a prova produzida, especialmente o depoimento da professora … porquanto esta testemunha que nos pareceu ser a mais imparcial de todas, entendemos que, no mínimo, deveria ter sido suscitada uma dúvida razoável no espírito do julgador, pois o depoimento da testemunha Professora … não foi corroborado nem pelo recorrente nem pelas demais testemunhas.
22º. Assim, em nome do princípio in dubio pro reo, colorário da presunção da inocência do arguido contido no n.º 2 do art.º32 da Lei Fundamental, o recorrente deveria ter sido absolvido da prática do crime por que foi condenado.
23º. Requer a renovação da prova da testemunha … caso este Tribunal considere que o depoimento prestado pela mesma não tenha sido suficientemente esclarecedor e que seja pertinente ouvi-la novamente, ao abrigo do disposto no artigo 412º, n.º 3, al. c) do C.P.P.
24º. O arguido foi nos presentes autos condenado pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. no n.º 1 e n.º 3 do art.º360º do C.P.
25º. O elemento típico central deste crime reside na falsidade do depoimento que se afere pela sua desconformidade com o acontecimento real a que se reporta (concepção objectiva).
26º. Todavia, nos factos provados da douta sentença não consta qual a verdade objectiva (aquilo que o Tribunal, em face da produção da prova, tenha dado por acontecido), pois que a Meritíssima Juiz apenas se limitou a transcrever os artigos contidos na douta acusação deduzida pelo Ministério Público, o que a nosso ver é insuficiente.
27º. Na matéria de facto da douta sentença recorrida somente se destaca duas versões distintas, a do arguido e a da professora …., mas se não anuncia qual delas corresponde à realidade, nem tão pouco refere o que realmente aconteceu.
28º. Assim, um dos elementos objectivos do tipo (falsidade do testemunho) não se encontra preenchido, em virtude de nos factos provados não se encontrar fixada a verdade objectiva, violando-se desta forma o disposto no n.º1 do art.º360º do C. P., daí que o arguido deva ser absolvido do crime por que foi condenado.
Concluiu pedindo que seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, seja revogado a douta sentença e substituída por outra que absolva o arguido do crime em que foi condenado.
Admitido o recurso contra-motivou o Ministério Público preconizando também a absolvição do arguido.
Nesta Instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto e proficiente parecer pronunciando-se no sentido de que a materialidade dada como provada na sentença impugnada não tem aptidão para ser subsumível ao crime de falso testemunho de que o arguido foi acusado e subsequentemente pronunciado, pelo que entende que deve ser concedido provimento ao recurso e consequentemente ser proclamada a absolvição do arguido.
Observado o disposto no nº2 do art.417º do CPP não foi apresentada resposta.
Oportunamente foi decidido em conferência por acórdão deste tribunal proferido em 29-1-2008, não admitir a renovação da prova requerida pelo recorrente, prosseguindo os autos para apreciação em audiência das questões subsistentes.
Colhidos os vistos teve lugar a audiência.
Cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO.
Na 1ª Instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1. No dia 07 de Outubro de 2004, pelas 11h15, neste Tribunal Judicial de…, no decurso da audiência de julgamento do processo comum singular n.º o arguido, foi inquirido na qualidade de testemunha, tendo jurado falar com verdade após ter sido advertido das consequências penais a que se expunha se à mesma faltasse.
2. No âmbito da sua inquirição o arguido declarou que “só falou com a senhora professora … uma única vez e não é verdade que alguma vez tenha dito à senhora professora que a … por sua vez tivesse dito que as madeiras estivessem na casa da professora ….”
3. Sucede que … afirmou, também sob juramento de falar com verdade, que “o Sr. … numa primeira vez falou comigo a propósito do assunto em causa … e lhe disse que a … havia perguntado pela localização das madeiras que por sua vez teriam ficado na posse de … e que poucos dias após, o senhor …, por iniciativa dele, veio ao seu encontro dizer que o que havia dito antes era mentira e que o tinha feito por medo.”.
4. O arguido bem sabia que as declarações que proferiu em Tribunal, apesar de estar sob juramento, eram falsas e que assim punha em causa a realização da justiça, resultado que quis e que alcançou.
5. O arguido bem sabia que a sua conduta lhe era proibida e punida por lei.
6. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.
7. O processo acima identificado foi declarado extinto nessa mesma data com fundamento na desistência da acusação particular.
8. O arguido já foi condenado em 04.03.2002, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 4 euros.
9. O arguido trabalha, auferindo cerca de 500 euros, vive em casa própria, pagando a prestação bancária de 130 euros mensais, está a estudar para obter equivalência ao 9.º ano de escolaridade. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção relativamente à factualidade supra descrita da seguinte forma:
Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova, nos termos do art.º127.º do CPP, deve ser apreciada segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador, foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:
1. Declarações do arguido: o qual negou a prática dos factos, apresentando um aversão segundo a qual tudo se teria tratado de um mal entendido e mantendo as declarações prestadas na audiência de julgamento dos autos acima identificados. Tendo esta versão sido contrariada pelos demais meios de prova, não foi considerada.
2. Depoimento de…: Antigas Presidentes do Conselho Executivo da escola onde o arguido desempenhava funções, as sendo que a primeira sucedeu à segunda, as quais revelaram conhecimento directo dos factos e depuseram de modo coerente entre si, sem que suscitassem dúvidas quanto à sua isenção, pelo que mereceram credibilidade para o apuramento dos factos.
3. Depoimento de …: antiga funcionária na escola onde o arguido desempenhava funções e arguida no processo criminal por difamação onde o arguido prestou o depoimento dos autos, a qual esclareceu os factos mas que, em virtude da posição processual que detinha à data dos factos suscitou dúvidas quanto à sua isenção, pelo que apenas se valoraram as suas declarações na parte não contrariada pelos demais meios de prova.
4. Depoimento de …: actual colega do arguido, o qual abonou em favor da sua personalidade e que foi merecedor de credibilidade.
5. Prova Documental: certidão de fls 2 a 12 e CRC do arguido. O tribunal “ a quo” procedeu à escolha da espécie e determinação da medida da pena do seguinte modo: ENQUADRAMENTO JURÍDICO:
O arguido veio acusado da prática de um crime de falsidade de testemunho, tipificado no art. 360º do Cód. Penal.
Em conformidade com a respectiva previsão legal, “quem como testemunha, perito, técnico, tradutor ou interprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias. E se tal falsidade tiver sido cometida após o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena será de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.
Seguindo, a tal propósito, as considerações expendidas por Medina Seiça (in Comentário Conimbricense do Cód. Penal, V.III, pg.463 e ss.), dir-se-á que, apesar de a literalidade do preceito em presença poder, pelo emprego da usual formulação “quem”, inculcar conclusão diversa, o certo é que o tipo em questão pressupõe que o autor da declaração falsa se encontre investido em uma particular e precisa função processual: a de testemunha, perito, técnico, tradutor ou interprete.
Pois bem, Será assim, agente do crime aquele que, entre outros, assuma a qualidade de testemunha.
No caso em presença, temos que, na data dos autos, o arguido foi ouvido na condição de testemunha. Ora, sobre quem deponha nessa qualidade, recai, em especial, o dever de responder com verdade às perguntas que lhe forem feitas, cfr. artº 132º, n.º1. al. d) do CPP.
O arguido foi ajuramentado e advertido que a falsidade das suas respostas o faria incorrer na prática de um crime.
Não obstante, o arguido proferiu declarações que não correspondiam à verdade, tentando proteger a arguida no processo em que depôs como testemunha (sendo certo que, ainda que não se apurasse que a referida arguida tivesse dito que a Prof. … é que se tinha apropriado de madeiras adquiridas pela escola, sempre teria levantado suspeitas de ter sido a mesma quem o deveria ter feito).
Assim, o arguido, efectivamente, faltou à verdade na audiência de julgamento, preenchendo a sua conduta o elemento objectivo do crime em evidência.
Mas ainda no que ao elemento subjectivo concerne, sempre se dirá que também o mesmo se verifica no caso dos presentes autos. Com efeito, ficou provado, tal como resulta do senso comum e das regras da experiência da vida em sociedade, que ninguém ignora que as declarações que se prestem na qualidade de testemunha devem corresponder à realidade e que as falsas declarações são criminalmente punidas. Sendo certo que o arguido não podia desconhecer esta realidade – tanto assim que até foi disso mesmo advertido pelo Juiz que presidiu ao julgamento - e, ainda assim, mentiu quando foi inquirido, agiu com dolo, cfr. art.º 14.º do C.Penal.
Em face do exposto, preenchendo a conduta do arguido quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo do referido tipo penal, deverá o mesmo ser condenada pela sua prática e sujeitar-se à pena que lhe for correspondentemente aplicada. MEDIDA CONCRETA DA PENA
Subsumidos os factos ao direito importa seguidamente determinar a espécie e a medida da pena aplicável ao caso concreto.
Os parâmetros fixados pelo legislador no que refere à operação de determinação da pena encontram-se consignados nos art.sº 71.º e 40.º do C. Penal: a culpa do agente (atendível como limite máximo da pena aplicar) e as exigências de prevenção geral e especial (atendíveis como limiar a partir do qual já se justifica e impõe uma punição).
Quando ao crime sejam aplicáveis, alternativamente, uma medida privativa e uma medida não privativa da liberdade (tal como sucede com a multa), o Tribunal dará preferência à segunda sempre que esta proteja adequadamente os bens jurídicos e permita a reintegração do agente na sociedade (cfr. art.º 70.º do Código Penal).
No caso dos autos, apesar do arguido ter antecedentes criminais, considera-se que uma pena de multa realiza de forma adequada as finalidades da punição.
A pena concreta a aplicar ao arguido será determinada, dentro da moldura penal fixada no tipo incriminador (no mínimo 60 dias de multa e no máximo 360.º dias, cfr 47.º/1 do CP) considerando todas as circunstâncias que, não fazendo parte daquele tipo, deponham a favor ou contra o arguido. Assim, e ao abrigo do n.º 2 do art.º 72.º do CPP cumpre atender:
- Contra o arguido –
a) O grau de ilicitude: é médio
b) O carácter doloso da conduta: de intensidade média.
c) O grau de violação dos deveres impostos ao agente é médio.
d) O arguido tem antecedentes criminais, ainda que pela prática de crime de natureza diversa.
- A favor do arguido –
a) O tempo decorrido desde a prática dos factos sem que haja notícia do cometimento de novos ilícitos.
b) O processo em que o arguido depôs foi declarado extinto por desistência da acusação particular.
Em face de tudo quanto fica exposto e devidamente ponderado afigura-se adequado punir a prática do crime em apreço na pena de 100 dias de multa à razão diária de 4 euros, no total de 400 euros. Apreciando.
Poderes de cognição deste tribunal. Objecto do recurso. Questões a examinar.
Tendo sido documentadas em acta os depoimentos e declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento realizada na 1ª Instância, este Tribunal conhece de facto e de direito (art.428º do CPP).
Constituindo jurisprudência uniforme que o objecto do recurso é definido e delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (art.412º, nº1, do CPP) e considerando que a questão sobre a renovação da prova já foi julgada em conferência e decidida pelo acórdão proferido nos autos em 29/1/2008, as questões que daquelas emergem que ainda subsistem e que reclamam solução, sem prejuízo outras de conhecimento oficioso (nulidades de sentença e os vícios enunciados no nº2 do art.410º do CPP), consistem em saber se a materialidade dada como provada nos pontos nº3, 4, 5, e 6 da fundamentação da sentença recorrida devem ser considerados como não provados e se a factualidade apurada tem aptidão para preencher o crime de falsidade de testemunho agravado pp. pelo art.360º, nº1 e 3 do C. Penal, que é imputado ao arguido.
Examinemos as questões acabadas de enunciar.
Sob a invocação da existência de erro de julgamento que o recorrente alicerça essencialmente na violação dos princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, pretende que os mencionados pontos da materialidade dada como provada sejam julgados como não provados.
Relativamente ao ponto nº3 dos factos dados como provados na sentença recorrida, o que dele consta é o que a testemunha …, nessa qualidade e depois de ajuramentada declarou no depoimento que prestou na audiência de julgamento realizada no âmbito do proc.nº…do 2º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de … e não que seja verdadeira o conteúdo dessa declaração.
Se bem interpretamos a alegação do recorrente, o que ele contesta é que o excerto do referido depoimento transcrito naquele ponto da matéria de facto dada como provada na sentença impugnada corresponda à verdade. Como se disse não é isso que decorre desse ponto da matéria de facto dada como provada na sentença sob censura, sendo certo que o que nele se transcreve se fundamenta no registo exarado pelo Exmº Juíz na acta daquele julgamento, que constitui documento autêntico e cuja autenticidade não foi posta em crise, pelo que se mantém incólume a sua força probatória fazendo, por isso, prova plena de que perante a mencionada entidade documentadora foi proferida aquela declaração (com o sentido que atrás referimos).
Assim, neste conspecto falece razão ao recorrente, pelo que consequentemente se deve manter aquele ponto nos factos provados.
Relativamente ao mais, desde já se antecipa que assiste razão ao recorrente, embora por motivos diferentes dos que vem alegados e que se situam a montante destes.
Vejamos.
Para cometimento do crime agravado de falsidade de depoimento de testemunha, que é atribuído ao arguido/recorrente, pp. pelo art.360º, nº1 e 3 do C. Penal, exige-se a verificação dos seguintes elementos objectivos:
- Prestação de depoimento falso por parte de testemunha;
- Perante tribunal;
- Após o agente ter sido ajuramentado e advertido das consequências penais a que se expõe (elemento qualificativo).
Constituem ainda elementos subjectivos do tipo:
- O conhecimento pelo agente de que o depoimento é falso; e
- A intenção de prestar esse depoimento falso.
No ponto nº4 dos factos dados como provados na sentença recorrida consta serem falsas as declarações que o aqui arguido/recorrente, na qualidade de testemunha, prestou no julgamento realizado no âmbito do mencionado processo.
Não se trata aqui de um erro na apreciação da prova, mas antes de uma outra patologia, que de seguida analisaremos.
Ora o tribunal recorrido ao consignar que tais declarações são falsas, sem afirmar os factos objectivos e concretos donde emerge aquela asserção, limita-se a proferir uma conclusão, um juízo de valor desacompanhado das premissas donde aquela se pudesse extrair. Essa conclusão deveria antes ser o resultado da indagação da factualidade correspondente. É puramente tautológico dar como provado aquilo mesmo que a prova se destina a provar, pelo que deve ser considerado irrelevante dar-se como provado ser falsa determinada declaração, pois o que se exigiria era que se tivessem provado os factos donde pudesse extrair-se tal conclusão.
Aliás, trata-se de um defeito intrínseco da própria acusação que se propagou à pronúncia e se manteve na sentença recorrida.
Na verdade, como é sublinhado no recente acórdão do STJ de 10-18-2007, proferido no proc.nº07P3158, relatado pelo Exmº Conselheiro Santos Carvalho, disponível em www.dgsi.pt “ os factos genéricos e conclusivos não podem sustentar uma acusação e, muito menos, uma condenação, pois impedem que o arguido exerça o seu direito de defesa que lhe assiste e impossibilitam o tribunal superior de fiscalizar o acerto da decisão”.
A este propósito, como é mencionado com toda a propriedade, no acórdão do STJ de 07-12-2007, prolatado no proc.nº07P1912 e relatado pelo Exº Conselheiro Rodrigues da Costa, também acessível em www.dgsi.pt constatando-se, como aqui sucede, que na 1ª Instância foi incluído no elenco dos factos provados uma mera conclusão, que constitui ela própria um dos elementos objectivos típicos do crime em causa, não há senão que considerar como não escrita essa conclusão, ao abrigo do disposto no art.646º, nº4 do CPC subsidiariamente aplicável por força do art.4º do CPP.
Consequentemente devem ser considerados como tal também os factos descritos sob os nºs 5 e 6 na fundamentação da sentença recorrida, pois que estes pressupunham aquele.
Passando agora à segunda questão enunciada, liminarmente há que referir que o crime de falsidade de testemunho tipificado no art.360º do C. Penal radica na contradição entre o declarado pela testemunha e a realidade objectiva, da qual tinha ela ciência e consciência.
Como é referido no comentário feito ao referido crime por A. Medina de Seiça, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, a falsidade de uma declaração dirige-se ao seu conteúdo. Pressupõe, no entanto, um termo de comparação: uma declaração é falsa quando aquilo que se declara (conteúdo da declaração) diverge daquilo sobre o qual se declara (objecto da declaração). A falsidade da declaração reside na contradição entre o declarado e a realidade, entre a palavra e a realidade ou verdade histórica. Somente a discrepância entre o conteúdo da declaração e o acontecimento fáctico objectivo ao qual a declaração se reporta constitui falsidade (teoria objectiva).
Como é referido com acerto no parecer emitido nesta Instância pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta, citando o acórdão da Relação do Porto de 05-07-2006, proferido no proc.nº0546988, relatado pelo Exmº Desembargador José Piedade, disponível em www.dgsi.pt só estando fixada a verdade objectiva é que se pode saber se o depoimento é falso.
Como se afirma ainda nesse aresto o elemento típico central do crime em causa reside na falsidade do depoimento, a aferir pela sua desconformidade com o acontecimento real a que se reporta a dita concepção objectiva.
Desta concepção decorre que a consumação do crime de falsidade de testemunho existe sempre que o depoimento diverge da realidade objectiva.
O acontecimento real ou verdade objectiva é aquilo que o tribunal em face da produção de prova tenha dado por acontecido.
Caso a narração da testemunha “ se afaste do acontecido”, isto é, daquilo que o tribunal, em face da produção de prova, tenha dado por acontecido, ela é falsa.
No caso vertente, como é referido pelo recorrente e reiterado pelo Ministério Público em ambas as Instâncias, nos factos provados não se encontra fixada a verdade objectiva e sem se saber qual é essa verdade, não se pode afirmar a falsidade do depoimento do recorrente prestado na qualidade de testemunha, na audiência de julgamento realizada no âmbito do proc.nº…do 2º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de …, por não se poder aferir se foi prestado em conformidade ou em desconformidade com o acontecimento real a que se reportou.
Aliás, como atrás dissemos, essa deficiência já radicava na acusação, foi depois propagada à pronúncia e mantida na sentença recorrida.
Como é óbvio, não satisfaz aquela exigência legal, a singela e cómoda referência, traduzida unicamente em se apontar a divergência entre o depoimento do recorrente e de outros sujeitos.
Assim, os factos provados não têm aptidão para preencherem o crime de falsidade de testemunho, tipificado no nº1 do art.360º do C. Penal, ficando por conseguinte prejudicada a análise da subsunção dos factos à previsão do nº3 que constitui uma agravante do tipo base – prestação de declaração falsa, sob juramento, após expressa advertência das consequências penais daí decorrentes.
No caso de que aqui nos ocupamos verifica-se efectivamente que o tribunal “ a quo” incorreu em “error in judicando”, impondo-se em consequência revogar a decisão recorrida e absolver o arguido da prática do aludido crime.
DECISÃO.
Nestes termos e com tais fundamentos concede-se provimento ao recurso e em consequência revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se o arguido/recorrente da prática do crime de falsidade de testemunho, pp. pelo art.360º, nºs 1 e 3 do C. Penal.
Sem custas por não serem devidas.
Évora, 15/04/2008
(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).
Gilberto Cunha
Martinho Cardoso
Marques Cardoso