DIREITO DE PROPRIEDADE
RECONHECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE DE PRÉDIOS URBANOS
USUCAPIÃO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
Sumário


“I. A posse, em termos de direito de propriedade, de cada uma das duas casas de habitação existentes num único prédio urbano não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião de cada uma das partes habitacionais, com manutenção da posse comum sobre o respectivo logradouro, sem que se proceda previamente ou, pelo menos, simultaneamente à constituição desse imóvel em propriedade horizontal.

II - Peticionado judicialmente o reconhecimento do direito de propriedade de uma das referidas casas de habitação integrantes do prédio urbano, com fundamento em usucapião, sem que, simultaneamente, seja requerida a constituição desse prédio em propriedade horizontal - e para isto devem ser demonstrados os respectivos requisitos legais, bem como os que devam constar do título constitutivo - aquela pretensão terá necessariamente que improceder.”

Texto Integral


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente(s): - R. B. e marido, A. F.;

Recorrido(s): A. M., M. R. e M. C.;

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1. Relatório
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R. B. e marido A. F., instauraram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra:

1ª A. M.,
2ª M. R.,
3ª M. C.,
pedindo que na procedência da acção se declare que o prédio identificado no artigo 1º da p.i. se encontra dividido materialmente, por usucapião, em duas fracções ou casas de habitação distintas e autónomas, pela forma descrita no artigo 10º da mesma p.i., declarando-se que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano identificado na fracção A) do artigo 10º da p.i., assinalado a cor verde no croquis; e as Rés são donas e legítimas possuidoras do prédio urbano identificado na fracção B) do artigo 10 supra, assinalado a vermelho no “croquis”.
E, em consequência, se condene as Rés a reconhecerem o que se pede seja declarado, e bem assim a reconhecerem que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano identificado na fracção A) do artigo 10º da petição inicial.
Alegaram para tanto, e em síntese, que o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, acha-se dividido na forma descrita no artigo 10º da p.i. por usucapião – cf. artigo 1287º, 1296º e 1260º todos do Código Civil.
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A fls. 47 e ss os AA juntaram p.i. rectificativa.
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As Rés contestaram impugnando os factos alegados pelos AA, alegando que apenas as casas de habitação se encontram divididas e fraccionadas, sendo o logradouro espaço comum, assim tendo sido utilizado ao longo dos tempos até à data por ambas as partes, sendo inclusivamente comum a entrada de acesso ao logradouro e deste para as respectivas casas de habitação.
Deduziram reconvenção.
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Responderam os AA à reconvenção nos termos constante do articulado da réplica constante de fls. 105 e ss.
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Realizou-se primeira sessão da audiência prévia na qual, após audição das partes, se determinou de imediato realização de prova pericial, com levantamento topográfico do prédio e suas partes componentes, com apuramento das respectivas áreas, confrontações e configurações, partindo dos títulos invocados no processo.
Após reclamações, apresentou o Sr. Perito os levantamentos de fls. 190 e ss, de acordo com as versões apresentadas por cada uma das partes, após inspecção do local com presença das mesmas, correspondendo fls. 192 a versão das Rés, e fls. 193 a versão dos AA.
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Convocada nova sessão de audiência prévia, as partes, não lograram chegar a acordo, tendo os AA aperfeiçoado a p.i. relativamente ao alegado no artigo 10º, na sequência da prova pericial realizada, no sentido de se fazer passar a constar e considerar que:

a) Relativamente à fracção A. dos AA., se passe a considerar a superfície coberta de 63,94 m2 (em vez dos anteriores 65m2) e logradouro de 166,73 m2 (em vez dos anteriores 89,5 m2);
b) Relativamente à fracção B das Rés, se passe a considerar a superfície coberta de 72,64 m2 (em vez dos anteriores 65 m2) e logradouro de 82,89 m2 (em vez dos anteriores 89,50 m2).
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Procedeu-se ao saneamento do processo – cf. fls. 197 e ss, admitindo-se o referido aperfeiçoamento, não se admitindo a reconvenção.
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Procedeu-se à realização da Audiência Final, como obediência aos trâmites processuais.
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Na sequência foi proferida a seguinte sentença:

III- Decisão.

1. Pelo exposto, o Tribunal decide julgar improcedente a presente acção e, em consequência decide absolver as Rés do pedido.”
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É justamente desta decisão que os AA./Recorrentes vieram interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

1 – Os recorrentes, por não se conformarem com a douta sentença que julgou improcedente a acção intentada da divisão material do prédio urbano, por usucapião, em duas facções autónomas e distintas, interpuseram o presente recurso de apelação.
2 – A Meritíssima Juiz “a quo” fundamentou a decisão tomada da improcedência da acção alegando que os Autores não lograram fazer prova dos exactos termos da divisão (do terreno do logradouro, dizemos nós) e consequentemente da exacta configuração, área e confrontações, posterior a essa divisão, que autonomamente cada uma das fracções assumiu.
3 – Como não lograram provar os restantes pressupostos da aquisição da respectiva fracção A) reivindicada e descrita no artigo 10º da petição inicial por usucapião.
4 – Porém, os recorrentes, salvo o devido respeito por melhor opinião, entendem que a decisão tomada da improcedência da acção não foi a mais ajustada e correcta, tendo em vista a matéria de facto dada como provada, e acima melhor descriminada, mas aqui, para os devidos e legais efeitos, se dá por integralmente reproduzida.
5 – Na verdade, tendo em conta a matéria dada como provada, designadamente os pontos 7; 8 e 9 os factos Provados, e os pontos 10; 11; 12; 13 e 14 dos mesmos Factos Provados, acolhendo os novos ventos da legislação e jurisprudência que dão primazia à verdade material, a douta sentença recorrida deveria concluir pela procedência da acção, ou, pela parcial procedência da acção intentada pelos recorrentes.
6 – Os recorrentes (Autores) pedem na acção que o prédio identificado no artigo 1º da Petição Inicial, e, no ponto 1.1 dos Factos Provados, se declare materialmente dividido, por usucapião, em duas fracções ou casas de habitação distintas e autónomas, pela forma descrita no artigo 10º da petição inicial, e,
7 – Que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano identificado na fracção A do artigo 10 da petição inicial, assinalado a verde no croquis; e, que as Rés são donas e legítimas possuidoras do prédio urbano identificado na fracção B do artigo 10º da petição inicial, assinalado a vermelho no croquis; e, pedem, ainda, que as Rés sejam condenadas a:

a) reconhecerem o que se pede seja declarado; e,
b) a reconhecerem que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano identificado na fracção A do artigo 10º da petição inicial.
8 – Ora, na audiência de julgamento provou-se, como consta dos pontos 7; 8 e 9 dos factos Provados, que o prédio urbano, ou melhor as casas de habitação, descrito em 1.1. (melhor identificado supra) se encontram divididas materialmente em duas partes ou fracções distintas, ou seja, em duas casas de habitação distintas e autónomas, em data anterior a 1983, com entradas independentes, discriminando a Fracção Apara os Autores – melhor identificada no ponto 7 dos Factos Provados; e, a Fracção B - para as Rés, também melhor identificada no ponto 7 dos Factos Provados, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
9 – Nos pontos 8 e 9 dos factos Provados, a matéria de facto dada como provada, que aqui se dá por reproduzida, reflecte que se verificaram os requisitos da posse, que deu origem à pretendida divisão por usucapião.
10 – Na fracção A para os Autores, e, fracção B para as Rés, o Tribunal não deu como provado a divisão do logradouro, antes se tendo provado que o mesmo é comum a ambos as fracções, servindo de entrada e passagem comum para as casas e arrumos, como se alcança dos pontos 10; 11; 12; 13; 14; 15; 16; 17; 18; 19; 22 e 23 dos Factos Provados, acima descriminados e que ai se dão por integralmente reproduzidos.
11 – Os recorrentes, salvo o devido respeito por melhor opinião, entendem que estão reunidos todos os requisitos exigidos pelo disposto nos artigos 1287º; 1296º e 1260º e outros normativos do Código Civil, para declarar materialmente dividido, por usucapião, em duas casas distintas e autónomas, o prédio urbano descrito em 1.1 dos Factos Provados, e tal desiderato deveria ser reflectido na douta sentença, julgando a acção provada e procedente ou parcialmente procedente, devido a não ser provada a divisão do logradouro, que se mantém comum, como se alcança do ponto 15 dos factos Provados.
12 – Pelos factos provados em 7; 8 e 9 dos Factos provados, não resta a menor dúvida de que as casas de habitação em questão estão materialmente divididas, e isso representa o “núcleo duro” da presente acção, e, por isso, a douta sentença recorrida deveria reflectir este sentido da prova, julgando a acção procedente ou parcialmente procedente.
13 – Não parece ajustado e correcto a justificação que a Meritíssima Juiz “a quo” alega para dar a acção improcedente ao afirmar que a divisão do prédio urbano referida no ponto 1.1 dos factos Provados, não está dividido como os Autores alegam no artigo 10º da petição inicial.
14 – No fundo a Meritíssima Juiz “a quo” só não julgou a acção procedente pelo facto de não se ter provado dividido materialmente o logradouro, já que as casas de habitação as declarou divididas na Fracção A e Fracção B, como se reflecte no ponto 7 dos Factos Provados.
15 – Mas provou-se que o logradouro é comum e este facto bem poderia ser reflectido na douta sentença, declarando que tanto a Fracção A, como a B tem logradouro comum, julgando-se acção procedente ou parcialmente procedente.
16 – Na verdade, o logradouro é um bem acessório e secundário em relação às casas, como se alcança do ponto 16 dos factos Provados, que diz “o logradouro é um espaço complementar e serventuário das casas de habitação”.
17 – Por isso, a douta sentença requerida poderia acolher os novos ventos da legislação e jurisprudência, que cada vez mais dão primazia à verdade material, e ter declarado divididas, por usucapião, as casas de habitação em causa, como se resta, declarou nos pontos 7; 8 e 9 dos Factos Provados, indicando umas Fracções simples, umas Fracções em causa com logradouro comum, concluindo pela procedência ou procedência parcial da acção, condenando às Rés no pedido.
18 - Assim, não se justifica o recurso à acção de divisão de coisa comum só para dividir materialmente o logradouro, pois o essencial questão era a divisão material das casas de habitação, o que foi conseguido como se reflecte nos Factos Provados.
19 – De resto o nº 1 do artigo 609º do Código de Processo Civil diz que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pediu”
20 – Mas pode condenar em quantidade inferior, como se alcança no nº 2 do citado artigo 609º do CPC, que afirma “Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que viu a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na parte que já seja líquida”.
21 – No modesto entender dos recorrentes, a parte já líquida referente a divisão material das casas de habitação, por usucapião, em duas fracções autónomas e distintas do prédio referido no ponto 1.1 dos factos Provados, nas fracções A e B descriminadas no ponto 7 dos Factos provados, podendo ser declarado dividido sem referência ao logradouro, ou com referência ao logradouro comum, como se provou.
22 – Deste modo, a douta sentença recorrida deverá ser substituída por outra, que julgue a presente acção provada e procedente ou parcialmente provada e procedente, condenando as Rés no pedido.
23 – Ao não ter decidido deste modo a douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1287º; 1296º; 1260º; 1311º; 1288º; 1289º; 1294º - b) todos do Código Civil, e, o disposto no artigo 609º do Código de Processo Civil e outras normas legais que V.Excias doutamente suprirão.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso julgando-o procedente e a douta sentença recorrida ser substituída por outra que julgue a presente acção provada e procedente, ou, parcialmente provada e procedente, declarando as casas de habitação em causa divididas materialmente por usucapião, na forma descrita no ponto 7 dos Factos Provados, acrescentando ou não o logradouro comum, condenando as recorridas (Rés) no pedido“
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Foram apresentadas contra-alegações, onde os Recorridos pugnam pela improcedência do Recurso e apresentam as seguintes conclusões:

1. “[A] convicção do Tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade…” completada pelo rigor e por manifesta adequação da aplicação do direito aos factos, como se verifica pela análise da Douta sentença do tribunal a quo.
2. Muito bem andou o Tribunal a quo quando na presente acção se impunha aferir dos pressupostos da divisão do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, nos termos descritos no artigo 10º do mesmo articulado, por usucapião, considerou não ter sido feita prova suficiente e cabal da invocada divisão, desde logo no seu aspecto físico e material, o que óbvia e sequencialmente condicionou, resultando como não provados, os restantes factos alegados para sustentar e fixar essa divisão segundo os pressupostos da usucapião, reiterando-se que a prova testemunhal produzida nesse sentido não foi suficiente, segura, objectiva, imparcial e isenta.
3. Os Recorrentes no presente recurso alegam que, com fundamento nos factos provados, se impunha outra decisão, ou seja, que “a acção intentada fosse julgada parcialmente procedente, declarando dividida materialmente, por usucapião, o prédio urbano referido no ponto 1 dos Factos Provados, nas fracções descriminadas no ponto 7 dos Factos provados, sem referência ao logradouro, ou com referência ao logradouro comum sem mencionar a área, ou declarando a área total do logradouro comum de 249,62 m2”.
4. Nos termos dos artigos 1.º e 10.º da petição inicial, o prédio urbano aí referido é constituído por duas fracções A e B, cada uma composta por uma casa de habitação e logradouro.
5. Ora, o que Autores/Recorrentes pediram foi que esse mesmo prédio urbano fosse declarado materialmente dividido, por usucapião, em duas fracções, cada uma destas fracções com uma casa de habitação e logradouro.
6. Atendendo aos factos provados e ao pedido dos Autores, ora recorrentes, salvo o devido respeito por melhor opinião, não poderia a Meritíssima Juíza a quo declarar que as casas estão materialmente divididas por usucapião e declarar que o logradouro é comum ou nem sequer fazer referência ao mesmo.
7. Parece-nos que, o que os Recorrentes pretendem, agora, será uma declaração da propriedade horizontal constituída por usucapião: que se declare a propriedade horizontal relativamente às casas de habitação, e o logradouro seja esquecido e permaneça em compropriedade quando é certo que se trata de um único prédio no seu conjunto.
8. Tal pretensão é manifestamente impossível. Senão vejamos.
9. Uma sentença declarativa do regime de propriedade horizontal constituída por usucapião implica necessariamente, como seu pressuposto, que se constate a presença dos requisitos de uma posse usucapível relativamente ao edifício e suas unidades, em moldes semelhantes aos do exercício de uma propriedade horizontal, bastando que essa posse revista as características gerais quanto ao elemento objectivo e subjectivo (ou volitivo) dos respectivos titulares, de harmonia com os artigos 1251.º e 1287.º e seguintes do Código Civil.
10. Depois, se a posse exercida sobre as unidades independentes e isoladas entre si, e com saída própria, se verificar com as características legais durante o prazo respectivo de usucapião, então qualquer dos interessados pode requerer ao tribunal que profira sentença que a reconheça, uma vez que a situação possessória já se completou, gerando a usucapião da propriedade horizontal.
11. Além disso, a declaração por sentença da propriedade horizontal constituída por usucapião pressupõe a alegação e prova de que, além dos requisitos referidos no artigo 1415.º do Código Civil, o prédio respeita todos os requisitos administrativos necessários, os quais apenas podem ser avaliados e certificados pela Câmara Municipal, nos termos dos artigos 4º e 62º a 66º do RJUEU, aprovado pelo DL 555/99 de 16/12, alterado pelo DL 214-G/2015, de 02/10, sendo, por isso, indispensável que na acção venha alegada essa certificação.
12. Resulta óbvio dos autos, ou melhor, da matéria de facto dada como provada nos autos, que este requisito não se encontra cumprido.
13. Temos como seguro que a sujeição do prédio à pretensão dos Recorrentes não pode ser decretada sem pedido nesse sentido, pedido que os Autores/Recorrentes não formularam. Tal, só por si, invalida a pretensão que agora os mesmos vêm formular ao tribunal ad quem.
14. Alegam, ainda, os Recorrentes que “a Meritíssima a quo não julgou a acção provada e procedente, pelo simples facto de não se ter provado a divisão do prédio urbano descrito no ponto 1.1. dos Factos provados, nas condições que os autores discriminam no artigo 10.º da P.I., ou melhor dizendo a divisão material do logradouro”.
15. As recorridas entendem que a Meritíssima Juíza não julgou a acção provada e procedente pelo simples facto de os autores não terem conseguido provar o pedido.
16. A decisão não poderia ser outra atendendo ao disposto no artigo 204.º n.º 2 do Código Civil.
17. A acrescer, como é jurisprudencialmente pacífico, “a casa e terreno constituem uma unidade, um logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício com o qual constitui uma unidade predial” (negrito nosso).
18. Como resulta claro dos autos, os Recorrentes/Autores não fizeram prova dos exactos termos da divisão do prédio urbano como alegaram no artigo 1.º e 10.º da petição inicial. Mais: muito menos fizeram prova dos restantes requisitos da aquisição da fracção “A” que reivindicam.
19. Entendem as Recorridas que verdadeiramente principal e essencial é a divisão material do prédio urbano.
20. Para tanto, só com um eventual recurso à acção especial de divisão de coisa comum é que se consegue extinguir a compropriedade do referido prédio.
21. O que as recorridas pretendem é a divisão total do prédio, ou seja, o fim da compropriedade, pois, não entendem o interesse legal, ou quiçá fiscal, da divisão material apenas das casas de habitação e o logradouro deixado à deriva.
22. Assim, só a acção especial de divisão de coisa comum fará realmente sentido in casu.
23. O artigo n.º1 do artigo 609.º do Código de Processo Civil estatui que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” (negrito nosso).
24. E por sua vez o n.º2 consagra que “Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na parte que já seja líquida”.
25. Pelo que, atendendo ao consagrado na norma jurídica supra referida, não concebem as recorridas que se considere que a divisão material das duas casas de habitação, por usucapião, seja considerada líquida.
26. Portanto, atento os autos e o disposto nos artigos 1311.º, 1287.º, 1288.º, 1289.º,1294.º al b) do Código Civil e 609.º do Código de Processo Civil, cremos ser de manter integralmente a decisão”..
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, os Recorrentes colocam a seguinte questão que importa apreciar:
- saber se a sentença, em face da matéria de facto dada como provada, podia ter declarado divididas, por usucapião, as casas de habitação aqui em causa, indicando umas Fracções simples, com logradouro comum; e, nessa medida, saber se podia concluir pela procedência parcial da acção, por se trata de uma “condenação em quantidade inferior” (cfr. nº 2 do art. 609º do CPC) aos pedidos inicialmente formulados.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. Na freguesia de …, Ponte de Lima, existe o seguinte prédio urbano: “casas de rés-do-chão e primeiro andar e logradouro, sito no lugar do …, com a superfície coberta de 124 m2 e descoberta de 185 m2, a confrontar do Norte com caminho público, do Sul com J. R. e M. F., Nascente com J. R., e, do Poente com A. A., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …/…, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, o qual proveio do artigo … inscrito na matriz predial urbana no ano de 1937” – Cfr. docs. 1 e 2 juntos com a p.i..
2. Os Autores são donos e legítimos possuidores de metade indivisa (½) do prédio supra descrito, já que por escritura de habilitação e partilha outorgada no dia 6 de Junho de 1983, no Cartório Notarial, lavrada a fls. 61V- 65V, por óbito de A. B., à autora R. B. foi-lhe adjudicada em raiz ou nua propriedade metade indivisa (½) do identificado prédio.
3. Para a mãe da Autora, M. M., pela mesma escritura, foi-lhe adjudicado o usufruto sobre a metade indivisa (½) do prédio supra descrito em 1.1., mas que, neste momento se encontra extinto, com o seu falecimento ocorrido em 29 de Janeiro de 1985 - Cfr. doc. nº 4 junto com a p.i.
4. Por sua vez, a primeira Ré, em usufruto, e as segunda e terceira Rés em raiz ou nua propriedade, são donas e legítimas possuidoras da outra metade indivisa (½) do prédio descrito em 1.1.
5. Por escritura de habilitação e partilha outorgada, no dia 08 de Janeiro de 2008, no Cartório da Notária A. D., lavrada a fls. 68, do livro 23-A, por óbito de J. R., à primeira Ré foi-lhe adjudicado o usufruto, e às segunda e terceira Rés, foi-lhes adjudicada em raiz ou nua propriedade (1/4 cada) da metade indivisa do prédio descrito em 1.1. – cfr. doc. nº 5.
6. Além de que, os Autores e Rés, nas referidas proporções, por si e antecessores legítimos, há mais de 1, 10, 15 e 20 anos, que do prédio identificado em 1.1., vêm usufruindo de todas as utilidades, habitando as casas de habitação, dele colhendo todos os frutos e produtos que é susceptível de produzir, pagando as contribuições e impostos, com o conhecimento e aceitação de toda a gente, de forma pública, pacífica e continua, sem oposição de quem quer que seja, sem interrupção e na fé e convicção de exercerem um direito próprio.
7. Sucede que, as casas que compõem o prédio descrito em 1.1. encontram-se divididas materialmente em duas partes ou fracções distintas, ou seja, em duas casas de habitação distintas e autónomas, em data anterior a 1983, com entradas independentes, a seguir discriminadas:
- Fracção A – para os Autores – para o lado norte: “Casa de habitação composta por cave, com loja de arrumos; Rés-do Chão com cozinha, quarto de banho e sala comum, e, primeiro andar com três quartos, sito no lugar do …, freguesia de … com superfície coberta de 65 m2;
- Fracção B - para as Rés – para o lado sul: casa de habitação “Casa de habitação, composta por cave com três lojas, Rés-do Chão com dois quartos, sala comum, cozinha e quarto de banho, sito no lugar do …, freguesia de … com superfície coberta de 72,64 m2.
8. Desde há mais de 1, 10, 15 e 20 anos, que os Autores, por um lado, e as Rés, por outro, que por si e anteriores donos, vêm possuindo de forma pública, pacífica e contínua as respectivas casas de habitação, do prédio descrito em 1.1., com a configuração descrita em 1.7., fazendo benfeitorias e pagando as respectivas contribuições e impostos, usufruindo de todas as utilidades, colhendo todos os frutos e produtos que são susceptíveis de produzir, habitando a fracção da casa que lhes pertence, sempre respeitando a linha divisória referida.
9. Com o conhecimento e aceitação de toda a gente e sem a oposição de quem quer que seja, ininterruptamente e na fé e convicção de exercerem um direito próprio.
10. As casas descritas têm cada uma comunicação directa para o logradouro.
11. O logradouro é utilizado pelas rés e autores indistintamente, cada parte retirando todos os proveitos e utilidades que o mesmo proporciona para si.
12. As Rés e Autores utilizam o logradouro tanto a norte como a sul para entrarem para as respectivas casas de habitação e arrumos.
13. A entrada e saída para a rua do referido prédio é comum.
14. Tanto as rés como os autores passam necessariamente no lado norte do prédio para saírem para rua.
15. Não existe nenhuma linha divisória que demarque o logradouro total de 249,62m² nos pretendidos e reivindicados 166,73m² pelos AA.
16. O logradouro é um espaço complementar e serventuário das casas de habitação.
17. As rés têm entrada para a sua habitação pelo lado norte do logradouro, sendo que o acesso aos arrumos dos autores faz-se pelo lado sul do logradouro.
18. Assim, tanto o lado norte como o lado sul do logradouro são utilizados por AA e RR para passagem e acesso às respectivas casas de habitação e diferentes divisões e entradas que as compõem.
19. Mais, a entrada e saída para a rua das rés e autores, a norte, é comum a ambos.
20. Os autores construíram um anexo e puseram balaustres no logradouro do prédio.
21. As rés adquiriram a metade indivisa do referido prédio, passando desde de 1973 a morar na respectiva casa de habitação e a usufruir do logradouro tanto a sul como a norte.
22. O logradouro serve a ambas as partes para terem acesso às suas habitações e arrumos.
23. O prédio apenas tem uma entrada com comunicação directa para a rua.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Conforme resulta das posições dos Recorrentes e dos Recorridos, a matéria de facto considerada como provada pelo Tribunal Recorrido não foi impugnada pelo mecanismo processualmente próprio, pelo que o presente Tribunal terá de se pronunciar sobre as questões colocadas pelas partes, tendo em consideração apenas aquela factualidade.
Na verdade, os Recorrentes não chegam a deduzir a pertinente Impugnação da matéria de facto, com obediência ao disposto no art. 640º do CPC, conformando-se, assim, com a decisão sobre a matéria de facto produzida pelo Tribunal Recorrido.
Nessa medida, não tendo sido deduzida Impugnação da matéria de facto, e não sendo caso do presente Tribunal proceder à sua alteração oficiosa (cfr. nº 1 do art. 662º do CPC)(1), deverá a factualidade dada como provada manter-se nos exactos termos que se mostram vertidos na Decisão Recorrida.
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Aqui chegados, e dentro destes pressupostos fácticos, importa, pois, que o presente Tribunal se pronuncie sobre a argumentação dos Recorrentes, que contende, como vimos, com a possibilidade de saber se a sentença, em face da matéria de facto dada como provada, podia ter declarado divididas, por usucapião, as casas de habitação aqui em causa, indicando aquelas como “Fracções simples, com logradouro comum”; e, nessa medida, saber se se podia concluir pela procedência parcial da acção, por se trata de uma “condenação em quantidade inferior” aos pedidos inicialmente formulados (cfr. nº 1 do art. 609º do CPC).
Vejamos se assim se pode entender.
Em primeiro lugar, importa dizer que a posição dos AA./Recorrentes, numa primeira aproximação, pareceria ter alguma pertinência, já que, efectivamente, decorre da matéria de facto que o Tribunal Recorrido -tal como, aliás, já decorria da posição das partes plasmada nos respectivos articulados- admite a divisão material da parte habitacional do prédio urbano identificado como sendo constituído por “casas de rés-do-chão e primeiro andar e logradouro, sito no lugar do …, com a superfície coberta de 124 m2 e descoberta de 185 m2”, desde data anterior a 1983, exercendo, cada uma das partes, sobre a sua respectiva casa de habitação os inerentes actos de posse, susceptíveis de configurar, em termos de natureza e duração, a aquisição (divisão) daquela partes habitacionais, por usucapião (arts. 1311º, 1258º e ss., 1263º, 1287º, 1288º, 1289º, 1294º, b), todos do CC).
Sucede que, um outro tanto não se pode concluir, quanto ao logradouro que inequivocamente serve as duas casas de habitação, já que, quanto a este, se provou factualidade que evidencia a sua utilização comum e indistinta por ambas as partes.
Ora, em face destas considerações, a questão que se coloca é justamente a de se saber se se pode autonomizar aquela primeira situação desta última, ou, dito de uma outra forma, se é possível (ou admissível) reconhecer aquela pretensão dos AA., mantendo-se o logradouro como comum (2).
Antes de entrar nesta questão substantiva, não se pode ainda deixar de reconhecer que os Recorrentes têm razão quanto convocam para a discussão da causa o disposto no art. 609º, nº 1 do CPC, pois que, efectivamente, poder-se-ia aceitar que a redução do pedido (da condenação) - restringindo-se às casas de habitação- constituem um “minus” em relação aos pedidos inicialmente formulados, susceptível de ser acomodado no referido preceito legal.
Sucede que, independentemente dessa possível admissibilidade processual, a questão que se coloca é substantiva, ou seja, do que se trata é de saber se é possível (ou admissível) reconhecer aquela pretensão dos AA., mantendo-se o logradouro como comum.
Ora, julga-se efectivamente que, tendo em conta a factualidade dada como provada, bem andou o Tribunal Recorrido em julgar os pedidos totalmente improcedentes (mesmo na sua versão reduzida) porque:
“…os AA não lograram fazer prova dos exactos termos dessa divisão, e consequentemente da exacta configuração, área e confrontações, posterior a essa divisão, que autonomamente cada uma das fracções assumiu.
Como não lograram provar os restantes pressupostos da aquisição da respectiva fracção “A” reivindicada e descrita no artigo 10º da p.i. por usucapião.
Assim, conclui-se pela improcedência da acção, remetendo-se as partes para eventual interposição de acção especial de divisão de coisa comum.”…”.
*
Com efeito, quanto aos pedidos formulados, os AA. alegaram que o direito de propriedade que invocam se fundamentará numa “divisão de facto” de um prédio urbano composto por casas e logradouro.
Sucede que, além do que ficou referido na decisão recorrida, para que tal divisão material de facto pudesse conduzir à aquisição (divisão) por usucapião nos termos propugnados pelos AA., sempre tal pretensão teria que dar obediência a determinados pressupostos que contendem com a admissibilidade legal da divisão material pretendida.
Ora, para que tal pudesse suceder teria que se ter em atenção as seguintes considerações que manifestamente não permitem acolher a pretensão dos Recorrentes- como, aliás, intuem os Recorridos nas suas contra-alegações.
Na verdade, atendendo aos factos provados, e ao pedido dos Autores, ora Recorrentes, o Tribunal Recorrido não podia declarar que as casas de habitação estão materialmente divididas por usucapião, e, ao arrepio daquilo que tinha sido peticionado inicialmente pelos AA., declarar que o logradouro é comum.
Com efeito, tal alteração da configuração dos prédios – divisão material das casas de habitação e manutenção do logradouro comum- traduz-se, no fundo, numa pretensão de constituição de uma situação de propriedade horizontal- arts. 1414º e ss. do CC (ou eventualmente uma pretensão de constituição de outro tipo de operações urbanísticas ou de loteamento).
Na verdade, os Recorrentes insistem na sua pretensão de procedência parcial dos seus pedidos- divisão das casas de habitação, com exclusão do logradouro.
Mas esses “novos” pedidos -pressupondo que o logradouro se mantem comum ou indiviso- têm implicações que contendem com a admissibilidade substantiva da divisibilidade das coisas imóveis (e, como iremos ver, com o regime jurídico da propriedade horizontal ou, eventualmente, com o regime jurídico de outro tipo de operações urbanísticas).
Senão vejamos.
Lê-se no art. 209º do CC que coisas divisíveis são as que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição do valor ou prejuízo para o uso a que se destinam.
Um tal conceito, para os efeitos aqui pretendidos, deve ser conjugado com outros preceitos legais que condicionam a divisão de determinadas coisas à verificação de determinados pressupostos, casos em que a divisão material da coisa apenas será possível se se verificarem certos requisitos legais de natureza imperativa.
Ora, no tocante a prédios urbanos- como aquele que aqui está em apreciação-, sobressaem as exigências ligadas à constituição da propriedade horizontal, dependente do preenchimento dos requisitos previstos no art. 1415º do CC e, a par desses requisitos, como iremos ver, outros, de ordem administrativa ou urbanística.
Como é sabido, em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode, em princípio, ser objecto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere do disposto no art. 204º, nº 1, al. a) e nº 2 do CC (3), das regras sobre acessão industrial imobiliária e ainda do disposto no art.º 1344º do CC (4).
Trata-se de uma manifestação do princípio da especialidade ou da individualização que rege os direitos reais, na vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário (subprincípio da totalidade ou da autonomização) (5).
No entanto, importa atender que o regime da propriedade horizontal constitui uma das excepções (6) a estes princípios, uma vez que permite que sobre o mesmo edifício de estrutura unitária se constituam distintos direitos de propriedade, com diferentes titulares, que incidem sobre fracções independentes desse prédio - arts. 1414º e ss.. do CC.
Daí que, tendo em consideração, por um lado, as limitações impostas pelo princípio da individualização (na referida vertente) e, por outro lado, o regime excepcional da propriedade horizontal, os tribunais têm vindo a concluir que a posse, em termos de direito de propriedade, de parte de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal, a qual pode ocorrer, também, por usucapião (7).
Na verdade, o art. 1417º do CC admite que uma das formas de constituição da propriedade horizontal seja uma situação possessória correspondente a esse direito específico (“novo direito”), com as características e pelo tempo necessário à sua aquisição por usucapião.
A constituição da propriedade horizontal, por usucapião, resulta directamente da situação possessória correspondente ao exercício de um direito de propriedade sobre fracção autónoma de um edifício em propriedade horizontal e de um direito de compropriedade sobre as partes comuns e da sua invocação pelo possuidor – arts. 1287º e 1288º do CC -, tendo a sentença que a venha a reconhecer eficácia meramente declarativa (8).
A posse correspondente ao exercício deste direito de propriedade específico deve revelar as particularidades deste direito real, devendo os possuidores do prédio em questão agir como se este estivesse constituído sob o regime da propriedade horizontal.
Como escreveu Rui Vieira Miller (9), há que que distinguir, porém, a usucapião como forma de constituição da propriedade horizontal, da usucapião como meio de adquirir o direito de propriedade sobre a fracção autónoma de um prédio já sujeito a tal regime, situações que divergem relativamente ao conteúdo da respectiva posse.
Assim, no primeiro caso são todos os condóminos que têm de actuar sobre o prédio, por eles parcelado em fracções susceptíveis de corresponderem às exigências da sua utilização em regime de propriedade horizontal, como se efectivamente este regime estivesse regularmente constituído, usando, pois, cada um a sua fracção autónoma com exclusão dos demais e fruindo todos, como comproprietários, mas com as limitações inerentes a essa especial forma de compropriedade as partes comuns do prédio, todos contribuindo também, na proporção de valor das suas fracções, ou apenas aqueles que de tais coisas se servem, para as despesas com a conservação e fruição das partes comuns que alguns utilizem exclusivamente, todos ainda se constituindo em assembleia para administrarem as partes comuns através de um administrador que nesta elegerem, todos enfim, actuando pela mesma forma que actuariam como se fossem co-titulares de um direito de propriedade horizontal regularmente constituído sobre o prédio.
Embora se admita que, em determinados casos, a simples posse de parte de um prédio possa conduzir à constituição indirecta da propriedade horizontal sobre todo o edifício, por usucapião (10), para que tal suceda é necessário demonstrar que dessa situação possessória resultou a divisão do prédio em fracções autónomas que sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e que cumpram os requisitos para a aprovação de tal divisão pela entidade pública competente- requisitos a que mais à frente voltaremos.
Ora, no presente processo, apenas se alegou e provou a posse dos AA. e dos Réus sobre parte determinada do prédio urbano que se encontra na titularidade indivisa daqueles.
No caso concreto, nenhuma das partes alegou, nem consequentemente demonstrou, que dessa posse- exercida por cada um deles na respectiva casa de habitação- tenha resultado uma divisão do prédio que satisfaça aquelas exigências da propriedade horizontal- apesar de, conforme decorre do exposto, parecer existir uma realidade possessória tendencialmente típica de um regime de propriedade horizontal (11).
Assim, não se encontrando demonstrada, em termos factuais, uma prévia ou, pelo menos, simultânea constituição da propriedade horizontal do prédio urbano em causa, a posse de parte desse prédio, não pode determinar a aquisição por usucapião de cada uma daquelas partes do prédio urbano, uma vez que, como já vimos, não são susceptíveis de um domínio autónomo partes componentes de uma coisa- sem que verifique uma daquelas situações excepcionais atrás mencionadas (em que se inclui a constituição da propriedade horizontal).
Como já se referiu, é certo que a propriedade horizontal, embora seja, em regra, o resultado de uma declaração unilateral do proprietário ou dos comproprietários do prédio, pode ser constituída, também, por usucapião- cfr. art. 1417º do CC
No entanto, nesta situação é necessário demonstrar que, da situação possessória que conduziria à constituição da propriedade horizontal, resultou a divisão do prédio em fracções autónomas que sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e que cumpram os requisitos para a aprovação de tal divisão pela entidade pública competente.
Ora, no caso concreto, independentemente da discussão daqueles primeiros requisitos, não há dúvidas que não se mostram cumpridos estes últimos.
Na verdade, além dos requisitos enunciados no art. 1415º do CC, a constituição da propriedade horizontal deve ainda obediência às regras administrativas impostas pelas Câmaras Municipais para as operações urbanísticas (v. arts. 62º, nº1, 66º, 67º e 77º do RJUE; cfr. também o art. 59º, nº1 do Código do Notariado).
Tem-se entendido, neste âmbito, que a constituição da propriedade horizontal “…basta-se com um certificado municipal de que o edifício satisfaz os requisitos para a constituição da propriedade horizontal…” (12).
Assim, o Tribunal não poderá decidir pela constituição da propriedade horizontal- até porque tal nem sequer foi pedido pelos Recorrentes (princípio do pedido- art. 3º do CPC) - sem a observância de tais requisitos legais, civis e administrativos, já que o que “a Administração não pode conceder, não pode a Jurisdição autorizar” (13).
Assim, vem-se entendendo que “… em sede de operações urbanísticas de loteamento/destaque, deverão prevalecer as normas imperativas de ordem pública, ficando vedado às partes alcançar com recurso ao Tribunal (com invocação de usucapião ou da acessão industrial imobiliária) um resultado que lhes está vedado pelo direito substantivo, na medida em que o regime de direito privado está sujeito a condicionalismos de direito do urbanismo e do ordenamento do território que se lhe sobrepõem (princípio da submissão aos limites substantivos) …”(14).
Esta conclusão decorre das mais recentes e mais avisadas posições que têm sido assumidas, quer pela Doutrina, quer pela Jurisprudência.
Nesta última, destaca-se aqui o recente ac. do Stj de 26.1.2016 (15), onde, de uma forma exaustiva, se explanam as diversas posições que vêm sendo tomadas sobre a questão enunciada, e onde, de uma forma profunda e fundamentada, se chegaram às seguintes conclusões que aqui se transcrevem por serem absolutamente pertinentes para a resolução da presente causa.

Assim, concluiu o Stj nesse Acórdão que:

“… c) Em simultâneo com o instituto da usucapião - de natureza privatística - coexistem no nosso ordenamento jurídico disposições de natureza jurídico-administrativa – de direito público - que disciplinam o ordenamento do território e condicionam a utilização dos solos, estendendo-se os seus efeitos aos actos e negócios jurídicos que os particulares praticam relativamente a bens imóveis.
d) Um dos principais instrumentos de que o legislador se tem servido para conformar e conjugar os interesses públicos e privados no que se refere à utilização dos solos tem sido a legislação sobre loteamentos urbanos, tendo esta como propósito geral impedir o aproveitamento indiscriminado de terrenos para a construção urbana e evitar a criação de núcleos habitacionais contrários ao racional desenvolvimento urbano do território, não olvidando a qualidade de vida das populações (com reflexo nos direitos de personalidade,”maxime” a higiene e salubridade), as infraestruturas urbanísticas e, “last but not least”, a estética.
e) O diálogo entre o direito civil e o direito do urbanismo e o objectivo de aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo implicam que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fraccionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis sejam atendidas aquando do reconhecimento das formas de aquisição da propriedade, mormente da usucapião.
f) Os tribunais judiciais não podem manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar este estado “monocromático” das relações entre ambos estes ramos do direito.
g) Na ausência de demonstração do cumprimento das limitações impostas pelas normas administrativas de ordenamento do território relativas à validade das operações urbanísticas como o loteamento ou o destaque (artigos 3.º, alínea a), 5.º, 53.º, n.º 1 e 56.º, n.º 1, do Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos, republicado pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28-12, aplicáveis na data da celebração da escritura), não podem os actos de posse baseados num facto proibido por essas leis permitir uma aquisição por usucapião na medida em que contrários a uma disposição de carácter imperativo (artigo 294.º do Código Civil), sendo nula a escritura de justificação que a titula…”.
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Aqui chegados, e revertendo para o caso concreto, é manifesto que a constituição da propriedade horizontal, por usucapião – eventual enquadramento jurídico excepcional que permitiria acolher a pretensão dos AA. - não pode ser aqui reconhecida, já que, além dos AA. não terem formulado um pedido nesse sentido, não se mostram reunidos os respectivos requisitos legais- desde logo, não se mostra comprovado que exista o aludido “certificado municipal de que o edifício satisfaz os requisitos para a constituição da propriedade horizontal” (16).
É justamente esta a alegação que os AA. teriam que ter efectuado, ou seja, teriam que demonstrar (alegar) o cumprimento das limitações impostas pelas normas administrativas de ordenamento do território relativas à legalidade/validade/admissibilidade da divisão material que pretendiam concretizar por Usucapião.
Com efeito, como se referiu, embora se admita que o regime da propriedade horizontal constitui uma das excepções ao referido princípio da especialização ou individualização, característico dos direitos de reais- uma vez que aquele regime permite que sobre o mesmo edifício de estrutura unitária se constituam distintos direitos de propriedade, com diferentes titulares, que incidem sobre fracções independentes desse prédio-, a verdade é que a constituição desse regime mostra-se condicionada ao princípio do pedido, e ao cumprimento de determinados requisitos legais, civis e administrativos.
Ora, conforme decorre do exposto, nem os AA., em qualquer fase do presente processo, formularam tal pedido, nem aquela factualidade respeitante à admissibilidade legal da constituição da propriedade horizontal (ou de quaisquer outras operações urbanísticas) foi sequer alegada por aqueles- sendo que, em princípio, tal autorização administrativa devia até ter sido obtida previamente à presente acção.
Pode-se, assim, concluir que, as pretensões dos Recorrentes (mesmo na sua versão final), pelas razões explanadas, são inadmissíveis à luz dos aludidos ditames legais, pelo que sempre os mesmos teriam que ser julgados improcedentes.
Aqui chegados, temos, pois, que concluir que nenhuma censura nos merece a sentença recorrida, a qual deve por isso ser aqui integralmente confirmada.
Improcede o Recurso.
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III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
-o Recurso interposto pelos Recorrentes totalmente improcedente.
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Custas pelos Recorrentes (artigo 527.º nº 1 do CPC).
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Guimarães, 4 de Outubro de 2017

(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)

Consigna-se que a Exma. 1ª Adjunta votou em conformidade a decisão exarada supra, que só não assina por não se encontrar presente (art. 153º, nº 1, in fine, do C.P.C.).

(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)

(Dr. José Alberto Moreira Dias)

1. Sobre os casos em que tal alteração oficiosa pode ocorrer, v. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo CPC”, págs. 241 e ss., explicitando o Autor os seguintes exemplos: “… quando o Tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de determinado meio de prova…” (por ex. um documento com valor probatório pleno); “quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358º do CC e arts. 484º, nº1 e 463º do CPC) ou tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, nº 2 do CPC)”; “ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente” (por ex. presunção judicial ou depoimento testemunhal nos termos dos arts. 351 e 393º do CC); “Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a primeira instância considerou provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo da sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte… “; finalmente, acrescenta este autor que “também não oferece dúvidas a possibilidade… de se modificar a decisão sobre a matéria de facto quando for apresentada pelo Recorrente documento superveniente que imponha decisão”- tudo situações que não se verificam no caso concreto.

2. Cumpre aqui esclarecer que, apesar do conceito de logradouro não vir referido na lei, se deve entender que aquele “ consiste num terreno adjacente a um edifício com as funções de quintal, pátio, jardim ou horta, na dependência do edifício, servindo de aproveitamento ou suporte às necessidades ocasionais dos utilizadores do edifício…”- v. Maria Clara Sottomayor/ Ana Teresa Ribeiro, in “Comentário ao CC- parte geral”, pág. 460.

3. De onde decorre que os prédios urbanos são coisas imóveis constituídos por “qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”, nº 2 do art. 204º, 2ª parte.

4. (nº1) “A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que nele se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico…”.

5. Menezes Leitão, in “ Direitos Reais”, pág. 26; Santos Justo, in “Direitos Reais”, págs. 28 e ss..

6. V. outros exemplos (direito de superfície; hipoteca, etc.), por ex. na nota 30, pág. 26, de Menezes Leitão, in “ Direitos Reais”; Santos Justo, in “Direitos Reais”, págs. 29, nota 78.

7. V. por ex. o ac. da RE de 14.6.2007 (relator: Fernando Bento) onde se refere expressamente que: “I - A posse, em termos de direito de propriedade, de um andar ou piso de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião desse andar, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição desse imóvel em propriedade horizontal. II - Peticionado judicialmente o reconhecimento do direito de propriedade de um tal andar ou piso com fundamento em usucapião, sem que, simultaneamente, seja requerida a constituição desse prédio em propriedade horizontal - e para isto devem ser demonstrados os respectivos requisitos legais bem como os que devam constar do título constitutivo - aquela pretensão terá necessariamente que improceder.”; e da RL de 31.5.2012 (relator: Pedro Martins), in dgsi.pt..

8. A. Varela/P. Lima, in “Código Civil anotado”, vol. III, págs. 403-404.

9. In “A propriedade horizontal no Código Civil”, pág. 96-97.

10. Menezes Leitão, in “ Direitos Reais”, pág. 314.

11. “A propriedade horizontal constitui um novo direito real, regulado nos arts. 1414º e ss. que faz coexistir sobre o mesmo edifício dois tipos de faculdades distintas dos condóminos: as faculdades correspondentes à propriedade exclusiva sobre uma fracção autónoma do edifício e as faculdades correspondentes à compropriedade sobre as partes comuns do edifício…” - Menezes Leitão, in “ Direitos Reais”, pág. 307. No mesmo sentido, A. Varela/P. Lima, in “CC anotado”, Vol. III, págs. 396 e ss.; Carvalho Fernandes, in “Lições de Direitos Reais”, págs. 379 e ss.; Santos Justo, in Direitos Reais, págs. 325 e ss.; em sentido diferente, v. José Alberto Vieira, in “Direito Reais”, págs. 643 e ss. que defende antes que “o direito de propriedade horizontal é ainda um direito de propriedade, não obstante o seu regime ser o de uma propriedade especial.”, pág. 645.

12. Luis Filipe Pires de Sousa, in “Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas”, pág. 55.

13. V. ac. do Stj de 18.6.2002 (relator: Neves Ribeiro), in Dgsi.pt.

14. Luis Filipe Pires de Sousa, in “Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas”, pág. 68.

15. (relator: Sebastião Póvoas), in Dgsi.pt

16. V. neste sentido, por ex. o ac. da RC de 23.10.2012 (relator: Freitas Neto) “A declaração, por sentença, da propriedade horizontal constituída por usucapião, pressupõe a alegação e prova de que, além dos requisitos referidos no artigo 1415.º do Código Civil, o prédio respeita todos os requisitos administrativos necessários, os quais apenas podem ser avaliados e certificados pela Câmara Municipal, nos termos dos artigos 4º e 62º a 66º do RJUEU, aprovado pelo DL 555/99 de 16/12, alterado pelo DL 177/2001 de 4 de Junho, sendo, por isso, indispensável que na acção venha alegada essa certificação.”.