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APREENSÃO DE VEÍCULO
ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
PERICULUM IN MORA
Sumário
Perante o incumprimento do contrato, que levou à sua resolução, a recusa de entrega duma coisa móvel que se desvaloriza pelo uso normal e decurso do tempo, indicia o receio fundado de lesão grave e de difícil reparação
Texto Integral
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Proc. nº 820/08-3ª
Apelação
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I – RELATÓRIO:
«...................... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.», em procedimento cautelar comum, instaurado, na comarca de Portimão, contra José................., invocando o seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel com a matrícula 65-80-UO, bem como a resolução do contrato de aluguer daquele veículo celebrado com o requerido, por falta de pagamento de prestações vencidas, requereu que fosse ordenada a apreensão do veículo.
Produzida a prova, sem audiência do requerido, o tribunal de 1ª instância proferiu decisão, julgando improcedente a providência requerida. Embora reconhecendo que ocorre a probabilidade séria de existência do direito invocado, entendeu aquele tribunal que não ficou indiciariamente demonstrado o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável, para o que considera insuficiente a evidência da desvalorização inerente à natureza do bem locado e do risco de perda do veículo.
Inconformada com tal decisão, dela recorreu a requerente, pugnando pela procedência da providência. Nas suas alegações de recurso procura demonstrar que a simples posse do veículo pelo requerido, no confronto com o seu direito de propriedade sobre o mesmo e a natureza deste, permite inferir o periculum in mora, sem necessidade de qualquer prova adicional – argumentos que condensa utilmente nas seguintes conclusões:
«(…)
m) Relativamente a este direito [de propriedade da requerente sobre o veículo], é manifesto que o prejuízo para a Requerente, decorrente do facto do Requerido se encontrar na posse do veículo, sem legitimidade para isso, é de difícil reparação;
n) Um veículo automóvel está sujeito a um conjunto de vicissitudes físicas e jurídicas que não permitem que se possa concluir que o decurso de três ou quatro anos (tempo médio para se chegar à execução para entrega de coisa certa) não gera um prejuízo dificilmente reparável;
o) Tendo em conta a natureza do bem, os prejuízos dificilmente reparáveis para a Requerente começam no facto de um veículo de sua propriedade estar a circular em circunstâncias físicas e jurídicas que ela não controla;
p) Ter no seu activo um bem que em vez de lhe potenciar um proveito se lhe apresenta como passível de lhe causar prejuízos decorrentes de um uso ilegítimo por parte de terceiro;
q) Acresce que a natureza perecível do automóvel foi reconhecida pelo legislador nos Decretos-Leis nos 54/75, de 24 de Fevereiro, e 149/95, de 24 de Junho, que regulou as providências que visam assegurar o não perecimento do direito de propriedade sobre automóveis, com dispensa da prova do periculum in mora, critério que tem estreito paralelismo com o caso em apreço;
r) A decisão recorrida fez uma errónea interpretação e aplicação do disposto nos artigos 381º e 387º, nº 1, do CPC; para mais que, salvo melhor opinião, a Requerente alegou e demonstrou o fundado receio de lesão grave do seu direito.»
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artos 660º, nº 2, e 664º, ex vi do artº 713º, nº 2, do CPC).
Do teor das alegações do recorrente resulta que a matéria a decidir se resume a averiguar se colhe o entendimento do tribunal recorrido de que não se verifica requisito essencial para a procedência de providência cautelar não especificada: a lesão grave e dificilmente reparável do direito invocado.
Cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:
O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, não sujeitos a impugnação, que aqui se aceitam (cfr. artº 713º, nº 6, do CPC) e que, para melhor análise, se passam a reproduzir:
«1. ...................... – Sociedade Financeira de Locação, S.A. alterou a sua designação social para ...................... – Instituição Financeira de Crédito, S.A. e incorporou por fusão outras sociedades.
2. A Requerente ...................... – Instituição Financeira de Crédito, S.A. é uma sociedade comercial sob a forma anónima cujo objecto é a prática das operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos.
3. No âmbito da sua actividade celebrou a Requerente com o Requerido, no dia 27 de Maio de 2003, o contrato de locação n.º 61775.
4. Nos termos do contrato referido em 3., a Requerente deu de aluguer ao Requerido uma viatura de marca Citroen, modelo C3, com a matrícula 65-80-UO, o qual lhe foi entregue.
5. A viatura referida em 4. foi adquirida pela Requerente a Carmixto – Comercialização, Aluguer e Representações de Veículos, Peças e Combustíveis, S.A., pelo preço total de € 12.500.
6. A propriedade da viatura referida em 4. está registada a favor da Requerente.
7. Nos termos do contrato referido em 2., o Requerido obrigou-se a pagar à Requerente os alugueres contratados, no valor de € 213,21 acrescido de IVA, por um período de 59 meses.
8. O Requerido não efectuou os seguintes pagamentos previstos no contrato referido em 3.:
a. Aluguer n.º 45, vencido em 8 de Março de 2007, no valor de € 217,41;
b. Aluguer n.º 46, vencido em 8 de Abril de 2007, no valor de € 257,98;
c. Aluguer n.º 47, vencido em 8 de Maio de 2007, no valor de € 257,98;
d. Aluguer n.º 48, vencido em 8 de Junho de 2007, no valor de € 257,98;
e. Aluguer n.º 49, vencido em 8 de Julho de 2007, no valor de € 257,98.
9. Na sequência do referido em 8., a Requerente enviou uma carta registada com aviso de recepção datada de 7 de Agosto de 2007, nos termos da qual:”solicitamos a V. Exa. que, no prazo de (8) oito dias úteis, a contar da data de recepção desta carta, proceda à liquidação da totalidade da dívida (...) Se, decorrido tal prazo, o pagamento ora solicitado não se encontrar efectuado, consideraremos o contrato definitivamente incumprido (...) devendo a viatura objecto deste contrato ser entregue nas n/instalações em Lisboa ou em qualquer outra Delegação ou Agência no país (...)”.
10. A carta referida em 9. foi recebida pelo Requerido.
11. Nos termos da cláusula 19ª das Condições Gerais do contrato referido em 3., “Para além dos demais casos previstos na lei, o presente contrato poderá ser resolvido, por iniciativa da ......................, sempre que o CLIENTE incumpra definitivamente alguma das suas obrigações. O incumprimento temporário (...) tornar-se-á definitivo pelo envio pela ...................... para a sua sede ou residência do cliente de carta registada intimando ao cumprimento em prazo razoável (que, desde já, é fixado para todas as obrigações, em oito dias) e pela não reposição, nesse prazo, da situação que se verificaria caso o incumprimento não houvesse tido lugar. (...) Em caso de resolução do contrato, o CLIENTE deverá entregar o veículo à ...................... imediatamente (...)”.
12. Do contrato referido em 3. consta uma cláusula 17ª, nos termos da qual: “Em caso de não pagamento pontual de quaisquer quantias devidas por força deste contrato, serão devidos juros de mora à taxa máxima legalmente permitida (...)”.
13. Até à presente data o Requerido não pagou os montantes em dívida.»
B) DE DIREITO:
Dispõe o artº 381º, nº 1, do CPC, que rege quanto às providências cautelares não especificadas, o seguinte: «Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito, cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória do efeito daquela decisão, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».
Por sua vez, concretiza o nº 1 do artº 387º que «a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão».
Destas disposições se retira um conjunto de requisitos de cuja verificação depende a procedência da providência, que – acompanhando ABRANTES GERALDES (Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2004, p. 98) – assim se podem enunciar:
a) Probabilidade séria da existência do direito invocado;
b) Fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito;
c) Adequação da providência à situação de lesão iminente;
d) Não existência de providência específica que acautele aquele direito.
Centremos a atenção nos requisitos nucleares – os dois primeiros, expressamente enunciados nos citados artos 381º e 387º.
Sobre o primeiro requisito, diz o referido autor que «quanto ao direito cujo receio de lesão grave constitui a justificação fundamental para a concessão da tutela cautelar não se exige um juízo de certeza, bastando-se a lei com um juízo de verosimilhança (“probabilidade séria”, segundo o art. 387º, nº 1) (-) formulado pelo juiz, com base nos meios de prova apresentados ou naqueles que o tribunal oficiosamente aprecie, embora tal juízo não deva ser colocado num patamar tão baixo na escala gradativa da convicção do juiz que se tutelem situações destituídas de fundamento razoável». Exige-se, assim, uma probabilidade forte de existência desse direito.
Sobre o segundo requisito, salienta ABRANTES GERALDES que «apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum (-) as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil recuperação (-). Ficam afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento comum, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis» (ob. cit., pp. 101-102).
Quanto à probabilidade séria da existência do direito invocado pela requerente, foi já reconhecida na decisão recorrida a sua verificação – o que não oferece dúvida.
Está suficientemente demonstrada a propriedade do veículo por parte da requerente (factos 5 e 6), a celebração do contrato de locação entre requerente e requerido (factos 3 e 4), o incumprimento desse contrato pelo requerido (factos 8 e 13) e a consequente resolução (factos 9 a 11). Donde se deduz, indiciariamente, que o requerido não tem título legítimo para se manter na posse do veículo.
Questão mais discutível é a de saber se ocorre lesão grave e dificilmente reparável de tal direito – e, neste ponto, entendeu o tribunal recorrido não se verificar prejuízo relevante, no que fundamentou a improcedência da providência cautelar requerida.
Nesta matéria, importa ter presente aquilo que tem sido uma orientação consistente da jurisprudência, designadamente da produzida nesta Relação, no sentido de considerar que a não entrega de uma coisa móvel, que se desvaloriza pelo uso normal e decurso do tempo, indicia o receio fundado de lesão grave e de difícil reparação.
Com efeito, tem-se entendido que «a recusa de entrega de um bem móvel que não lhe pertence, com risco sério de desvalorização significativa ou mesmo de perecimento, constitui o lesante, numa base indiciária, em situação susceptível de poder causar dano grave e de difícil reparação ao dono da coisa» (assim, por todos, Ac. RE de 8/3/2007, Proc. 94/07-3, in www.dgsi.pt).
Argumenta-se ainda que a retenção do veículo pelo locatário, ao impossibilitar o locador de dar ao bem o destino que melhor se adeqúe aos seus interesses, torna «legítimo poder fazer-se um juízo, com algum grau de certeza, de que se está perante uma situação de lesão grave e de difícil reparação do direito» (nestes termos, Ac. RP de 30/10/2003, Proc. 0334866, idem).
Trata-se, afinal, de fazer funcionar uma presunção natural, judicial, ou de experiência, que os artigos 349º e 351º do Código Civil consentem. Recorde-se que estas são, segundo o artº 349º do C.Civil, «ilações que o (…) julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», de acordo com as regras de experiência da vida, da normalidade, do conhecimento científico ou da lógica (cfr. ANTUNES VARELA et alii, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 502). Assim o reconheceram arestos como o citado Ac. RE de 8/3/2007, aludindo a ilações extraídas de regras da vida, ou o Ac. RP de 6/5/2004 (Proc. 0432352, idem), que admitiu «chega[r] aos factos integradores do requisito em causa por presunção natural», depois de argumentar que «qualquer cidadão normal colocado no lugar da requerente teria receio de não mais obter o automóvel (...) e de (…) não obter qualquer reparação». Daqui decorre a desnecessidade, expressamente aceite em vários arestos, de qualquer prova directa do periculum in mora (neste sentido, v., por todos, o Ac. RE de 8/3/2007, Proc. 109/07-2, idem).
Na mesma linha de raciocínio, alguma jurisprudência estabelece, a propósito de casos de contratos de aluguer de longa duração (como é o dos presentes autos), um paralelo com os regimes decorrentes do artº 16º do Decreto-Lei nº 54/75, de 24/2, que prevê a apreensão judicial cautelar de viatura por incumprimento do contrato de alienação de veículos automóveis com reserva de propriedade, e do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24/6, que consagra uma providência cautelar de entrega judicial de bem móvel por incumprimento de contrato de locação financeira, na medida em que dispensam a prova efectiva dos factos constitutivos do requisito do justo receio. Sem se tratar de uma verdadeira e própria aplicação analógica dessas disposições legais, tem-se entendido que o legislador estabeleceu tais regimes em atenção à especial configuração desses contratos e da situação dos bens deles objecto – condições essas que concorreriam igualmente no caso dos alugueres de longa duração e cuja ratio imporia idêntico juízo de verificação do periculum in mora, sem necessidade de prova indiciária adicional (assim, por todos, o Ac. RE de 14/6/2007, Proc. 1229/07-2, idem).
Aderindo à orientação jurisprudencial exposta, entendemos, pois, dever julgar procedente a pretensão da requerente, ordenando-se a apreensão do veículo automóvel na posse do requerido.
Em suma: estando demonstrada a verificação dos requisitos exigidos nos artos 381º e 387º do CPC, deve revogar-se a decisão recorrida e decretar-se a providência requerida.
Em vista do disposto no artº 713º, nº 7, do CPC (na redacção do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8, conforme estabelecido nos artos 11º e 12º deste diploma), formula-se a seguinte conclusão a extrair do presente aresto:
«Perante o incumprimento do contrato, que levou à sua resolução, a recusa de entrega duma coisa móvel que se desvaloriza pelo uso normal e decurso do tempo, indicia o receio fundado de lesão grave e de difícil reparação.»
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III – DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se conceder provimento à presente apelação e revogar a decisão recorrida, julgando procedente a requerida providência cautelar.
Consequentemente, ordena-se a apreensão do identificado veículo automóvel e sua posterior entrega ao depositário indicado pela requerente, ficando a cargo do tribunal recorrido a realização das diligências necessárias ao cumprimento desta decisão.
Sem custas no presente recurso (artº 2º, nº 1, al. g), do CCJ), ficando as do procedimento a cargo da recorrente, nos termos do artº 453º, nº 1, do CPC.
_________________________________(dispensei o visto)_
(Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes)
_________________________________(dispensei o visto)_
(Manuel Ribeiro Marques) [voto de vencido]
Declaração de voto de vencido:Na posição que fez vencimento considerou-se que a não entrega de uma coisa móvel (veículo automóvel), que se desvaloriza pelo uso normal e decurso do tempo, indicia o receio fundado de lesão grave e de difícil reparação.
Diverso é, porém, o nosso entendimento, pelas razões aduzidas no acórdão desta Relação, que relatámos, proferido nos autos de recurso n.º 2472/07-3.
Assim:
No caso em análise estamos perante um contrato de aluguer de veículo automóvel de longa duração (arts. 1022 º e segs. do C.C.).
Efectivamente, os factos alegados não configuram o contrato de locação financeira a que se reporta o Dec. Lei n.º 149/95, de 24/6 (alterado pelos Dec. Leis n.º 265/97, de 2/10 e 285/01, de 3/11), além do mais, por virtude de não haver sido convencionado o direito potestativo de o locatário, findo o contrato de locação, adquirir o direito de propriedade sobre o veículo automóvel em causa.
Por outro lado, o regime específico do exercício da indústria de veículos automóveis sem condutor, que consta do Dec. Lei n.º 354/86, de 23/10 (alterado pelos Dec. Lei n.º 373/90, de 27/11, e 44/92, de 31/03), versa essencialmente sobre os requisitos da concessão, transmissão e da cassação do alvará de exploração, tipos de veículos automóveis que podem ser objecto dessa indústria, condições do seu licenciamento, conteúdo dos contratos respectivos e responsabilidade derivada da prática de contra-ordenações.
O referido diploma visa satisfazer necessidades transitórias ligadas às actividades turísticas ou empresariais por via da celebração de contratos de aluguer de veículos automóveis de curto prazo, tradicionalmente designados por aluguer de veículos automóveis sem condutor – cfr. Ac STJ 22-03-2007, relator Cons. Salvador da Costa, in www.dgsi.pt; e A. Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, 3ª edição, pag. 304.
Deste modo, pela sua estrutura e fim, o referido regime legal não comporta o contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel em causa nos autos.
Consequentemente, em situações como a presente a requerente para fazer valer o seu direito cautelar necessita de alegar (e provar) o fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito.
Com efeito, a especificidade da providência, associada ao princípio da legalidade das formas processuais impede, nomeadamente, que se recorra à medida prevista no art 21º do Dec. Lei n.º 149/95 (onde se afasta a necessidade de alegação e prova do periculum in mora) como instrumento de realização de direitos emergentes de contratos de diversa natureza, ainda que, na aparência, reúnam características semelhantes – A. Geraldes, ob. cit. pags. 329 e 330.
Ora, a requerente não alegou factos integradores do periculum in mora.
É certo que a manutenção do veículo na posse do requerido e a sua consequente utilização provocam um maior desgaste desse bem, contribuindo o aumento da quilometragem para a sua desvalorização comercial, provocando uma grave lesão do direito da requerente.
Porém, a questão está em saber se essa lesão é de difícil reparação, conforme exige o art. 381 do CPC, na medida em que o prejuízo inerente à eventual perda ou deterioração da viatura detida pelo requerido poderá ser ressarcido por meio de uma indemnização pecuniária. É que o incumprimento pelo requerido das prestações pecuniárias acordadas no contrato de locação não faz aumentar o risco de deterioração física e de desvalorização comercial.
Além disso, a requerente continua a ter direito aos alugueres do veículo até à sua efectiva restituição (arts. 1038º, al. a) e 1045º do CC).
Poder-se-ia sustentar, como se defende no voto de vencido exarado no Acórdão da Relação de Lisboa de 20-03-2004 (in www.dgsi.pt), que o que está em causa é o direito de propriedade da requerente sobre o bem e o risco da sua perda, pelo que apenas se deve equacionar a difícil reparação desse direito e não do seu sucedâneo (indemnização em dinheiro).
Tal entendimento parte da consideração de que o direito à restituição é o primeiro direito conferido pela lei à locadora, sendo a entrega do próprio bem a forma mais perfeita de reparação, não bastando, sustenta-se, encontrar o respectivo equivalente pecuniário, mas sim prevenir a lesão daquele direito à restituição.
Divergimos deste entendimento.
Com efeito, haverá que ter em conta que, no concernente aos prejuízos materiais, eles são, em regra, passíveis de ressarcimento através da restituição natural ou de indemnização substitutiva – cfr. Ac STJ 26-01-2006, relator Cons. Salvador da Costa, in www.dgsi.pt.
Daí que na avaliação do requisito atinente à dificuldade de reparabilidade da lesão, a que alude o n.º 1, do art. 381º do CPC, deva ponderar-se a capacidade do requerido para ressarcir a requerente, ainda que através da indemnização substitutiva.
Ora, em causa nos autos estão apenas interesses patrimoniais da requerente, pelo que, em caso de perda do veículo, a indemnização em dinheiro reparará integralmente a lesão do direito de propriedade, pois que nãoforam invocados prejuízos que não possam ser ressarcidos através desse meio (não foi alegado, por exemplo, possuir o bem a restituir valor estimativo).
Que assim é demonstra-o o facto de, não fora o incumprimento da prestação pecuniária relativa aos alugueres, o bem teria continuado na legítima detenção do requerido, recebendo a requerente um valor em dinheiro e não qualquer outra contrapartida.
Sendo assim, e contrariamente à posição que fez vencimento, a questão passa também a situar-se ao nível das condições económicas do requerido para suportar aquela indemnização, devendo ponderar-se a maior ou menor capacidade de ressarcimento dos prejuízos que eventualmente poderão derivar para a requerente – cfr. neste sentido A. Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, 3ª edição, pag. 101.
Daí que, com o devido respeito, se não vislumbre como é que se pode, através do recurso a uma presunção natural, judicial ou de experiência, retirar a ilação da existência de um fundado receio de que a requerente não mais obterá qualquer reparação do requerido.
Ora, a requerente não alegou qualquer facto acerca do fundado receio do requerido não possuir capacidade económica para ressarcir os prejuízos decorrentes da lesão grave do direito da requerente, nada tendo alegado em sede da incapacidade daquele para cumprir tais responsabilidades ou outra circunstância susceptível de determinar o perigo de se colocar em situação de não poder solver o devido.
Por outro lado, em relação às consequências para a requerente da eventual ocorrência de sinistros com o veículo locado, que, eventualmente, não terá seguro automóvel, deve dizer-se que, por se tratarem de meras hipótese ou suposições, não podem ser tomadas em conta em sede de apreciação do periculum in mora – neste sentido vide Ac. RP de 21-12-2004, in www.dgsi.pt.
Ademais, a partir da resolução do contrato de aluguer e não tendo sido restituída a viatura, os pressupostos da responsabilização da requerente por danos emergentes da utilização da viatura em causa, com base no risco, mostram-se afastados uma vez que tal viatura permanece em poder da requerido contra a vontade e em detrimento do interesse da requerente (art. 503º do C.C.) – neste sentido vide o Ac RL supra citado.
Deste modo, não tendo a requerente articulado factos bastantes relativos à difícil reparação da lesão que a requerente sofreu e sofre no seu direito, negaríamos provimento ao recurso e confirmaríamos a decisão recorrida.