VENDA DE BENS DA MASSA INSOLVENTE
VENDA COMO ACTO DE ESPECIAL RELEVO
ARTIGO 161 DO CIRE
PREJUÍZO EFECTIVO
PREJUÍZO POTENCIAL
Sumário


I – A mera circunstância de incidir sobre o único bem imóvel apreendido para a massa insolvente não é suficiente para qualificar a venda como um acto de especial relevo, impondo-se, a par disso, que a mesma importe um prejuízo, efectivo ou potencial, para os credores. II – Esse prejuízo não existe se a venda se concretiza por via duma transacção celebrada na acção, intentada pela própria massa insolvente, em que se discute a titularidade do imóvel, mediante a aquisição deste pelo demandado e por um valor equivalente a 85% do valor da avaliação promovida pelo administrador da insolvência.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

Inconformado com o despacho que autorizou o administrador da insolvência de FMB, Lda a vender a favor de J. R. o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/… mediante transacção a realizar na acção de reivindicação pendente tendo por objecto esse mesmo imóvel e que foi intentada pela primeira contra o segundo, o “Banco A, S.A.” interpôs recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

I. A sociedade “FMB, Lda” foi declarada insolvente por sentença proferida em 13/09/2012, tendo sido nomeado como Administrador de Insolvência, o Dr. E. V.;
II. No exercício das suas funções, como Administrador de Insolvência, elaborou o Relatório, a Lista de créditos reconhecidos e Inventário de bens apreendidos e a Assembleia de Credores deliberou o encerramento definitivo do estabelecimento e a liquidação dos bens da massa insolvente;
III. O Inventário elaborado é constituído por nove verbas, oito bens móveis e apenas um imóvel, já onerado, à data da declaração de insolvência, com várias hipotecas e penhoras;
IV. O imóvel trata-se de um prédio urbano, composto por armazém com dois pavilhões e logradouro, sito no Lugar de …, concelho de Vila Real, com área total de 27.440 m2, inscrito na matriz sob o nº … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a descrição nº …;
V. O processo de insolvência é um processo de execução universal cujo objectivo último é a satisfação dos credores, pelo que a venda dos bens apreendidos constitui pois um acto de especial relevo, sob pena de resultar num claro prejuízo para os credores, uma vez que o produto total da venda dos bens apreendidos será a repartir por todos os credores;
VI. Todavia, a alienação – por parte do Sr. Administrador de Insolvência – dos bens apreendidos, embora possa ser efectuada sem “outras autorizações adicionais”, a verdade é que a alienação não pode, no entanto, ser realizada “ad hoc”, devendo ser aferida por ajustados critérios economicistas e de transparência;
VII. A liquidação assume uma fase de especial importância e a intervenção do Administrador de Insolvência é de extrema importância, tendo em conta que o fim último da liquidação, visa a satisfação dos interesses dos credores, através da repartição do produto da venda dos bens apreendidos, por todos os credores e o exercício das funções do Sr. Administrador de Insolvência deverá ser efectuado dentro dos limites legais, isto é, sob a fiscalização da Comissão de Credores, bem como do Juiz de insolvência;
VIII. No caso dos presentes autos, analisado com rigor e atenção o processo de insolvência e mais concretamente a liquidação do activo, facilmente se conclui que o requerimento apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência, em 03/03/2017 com a refª 1201498, não configura um pedido de emissão de certidão para venda do imóvel em circunstâncias “normais” de um processo de insolvência;
IX. A 09/04/2015, a solicitação do Tribunal, o Sr. Administrador informou os autos que os bens móveis encontravam no interior do imóvel, constituindo estes a universalidade do activo da Insolvente;
X. A liquidação dos bens móveis encontrava-se suspensa, devido à acção de processo comum que correu termos sob o apenso F, a liquidação do imóvel ficou, consequentemente, prejudicada concluindo, a final, a suspensão da liquidação do imóvel;
XI. Desconhecendo os credores as diligências realizadas pelo Sr. Administrador de Insolvência e sua conclusão, relativamente aos bens móveis apreendidos;
XII. A avaliação do imóvel junta aos autos em Julho de 2013, um ano e meio após a deliberação de liquidação do activo, tomada em assembleia de credores, veio o Sr. Administrador informar os autos que a venda dos bens móveis se encontrava suspensa e que consequentemente também a venda do imóvel deveria aguardar pela decisão a proferir na acção anteriormente mencionada;
XIII. Pelo menos até aquela data, o Sr. Administrador não procedeu a quaisquer diligências de venda do imóvel, nomeadamente não auscultou os credores quanto à decisão sobre o valor base a fixar, modalidade de venda, não procedeu à publicidade da venda, não efectuou quaisquer contactos com potenciais interessados, etc…;
XIV. Desde então e até à notificação efectuada pelo Sr. Administrador de insolvência nos termos do art.161º, CIRE, nada mais o aqui Recorrente teve conhecimento ou foi notificado sobre quaisquer actos praticados pelo Sr. Administrador referentes à liquidação;
XV. Não se compreende que quase três anos volvidos sobre o pedido de suspensão da liquidação dos bens apreendidos, o Recorrente e os demais credores não tenham conhecimento das diligências praticadas pelo Sr. Administrador de insolvência mormente, se os bens foram ou não vendidos;
XVI. Face ao entendimento plasmado pelo Sr. Administrador de Insolvência quanto à suspensão da liquidação dos bens móveis, não se compreende que a mesma decisão também não se mantenha quanto à venda do bem imóvel;
XVII. Prevê o art. 160º do CIRE sob o título “Bens de titularidade controversa”, que: “Se estiver pendente acção de reivindicação, pedido de restituição ou de separação relativamente a bens apreendidos para a massa insolvente, não se procede à liquidação destes bens enquanto não houver decisão transitada em julgado …”;
XVIII. Atendendo a que o objecto da acção de reivindicação é o imóvel apreendido nos autos, não se alcança o entendimento do Sr. Administrador e menos ainda do Tribunal a quo que se proceda à liquidação do bem, como se tal litígio não existisse ou se sobre o mesmo, se verificasse já uma decisão transitada em julgado, devidamente esclarecedora quanto ao legítimo proprietário do imóvel;
XIX. Face à natureza da acção em curso, a liquidação do activo deverá estar suspensa e, como tal, não deverão ter sido praticados quaisquer actos relativos à venda do imóvel;
XX. Neste contexto, os credores Banco A, S.A. e P., S.A., cujos créditos são de natureza garantida sob o imóvel apreendido, responderam ao Sr. Administrador opondo-se à venda do imóvel pelo valor oferecido;
XXI. A oposição manifestada baseou-se na divergência do valor do bem imóvel, pois o Sr. Administrador sustenta o seu parecer numa avaliação efectuada em Julho de 2013, da qual resulta um valor de venda imediata de 243.402,40€, e os credores baseiam-se numa avaliação realizada em Janeiro de 2016, por perito idóneo e devidamente certificado, da qual resulta um valor de venda imediata, substancialmente superior, que ascende a 327.200,00€;
XXII. Sem esquecer o desgaste natural de um imóvel durante todos estes anos, há que atender à especificidade do imóvel no qual a Insolvente exercia a actividade de produção de vinho, à localização privilegiada em zona agrícola de produção de vinho, a extensa área do imóvel e, principalmente, à recuperação que o mercado imobiliário tem vindo a revelar;
XXIII. A aceitação da proposta apresentada pelo Réu, no âmbito da acção de reivindicação, prejudica seriamente os credores, porquanto representa - em relação ao valor determinado na avaliação mais recente (2016) e considerando apenas o valor de venda imediata e não o valor de mercado (sempre superior àquele) - uma redução de quase 40% face ao valor determinado, quando da Lei resulta que a primeira tentativa de venda deverá ser efectuada com uma redução de apenas 15% (art.816º, nº2, CPC);
XXIV. Ao que se sabe, nenhuma diligência de venda terá sido efectuada pelo Sr. Administrador e até à presente data esta é a única proposta de aquisição apresentada e que surge – insista-se - no decurso da acção de reivindicação, apresentada pelo próprio Réu;
XXV. É legítima a expectativa dos credores de serem ressarcidos pelo valor mais elevado possível decorrente da venda dos bens que constituem o activo da Insolvente e tal desiderato, apenas será possível, se forem efectuadas todas as diligências de venda, nomeadamente a publicidade de venda do bem;
XXVI. Considerando que o imóvel em causa é já o único bem que resta liquidar nos autos de insolvência e sendo, obviamente, o bem de valor mais elevado de todos os bens apreendidos, a venda do mesmo ao único Proponente conhecido e nas condições supra descritas é claramente lesiva e prejudicial aos interesses dos credores;
XXVII. A publicidade da venda enquadrada no normal funcionamento do mercado, através da publicação de anúncios potencia o aparecimento de um maior número de interessados e, consequentemente quanto maior for a procura, maior será a oferta e, como tal, os valores oferecidos serão tendencialmente mais elevados; além de que, a publicidade confere uma maior transparência, justiça e clareza na venda;
XXVIII. A decisão recorrida, além de desconsiderar o requerimento apresentado pelos Credores hipotecários e ainda pelo Credor V., Lda. afigura-se profundamente injusta e precipitada, potenciando a venda do imóvel ao “desbarato” em prejuízo de todos os credores – razão por que não pode o Credor Reclamante conformar-se com a mesma;
XXIX. Não se compreende que, em manifesta violação das normas aplicáveis se “atropelem” os direitos e interesses de todos os intervenientes processuais, mormente os credores, aceitando-se uma proposta de valor irrisório sem se estar na posse de qualquer informação factual que sustente e justifique tal decisão;
XXX. A decisão recorrida, além de profundamente injusta, padece de manifesto erro na aplicação do direito, tendo o Tribunal a quo desconsiderado, de forma infundada o requerimento apresentado pelo Recorrente e posição manifestada pelo Sr. Administrador de Insolvência e pelo próprio Insolvente;
XXXI. As excepções previstas no art. 160º do CIRE, que permitem a venda do bem ainda no decurso da acção de reivindicação, são situações taxativas e é entendimento do Recorrente que não se aplicam ao caso concreto;
XXXII. A liquidação do imóvel deverá ser suspensa devido à acção de reivindicação em curso conforme determinado no art. supra referido, excepto se se verificar a anuência do interessado; no caso de venda antecipada e ainda se o adquirente for advertido da controvérsia acerca da titularidade e aceitar na íntegra e sem reservas o litígio em curso;
XXXIII. É entendimento do Recorrente que não se tratando de um bem que se enquadre na previsão do art. 158º, nº2 do CIRE e, considerando ainda que o Proponente não é um terceiro adquirente, mas antes o próprio Réu da acção de reivindicação está liminarmente excluída a aplicação das alíneas b) e c) do nº1 do art. 160º, CIRE;
XXXIV. Restaria apenas a possibilidade de aplicação da alínea a), mas a anuência do interessado seria, neste caso, a concordância da massa insolvente que é a Autora da acção, ali representada pelo Administrador de insolvência e sendo o Proponente o próprio Réu, resulta claro que existe nesta situação um claro e inequívoco conflito de interesses;
XXXV. Caso a venda do imóvel seja autorizada nos termos solicitados pelo Sr. Administrador, só o Proponente beneficia - e duplamente - de tal solução, isto é, por um lado vê resolvida a acção contra si interposta e que afecta a alegada propriedade do imóvel por transacção e, por outro, adquire um imóvel por um valor manifestamente inferior ao valor de mercado, sem se sujeitar à concorrência de eventuais interessados;
XXXVI. De igual modo, o Sr. Administrador beneficia da transacção proposta, já que sem ter efectuado qualquer diligência de liquidação, procede à venda do imóvel, concluindo o processo de insolvência que em abono da verdade já vai longo, e por outro extingue a acção de reivindicação;
XXXVII. Resulta evidente que os únicos prejudicados pela decisão proferida são os credores, pois a ser aceite tal desiderato, está em risco a satisfação dos seus interesses, evidentemente frustrado pela insuficiência do activo apreendido;
XXXVIII. A procedência da acção de reivindicação em curso terá como consequência a atribuição do direito de propriedade do imóvel para a Insolvente e, como tal, a reintegração - na massa insolvente - de um bem no valor de, pelo menos, 327.200,00€;
XXXIX. Não descurando o facto de que o imóvel em questão, é o único bem capaz de – com a sua venda – satisfazer parte dos créditos reclamados, uma vez que os bens móveis foram vendidos por um valor manifestamente diminuto, não existindo mais bens apreendidos para a massa insolvente;
XL. A transacção nos termos requeridos pelo Sr. Administrador de Insolvência coloca em risco a satisfação dos interesses dos credores, frustrando-os, pela evidente insuficiência do activo, pois a ser aceite tal transacção, a massa insolvente apenas consegue encaixar 204.000,00€, valor manifestamente inferior ao valor de venda imediata resultante de uma avaliação que tem pouco mais de um ano e que não foi contestada pelo Sr. Administrador, tão somente ignorada, quer por este como convém, quer pelo Tribunal a quo;
XLI. Consentir na alienação do imóvel, cuja propriedade seja reconhecida à Insolvente na acção de reivindicação, trará para a massa insolvente um valor aproximado de 327.200,00€, ao invés do recebimento imediato de 204.000,00€;
XLII. O recebimento deste valor é manifestamente desproporcionado e prejudicial à massa insolvente, tanto mais que não há quaisquer outros bens a apreender e o montante dos créditos reclamados ascende a 2.710.946,04€;
XLIII. Por outro lado, tal permitirá ao Réu Proponente um enriquecimento sem causa, porquanto integrará no seu património um imóvel com um valor aproximado de 327.200,00€;
XLIV. Os credores desconhecem a forma de pagamento do valor oferecido e ainda a cargo de quem ficariam as despesas e custas associadas ao processo de reivindicação em curso, estando ainda vedada a possibilidade de apurar no mercado o aparecimento de eventuais propostas de valor superior à oferecida;
XLV. Pelo que deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por decisão que rejeite o pedido apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência para emissão de certidão para celebrar transacção e venda do imóvel pelo valor de 204.000,00€, com as legais consequências, devendo ainda ser ordenado que os autos aguardem o trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida na acção de reivindicação, para posteriormente ser realizadas pelos Sr. Administrador todas as diligências em ordem à liquidação do bem imóvel.
Também inconformado, o Ministério Público recorreu do mesmo despacho, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

I. Dão-se por reproduzidas para todos os legais efeitos, as conclusões do recurso da recorrente A, SA, recurso para o qual remetemos, ao qual aderimos, e que demos por reproduzido com as devidas adaptações;
II. Por sentença de 13.09.2012 foi declarada a insolvência da sociedade “FMB, Lda”;
III. Foram reconhecidos ao Estado Português créditos no valor da execução das garantias bancárias emitidas pelo BANCO B, SA (nº …2004-P e …2004-P) a favor da insolvente e que foram solicitadas e pagas pelo Estado Português, no valor, respectivamente, de 43.521,02 euros e 174.084,10 euros (pelo que se considerou que tal crédito, no valor total de 217.605,12 euros);
IV. O crédito reconhecido ao Estado Português (bem assim como ao Banco A, SA e à sociedade P., SA) goza de garantia resultante da hipoteca constituída a favor do BANCO B, SA entretanto transmitida a estes credores com a cedência dos respectivos créditos, relativamente ao imóvel id. nos factos provados sob o nº 3 e foi graduado, a par com os outros credores garantidos, em primeiro lugar;
V. Na assembleia de credores decidiu-se “o encerramento do estabelecimento e a liquidação e partilha dos bens integrados na massa da insolvente”;
VI. Tal imóvel surge avaliado em 325.000,00 euros pelo Sr. AI, sendo o único imóvel relacionado (as demais verbas são móveis);
VII. O despacho recorrido decidiu “indeferir o requerido pelo Banco A, S.A., e deferir o pedido de emissão de certidão pelo Sr. Administrador da Insolvência”;
VIII. Tal despacho é nulo por ter sido colocada ao Tribunal questão concreta, sobre o valor e preço da venda e ter omitido tal pronúncia;
IX. A sentença é nula quando, além do mais, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, pelo que foi violado o disposto na al. d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC, sendo que tal normativo é aplicável aos despachos judiciais como o vertente, desde logo por força do disposto no artigo 17º do CIRE e artigo 154º do Código de Processo Civil;
X. O despacho recorrido enferma de nulidade por omissão de pronúncia sobre a concreta questão do valor da venda e da discrepância das avaliações presentes ao tribunal sobre o mesmo imóvel, impondo-se que o Mm. Juiz, na concretização dos seus poderes de fiscalização da actividade do AI e salvaguarda da legalidade, procurasse determinar o valor actual do imóvel, ou pelo menos aferir das razões de tal discrepância, por exemplo pedindo esclarecimentos ao AI, ou determinando que este procedesse a avaliação do imóvel;
XI. Tal despacho é ainda nulo por não ter atentado na falta de cumprimento do disposto no artigo 164º nº 2 do CIRE quanto ao Estado Português como se colhe dos documentos por si juntos a fls. 864 e ss. e do seu requerimento de fls. 862 e ss..
XII. O Estado Português é credor garantido e cujo crédito foi graduado em primeiro lugar a par com o A e da P., S.A. sobre este imóvel, e era obrigatório dar conhecimento a este credor quer da modalidade de venda prevista, quer do preço proposto, quer da referida avaliação, à qual NUNCA o Estado Português teve acesso – doc. 1 e 2;
XIII. O credor Estado Português esteve assim impedido de exercer os seus direitos, mormente de lançar mão do nº 3 do artigo 164º do CIRE;
XIV. O despacho recorrido é igualmente nulo por não ter assegurado em relação ao Estado Português o princípio do contraditório quanto à nova avaliação junta por um credor garantido com crédito graduado a par do seu – artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil;
XV. Verificam-se assim os pressupostos da alínea a) e g) do nº 3 do artigo 161º do CIRE, pelo que, no caso concreto, se impunha o consentimento expresso da comissão de credores;
XVI. Nem se diga que com a deliberação da assembleia de credores se concedeu ao Sr. AI uma “autorização genérica” para a prática de actos de liquidação, e portanto, para escolher não só a modalidade de venda, como para vender pelo preço que entendesse…
XVII. A opção pela liquidação do património não pode ser, e não é, destarte o enorme poder do Sr. AI, a emissão de uma “carta branca” para que “venda como quer, a quem quer e pelo preço que quiser”… sob pena de se violarem de forma flagrante os direitos dos credores e a própria finalidade do processo de insolvência;
XVIII. Ao omitir a audição do credor garantido Estado Português e ao fazer tábua rasa de avaliação mais recente (sem sequer procurar contraditá-la ou aferir da sua bondade) e mais vantajosa para a massa, o Sr. AI violou os deveres que lhe foram confiados;
XIX. Por seu turno, o Mm.º Juiz, ao decidir sem se assegurar que o AI tinha cumprido tais formalidades e que agia em conformidade com os deveres funcionais inerentes ao seu cargo, violou o disposto no artigo 161º, nº 1, 2, 3, a) e g), e 164º do CIRE e artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil.
XX. Não podia o Sr. AI, como fez, omitir por completo quer à comissão de credores, quer aos credores garantidos, a existência da acção de reivindicação e a omissão de toda e qualquer diligência de liquidação do activo quanto a este imóvel.
XXI. Não podia pois o tribunal ter decidido como decidiu, ou seja, considerar que o Sr. AI cumpriu os deveres de informação e audição impostos legalmente e que mais não lhe era imposto, designadamente que não lhe era imposto no caso concreto, a concordância da comissão de credores e a audição dos credores garantidos;
XXII. A venda no caso concreto está vedada pelo artigo 160.º do CIRE, atinente a bens de titularidade controversa dado que está pendente acção de reivindicação relativo a tal imóvel e não foi colhida a anuência dos interessados: no caso concreto da comissão de credores e dos credores garantidos e ainda, no que ora releva, do Estado Português;
XXIII. Não pode o tribunal autorizá-la ou emitir a certidão para a venda do imóvel como fez e ao fazê-lo o tribunal a quo violou o disposto no artigo 160º do CIRE.
O AI apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões recursórias são as seguintes:

- Se a decisão recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia;
- Se ocorre nulidade processual atendível, consubstanciada na falta de cumprimento do disposto no artigo 164º, n.º 2 do CIRE relativamente ao Estado, representado pelo Ministério Público;
- Se a venda do imóvel apreendido para a massa insolvente dependia da autorização da comissão de credores, por consubstanciar um acto de especial relevo, subsumível à previsão do artigo 161º do CIRE;
- Se a liquidação do activo devia ter sido suspensa até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na acção de reivindicação.
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III. FUNDAMENTOS:

As questões suscitadas em ambos os recursos são de natureza exclusivamente jurídica.
Relembra-se o teor do despacho recorrido:
Ref. n.ºs 1201498, 1221066 e 1221511:
Relativamente às posições assumidas pelo Sr. Administrador da Insolvência e pelo Banco A, S.A., penso que parte do debate se prende com um pressuposto que tenho por discutível, que é o de que será necessária a autorização da comissão de credores para a alienação do imóvel, o que deduzo ser eventualmente alicerçado no disposto no artigo 161.º, n.ºs 1 e 3, al. g), do C.I.R.E.
Com efeito, não podemos desconsiderar que na assembleia de apreciação de relatório (cfr. fls. 730-732) foi deliberado proceder-se ao “encerramento definitivo e oficial do estabelecimento” e à “liquidação e partilha dos bens integrados na massa insolvente”, o que forçosamente implica a concomitante venda do activo existente, como decorre da aplicação conjugada da parte final do n.º 1 do artigo 1.º (“o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela (…) liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”), do n.º 2 do artigo 156.º (“a assembleia de credores de apreciação do relatório delibera sobre o encerramento ou manutenção em actividade do estabelecimento”) e do n.º 1 do artigo 158.º do C.I.R.E. (“transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente (…) na medida em que a tanto não se oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia”), pelo que já existira uma autorização genérica daquele órgão da insolvência para a alienação pelo Administrador da Insolvência dos bens apreendidos, a qual torna dispensável a autorização subsequente para a celebração em concreto de um dado negócio de alienação, quer pela comissão de credores, quer pela assembleia de credores, na falta daquela.
Na verdade, decorre do artigo 80.º do C.I.R.E. que a existência de uma deliberação da assembleia de credores autoriza por si só a prática de qualquer acto para o qual no C.I.R.E. se requeira a aprovação da comissão de credores, o que traduz a prevalência das decisões tomadas por aquele órgão, o que poderia ser colocado em causa se se admitisse a possibilidade da comissão de credores recusar a prática de um acto de alienação do estabelecimento (ou da venda de um imóvel compreendido no activo), apesar de a assembleia de credores ter determinado o encerramento do estabelecimento e inerente liquidação do activo.
Acresce que esta interpretação apresenta coerência com o restante sistema consagrado, pois sendo deliberado o encerramento do estabelecimento pela assembleia de credores caberá a escolha da modalidade da alienação dos bens ao Administrador da Insolvência (cfr. artigo 164.º, n.º 1, do C.I.R.E.), sem prejuízo de este dever dar conhecimento ao devedor, à comissão de credores e aos credores garantidos de alguns dos negócios de alienação do activo a realizar (cfr. artigos 161.º, n.º 4 e 164.º, n.º 2, do C.I.R.E.).
Aliás, apenas se mostra compreensível o dever de informação da comissão de credores previsto no artigo 161.º, n.º 4, do C.I.R.E., se não se exigir a sua autorização em concreto para aquele acto de especial relevo, pois de outro modo tratar-se-ia de um preceito carecido de sentido útil quanto àquele órgão da insolvência, face ao que já decorreria do n.º 1, pois a decisão da comissão de credores de autorizar pressupõe necessariamente que seja informada dos elementos essenciais do negócio projectado.
Ao invés, entendo que a aplicação conjugada da alínea g) do n.º 3 do artigo 161.º do C.I.R.E., com o n.º 1 desse preceito, está primacialmente vocacionada para aqueles casos em que o estabelecimento permanece em actividade (cfr. artigo 156.º, n.º 2, do C.I.R.E.), e se perspectiva a pertinência da venda em separado de um determinado bem (por exemplo, o edifício onde funciona uma filial da insolvente), o que é reforçado pela circunstância das demais alíneas do n.º 3 do artigo 161.º do C.I.R.E. estarem pensadas para o prosseguimento em actividade da empresa.
Assim, a alínea a) apenas possui sentido útil quando a assembleia de credores de apreciação de relatório tiver deliberado a manutenção em actividade do estabelecimento (cfr. artigo 156.º, n.º 2, do C.I.R.E.), pois de outro modo a necessidade de autorização pela comissão de credores conflituaria com a decisão de se proceder à venda do estabelecimento deliberada pela assembleia de credores (cfr. artigo 80.º do C.I.R.E.), enquanto as alíneas b) a f) são claramente vocacionadas para responderem às exigências decorrentes da permanência em actividade de um estabelecimento.
Nesse enquadramento releva-se, pois, compreensível que o artigo 164.º, n.º 2, do C.I.R.E., estabeleça que “na qualificação de um acto como de especial relevo atende-se aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade de recuperação da empresa” (negrito e sublinhado meu).
Finalmente, não obsta ao explanado as dúvidas que se podem suscitar quanto à bondade da opção legislativa, por conferir ao Administrador da Insolvência demasiados poderes não sindicáveis por outros órgãos da insolvência, mas tais reservas prendem-se antes com a ponderação do direito a constituir, não com o direito constituído.
Nesta decorrência, fica prejudicada a apreciação da discussão acerca da existência ou não do quórum deliberativo por banda da comissão de credores.

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Posto isto, existe outra questão suscitada pelo Banco A, S.A., que se prende com a propalada ausência de comunicação aos credores das diligências de liquidação.
A esse respeito, dispõe o artigo 61.º, n.º 2, do C.I.R.E., que o Sr. Administrador da Insolvência “promove o arquivamento de todos os elementos relativos a cada diligência da liquidação, indicando nos autos o local onde os respectivos documentos se encontram”, apenas lhe cabendo prestar as informações que lhe sejam solicitadas pelo Tribunal (artigo 58.º do C.I.R.E.), Comissão de Credores (artigo 68.º, n.º 2 do C.I.R.E.) e Assembleia de Credores (artigo 79.º do C.I.R.E.), para além de dever apresentar um relatório trimestral em consonância com o preceituado no artigo 61.º, n.º 1, do C.I.R.E.
Assim sendo, inexiste uma obrigação do Sr. Administrador da Insolvência, caso tal não lhe seja expressamente solicitado por um daqueles órgãos da insolvência, prestar aos credores quaisquer informações específicas acerca da liquidação.
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Aqui chegados, importa relembrar que não existe qualquer norma que imponha uma necessidade de autorização para a realização do negócio, quer por banda dos membros da assembleia de credores, quer por parte dos credores com garantias reais sobre o bem a alienar, mas tão-somente se impõe a observância dos deveres de informação e de audição (cfr. artigos 161.º, n.º 4 e 164.º, n.º 2, do C.I.R.E.)1, cabendo a decisão final ao Sr. Administrador da Insolvência, a quem cabe a promoção das diligências de liquidação do activo (cfr. artigos 158.º, n.º 1 e 164.º, n.º 1, do C.I.R.E.).
1 Cfr. o Ac. do Trib. da Rel. de Lisboa de 15/11/2012, rel. Fátima Galante, proc. n.º 519/10.5TYLSB-B.L1-6, in www.dgsi.pt
2 Cfr. Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 2009, Almedina, pág. 251; Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 2009, Almedina, pág. 225-226 e João Labareda/Carvalho Fernandes, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Vol. I, 2006, Quid Juris, pág. 551-553.
3 Cfr. o Ac. do S.T.J. de 16/04/2013, rel. António Joaquim Piçarra, proc. n.º 3410/10.1T2SNT-E.L1.S1; o Ac. do Trib. da Rel. de Guimarães de 28/07/2008, rel. Rosa Tching, proc. n.º 1566/08-2; os Ac. do Trib. da Rel. de Lisboa de 31/10/2012, rel. Maria Amélia Ameixoeira, proc. n.º 3410/10.1T2SNT-E.L1-8, de 27/11/2014, rel. Teresa Albuquerque, proc. n.º 2503/12.5 TBPDL-O-L1-2; os Ac. do Trib. da Rel. do Porto de 13/12/2011, rel. António Martins, proc. n.º 4700/08.9TBSTS-H.P1, de 21/05/2013, rel. José Carvalho, proc. n.º 757/09.3TYVNG-P.P1 e de 16/09/2014, rel. Maria de Jesus Pereira, proc. n.º 1040/12.2TBLSD-G.P1, in www.dgsi.pt.
Por outro lado, importa salientar que a preterição dos formalismos previstos para a liquidação do activo não acarreta, por via de regra, a invalidade ou a ineficácia dos actos praticados pelo Administrador da Insolvência, atento o preceituado no artigo 163.º do C.I.R.E.23, pelo que na generalidade dos casos não se mostra admissível a apresentação de reclamações para o juiz das irregularidades que tenham sido cometidas4.
4 Cfr. o Ac. do Trib. da Rel. do Porto de 29/05/2014, rel. Aristides R. de Almeida, proc. n.º 615/11.1TYVNG-D.P1, in www.dgsi.pt.
Por último, como o Banco A, S.A., não representa actualmente mais de um quinto do total dos créditos não subordinados, não possui de “per si” legitimidade para requerer a convocação de Assembleia de Credores, em consonância com o preceituado no artigo 161.º, n.º 5, do C.I.R.E.
*
Termos em que, considerando o exposto, se decide indeferir o requerido pelo Banco A, S.A., e deferir o pedido de emissão de certidão pelo Sr. Administrador da Insolvência”.
Pois bem.
Desde já se adianta que é de manter a decisão sob censura.
Vejamos porquê.
A assembleia de apreciação do relatório deliberou o encerramento do estabelecimento da insolvente e a liquidação e partilha do respectivo património, composto por um único imóvel, precisamente aquele sobre que versam os recursos, e oito móveis.
A partir de então o administrador da insolvência ficou constituído na obrigação de “proceder com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa”, nos termos do artigo 158º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (1).
Conferindo-lhe uma ampla autonomia no que respeita à liquidação, com a intenção, declarada, de intensificar a desjudicialização do processo, o legislador não deixou de estabelecer alguns limites a essa autonomia, subordinando determinados actos concretos à obtenção de prévia autorização da comissão de credores ou, se esta não existir, da assembleia de credores.
Fê-lo no artigo 161º, n.º 1 e mediante o recurso a um conceito indeterminado: actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência.
Forneceu ainda, nos números 2 e 3 do mesmo inciso, os critérios de determinação desse conceito e um catálogo de actos que o integram.
Tal como o Senhor Juiz a quo, consideramos que a susceptibilidade de recuperação da empresa subjaz, inequivocamente, às várias alíneas do n.º 3, incluindo a alínea g), como decorre da ressalva contida na respectiva parte final.
Daí que, tendo sido deliberado o encerramento do estabelecimento, seja de concluir que a alienação que nos ocupa não é subsumível a nenhuma das hipóteses enumeradas pelo legislador.
Todavia, essa enumeração é meramente exemplificativa (2), pelo que podem existir outros actos que, transcendendo-a, assumam especial relevo para o processo de insolvência, nomeadamente tendo em conta os demais critérios que concorrem para essa qualificação, entre os quais avultam as “perspectivas de satisfação dos credores da insolvência”.
Mas, será que a alienação projectada merece essa qualificação?
Cremos que não.
É certo que recai sobre o único imóvel integrado na massa insolvente e que os recorrentes, desprezando a avaliação promovida pelo administrador da insolvência e de que este se socorreu para fixar o valor base da venda (3), afirmam que o preço oferecido corresponde a menos de metade do valor de mercado de tal imóvel, fixado numa avaliação mais recente e cujo relatório se mostra certificado a fls. 98 a 106.
Todavia, para além das reservas que esta última avaliação nos merece, mormente em face das circunstâncias que presidiram à sua realização, os recorrentes parecem olvidar que existe um litígio acerca da titularidade do imóvel e que o desfecho da acção de reivindicação pendente é, naturalmente, incerto, não podendo excluir-se que seja desfavorável à Massa Insolvente.
Ora, a alienação projectada, inserindo-se numa transacção a realizar no âmbito da sobredita acção, evita a álea inerente a esta, o que não pode deixar de se reflectir no preço oferecido.
Tendo em conta este específico condicionalismo, desvalorizado pelos recorrentes, pensamos que não se mostra minimamente demonstrado que a alienação importe um prejuízo, efectivo ou potencial, para os credores(4)(5), pelo que não pode ser qualificada como um acto de especial relevo, nem, consequentemente, dependia de autorização da comissão de credores, como sucederia se merecesse tal qualificação, divergindo-se aqui do entendimento expresso pelo Senhor Juiz a quo segundo o qual a deliberação da assembleia de apreciação do relatório dispensava, sem mais, qualquer autorização adicional, atento o regime previsto no artigo 80º.
Na verdade, o que resulta deste normativo é que as deliberações da assembleia prevalecem sempre sobre as da comissão de credores e que aquela pode tomar decisões relativas a actos que dependam da aprovação desta, substituindo-a, nomeadamente nos casos a que se refere o artigo 161º.
Porém, isso não significa que, tendo sido deliberada, genericamente, a liquidação dos bens integrados na massa, os concretos actos de alienação, quando assumam especial relevo, estejam isentos de qualquer autorização subsequente.
Aliás, se houver a intenção de efectuar a venda por meio de negociação particular ou dum procedimento análogo, o legislador, visando aumentar as “exigências de transparência e de isenção” (6), impõe ao administrador, como um plus relativamente ao consentimento exigido no n.º 1 do artigo 161º, que comunique essa intenção à comissão de credores e ao devedor, bem como a identidade do adquirente e as demais condições do negócio (n.º 4).
Prosseguindo.
Como se extrai do artigo 164º, n.º 1, cabe ao administrador da insolvência decidir sobre a modalidade da venda.
Deve apenas observar os deveres de comunicação, audição e informação prescritos nos artigos 161º, n.º 4, e 164º, n.º 2.
Ora, abstraindo daquele primeiro preceito, inaplicável ao caso por se ter arredado, nos termos expostos, a qualificação da alienação como um acto de especial relevo, decorre do segundo que os credores com garantia real sobre o imóvel a alienar são ouvidos sobre a modalidade da venda e informados sobre o valor base fixado ou o preço da alienação projectada a entidade determinada.
A distinção não é inócua. É que, podendo pronunciar-se sobre a modalidade da venda escolhida (7), os credores não podem interferir na fixação do respectivo valor base ou exigir que o administrador diligencie pela obtenção de ofertas mais vantajosas. Resta-lhes uma única via para protegerem o seu crédito: propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado.
Ora, o A fez o oposto. Insurgiu-se contra a avaliação promovida pelo administrador da insolvência, contrapondo-lhe uma outra, obtida particularmente e a que acima já fizemos referência, e instando-o a submeter à sua apreciação uma “eventual contraproposta de valor superior”.
Trata-se de um procedimento que não tem cobertura legal e que, como tal, não podia ser atendido pelo tribunal, o que prejudica o conhecimento da arguida nulidade da decisão por omissão de pronúncia, dado que, ainda que tal vício ocorresse, sempre se imporia o conhecimento do objecto da apelação, com as consequências apontadas, atenta a regra da substituição ao tribunal recorrido, consagrada no artigo 665º do Novo Código de Processo Civil.
Questão distinta é a da invocada omissão de cumprimento do disposto no artigo 164º, n.º 2 relativamente ao Estado, representado pelo Ministério Público, como beneficiário da hipoteca genérica constituída a favor do BANCO B e entretanto transmitida a favor daquele (cfr. sentença de verificação de créditos certificada a fls. 121 a 139).
Admitindo que essa formalidade tenha sido preterida, desiderato que parece resultar das peças processuais que instruem o recurso, entendemos que a mesma não gera a invalidade ou ineficácia dos actos de liquidação.
Como vem sendo repetidamente afirmado na jurisprudência, a preterição das formalidades legais na venda efectuada pelo administrador da insolvência pode apenas fundamentar a eventual destituição deste ou a sua responsabilização ao abrigo do disposto nos artigos 56º, 59º, 163º e 164º, n.º 3 – assim se decidiu, entre muitos outros, no acórdão desta Relação de 31.3.2016 (relator Joaquim Espinheira Baltar) e no acórdão da Relação de Évora de 8.9.2016 (relator Silva Rato), ambos disponíveis em www.dgsi.pt..
Argumentam, por último, os recorrentes que a liquidação deveria ter sido suspensa até ser decidida, com trânsito em julgado, a acção em que se discute a titularidade do imóvel apreendido, invocando em seu abono a disciplina contida no artigo 160º.
Como já antecipamos, também aqui lhes falece razão.
É que o apontado normativo está claramente pensado para as hipóteses em que, encontrando-se instaurada acção de reivindicação sobre bens apreendidos para a massa ou tendo sido deduzido, no próprio processo de insolvência, pedido de restituição ou de separação, o administrador se propõe vender a terceiro os bens cuja titularidade se discute nesses procedimentos, ainda pendentes.
Ora, no caso vertente, a acção de reivindicação pendente foi intentada pela Massa Insolvente e a alienação projectada não envolve terceiros, antes será concretizada (admitindo que ainda não o tenha sido, atento o efeito devolutivo atribuído ao recurso) por via duma transacção entre as partes, resolvendo definitivamente o litígio entre elas e não beliscando interesses de terceiros.
Destarte, afigura-se-nos que é inaplicável ao caso a referida disciplina legal.
Uma derradeira nota para dizer que, pugnando pela suspensão da liquidação relativamente ao imóvel, alegando ter sido esse o procedimento adoptado relativamente aos bens móveis, os recorrentes acabam por admitir, paradoxalmente, que estes últimos bens também já foram vendidos, aliás por um valor irrisório.
Em suma, improcedem todas as conclusões dos recursos.

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IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedentes ambas as apelações e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
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Guimarães, 4 de Outubro de 2017

Relator
1º Adjunto
2º Adjunto


1. Diploma a que pertencerão os restantes preceitos citados sem indicação de origem.
2. Como inculca a utilização do advérbio de modo “designadamente” no proémio do n.º 3 do preceito em análise.
3. Acessível para consulta no local oportunamente indicado pelo A.I., como impõe o artigo 61º, n.º 2.
4. Note-se que o preço oferecido corresponde a 85% do valor base do imóvel fixado pelo administrador da insolvência.
5. Como se pode ler no sumário do acórdão da Relação do Porto de 13.12.2011 (relator António Martins), disponível em www.dgsi.pt, “I - A circunstância de ser o único imóvel que integra o activo da massa falida não é critério suficiente para se qualificar (…)” a “venda como de especial relevo”, impondo-se, a par disso, que haja um “prejuízo, efectivo ou potencial, para os outros credores e para os próprios devedores/insolventes”, nomeadamente por se mostrar plausível a concretização da venda por valor superior ao obtido pelo administrador da insolvência.
6. Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, página 456.
7. Dividindo-se a doutrina sobre a natureza, vinculativa ou não, dessa pronúncia. Em sentido afirmativo, ver Autores e Obra referidos na nota anterior, página 465.Em sentido negativo, ver Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, página 547.