INCONSTITUCIONALIDADE
INIBIÇÃO DE CONDUZIR
Sumário


1. O art. 141.º do Código da Estrada, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, não padece do vício de inconstitucionalidade orgânica que o recorrente lhe aponta, pelo que também não padece desse vício o art. 1.º desse DL n.º 44/2005, por ter alterado os artigos 141.º e 142.º do CE.

2. Não se reconhece no dispositivo do art. 141.º, n.º 1, do vigente Código da Estrada, qualquer omissão ou lacuna legislativa quanto à suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir cominada a agente de infracção contra-ordenacional rodoviária muito grave. Não faz, por conseguinte, sentido o recurso ao direito subsidiário se o próprio direito contra-ordenacional aplicável – o Código da Estrada – contém um específico regime de suspensão, não das penas, sim das sanções acessórias contra-ordenacionais e, então aí sim, fará sentido o apelo ao direito subsidiário nos casos em que seja possível, porque prevista, a suspensão, como ocorre com o artigo 141º, nº 1 do C.E., por remissão expressa para o respectivo regime, de onde “importa” tão somente os pressupostos materiais da suspensão, pois que os formais estão definidos naquela norma do direito estradal.Ribeiro Cardoso

Texto Integral


Acordam, precedendo conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

(…)

2.2. As questões a resolver são, pois, as seguintes:

1.ª – Se o artigo 1.º do DL 44/2005, na parte em que altera a redacção dos art.°s 141° e 142° do CE está ferido de inconstitucionalidade orgânica;

2.ª – Se deve suspender-se a execução da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada à recorrente, por aplicação do art. 50.º do Código Penal.

II – Fundamentação.

3. A decisão recorrida é do seguinte teor:

No âmbito do processo de contra-ordenação nº … M. foi condenada como autora material de uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 65º al. a) do Regulamento de Sinalização de Trânsito na sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 30 dias.

Inconformada impugnou a decisão administrativa alegando que a decisão carece de fundamentação por nela não serem elencados os factos não provados, os meios de prova tidos em consideração para dar os factos como provados e, consequente, juízo critico dos mesmos o que impossibilita saber quais as razões subjacentes ao juízo de prova. Mais acrescentou que a decisão não faz referência aos factos concretos donde se retire a negligência ou o dolo e não fundamenta a medida da coima.

Pugnou pela nulidade da decisão administrativa e, subsidiariamente, não pondo em causa a factualidade que integra a prática da contra-ordenação, pela suspensão da sanção acessória de inibição, condicionada à prestação de boa conduta, alegando que a utilização de veículo automóvel é instrumento essencial ao exercício da sua actividade profissional de anestesologista.

Não juntou prova.

Notificada a arguida para em dez dias informar se se opunha à decisão da causa por despacho a mesma não se opôs.

O Ministério Público, notificado, também não se opôs.

II- Questões a decidir.

1. Saber se a decisão é nula.

2. Em caso negativo, averiguar da possibilidade de suspender a sanção acessória aplicada à arguida.

III- Da nulidade da decisão

Invoca a arguida a nulidade da decisão alicerçando a sua tese nos seguintes pontos:
a) não contém a enunciação dos factos não provados;
b) não contém factos referentes ao elemento subjectivo da infracção;
c) não contém a enunciação dos meios de prova ;
d) não existe exame crítico das provas;
e) a medida da coima não está fundamentada.

Cumpre decidir chamando-se para o efeito à colação o estatuído no artigo 181º do Código da Estrada nos termos do qual:

1. A decisão que aplica a coima ou a sanção acessória deve conter:

a) a identificação do infractor;
b) a descrição sumária ( sublinhado nosso ) dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão;
c) a indicação das normas violadas;
d) a coima e a sanção acessória;
e) a condenação em custas. (…)”

Por força do estatuído no artigo 181º nº 4 do mesmo diploma “ não tendo o arguido exercido o direito de defesa a fundamentação a que se refere a alínea b) do nº 1 pode ser feita por simples remissão para o auto de noticia.”

Começaremos, antes de mais, por referir que no que tange à falta de fundamentação da medida da coima, inequivocamente, não assiste razão à recorrente já que a decisão administrativa não aplicou qualquer coima (nem tinha que aplicar) porque a mesma foi paga voluntariamente.

Acresce que a arguida, previamente à decisão administrativa, não exerceu o direito de defesa que lhe foi conferido.

Compulsada a decisão administrativa constata-se que a mesma elenca os factos provados, não elenca os factos não provados (nem se percebe como haveria de o fazer já que a arguida não exerceu o direito de defesa), refere que a arguida praticou a infracção com negligência por não ter procedido com a diligência a que estava obrigada, indica o auto de noticia como fundamento da decisão sobre a matéria de facto, indica as normas violadas e aplica a sanção que fixa pelo mínimo legal .
Ora, considerando que a arguida não exerceu o direito de defesa na fase prévia à decisão, o supra referido permite concluir que estava a autoridade administrativa legitimada a fundamentar a sua decisão através de remissão para o auto de noticia, como fez, por força do estatuído no artigo 181º nº 1 al. b) e 4 do Código da Estrada o qual, nos termos do disposto no artigo 170º nº 3 do mesmo diploma legal, faz fé em juízo.

Não tem por isso razão a recorrente ao invocar a nulidade por falta de fundamentação já que, tratando-se de infracção estradal, a decisão administrativa cumpre os requisitos de forma exigidos por lei.
Em face do exposto, indefere-se a arguida nulidade.
Notifique.

IV- Fundamentação

A) Factos provados
1. No dia 04 de Novembro de 2005, pelas 10h30m, a arguida conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula…., em Vilamoura, e ao efectuar uma manobra de ultrapassagem ao veículo da entidade autuante, pisou e transpôs a linha longitudinal contínua, Marca M1, separadora dos sentidos das faixas de trânsito, bem visível no pavimento.
2. Actuou da forma descrita por não ter procedido com o cuidado a que estava obrigada.
3. Pagou voluntariamente a coima.
4. No seu registo individual de condutor não tem qualquer registo de infracção grave ou muito grave.

B) Motivação:

A convicção do Tribunal baseou-se no auto de noticia junto aos autos, na informação constante da decisão administrativa relativa ao pagamento voluntário da coima, no registo individual junto aos autos e no estatuído no artigo 172º nº 5 do Código da Estrada.

C) Enquadramento jurídico

Por força do estatuído no artigo 60º nº 1 do DR 22-A/98, 01/10 a linha M1 – linha contínua significa para o condutor a proibição de a pisar ou transpor e, bem assim, o dever de transitar à sua direita, quando aquela fizer a separação de sentidos de trânsito;

Nos termos do estatuído no artigo 65º al. a) do mesmo diploma legal a infracção da mesma é sancionada com coima.

Acresce que por força do estatuído no artigo 146º al. o) do Código da Estrada a transposição ou a circulação em desrespeito de uma linha longitudinal contínua delimitadora de sentidos de trânsito ou de uma linha mista com o mesmo significado constitui infracção muito grave, sancionada com sanção acessória de inibição de conduzir (cfr. artigo 138º nº 1 e 147º nº 2 do mesmo diploma legal).

Ora a autoridade administrativa condenou a arguida na sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 30 dias, aplicando-lhe a atenuação especial resultante do estatuído no artigo 140º do Código da Estrada. Pretende a arguida que se lhe suspenda tal sanção.

Para o efeito considere-se que o artigo 141º nº 1 do Código da Estrada dispõe que a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenação grave pode ser suspensa no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números anteriores.

O exposto, e a inexistência de qualquer outra norma que preveja idêntica possibilidade para as contra-ordenações muito graves, permite concluir que a suspensão da execução da sanção acessória de inibição está arredada para as contra-ordenações muito graves que, após a entrada em vigor do novo Código da estrada, deixaram de poder de beneficiar de tal regime.

Ora, face ao que se tem vindo a expor, considerando que está em causa a prática de uma contra-ordenação muito grave mostra-se legalmente inadmissível a suspensão da execução da sanção acessória de inibição aplicada ao arguido.

V- Decisão

Em face do exposto julgo improcedente a presente impugnação judicial e, consequentemente, mantenho a decisão da autoridade administrativa.

Custas pela recorrente fixando-se a taxa de justiça em 2 UC – cfr. artigo 87º nº 1 al. c) do CCJ. (…)”.

4. Examinada a decisão em causa não vemos que ela enferme dos vícios prevenidos no art. 410.º n.º2 do CPP, pelo que se tem por assente a matéria de facto que, como tal, foi havida pelo tribunal recorrido.

5. Quanto ao mérito do recurso:

Entende a recorrente que DL 44/2005 (que, ao abrigo da Lei 53/2004, procedeu à revisão do CE) operou alterações ao Código da Estrada não autorizadas pela Assembleia da República, mais concretamente as respeitantes ao instituto da dispensa de pena, bem como ao instituto da suspensão da execução da sanção acessória, e que, no que concerne ao instituto da suspensão da execução da sanção acessória, as directrizes impostas pelas als. m) e n) do art. 3.º da Lei 53/2004 não permitem uma tradução material no sentido que foi dado pelo DL 44/2005, isto é, de que a suspensão da execução da sanção acessória passa a estar prevista para as contra-ordenações graves, dissimulando uma exclusão, a latere de aplicação do instituto de suspensão às contra-ordenações muito graves.

Assim, no entender da recorrente, as alterações introduzidas pelo DL 44/2005 (a do instituto da suspensão da execução) encontra-se desprovida de qualquer suporte material em termos de sentido e extensão da “credencial" parlamentar (Lei n.º 53/2004), a qual vinculava o âmbito de actuação do Governo e não permitia modificações de fundo ao regime daqueles institutos, pelo que, fazendo tal matéria parte da competência relativa da Assembleia da República, deve considerar-se que o artigo 1.º do DL 44/2005, na parte em que altera a redacção dos art.°s 141.º e 142.º do CE está ferido de inconstitucionalidade orgânica, não podendo o regime que introduz ser aplicado à contra-ordenação em apreço, nos termos do art. 204.º da CRP.

Vejamos se lhe assiste razão. ( [1] )

6. É do seguinte teor o texto em vigor dos artigos 141.º e 147.º do Código da Estrada, na redacção actual:

Artigo 141.º (“suspensão da execução da sanção acessória”):
«1 - Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes.

2 - Se o infractor não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser determinada pelo período de seis meses a um ano.

3 - A suspensão pode ainda ser determinada, pelo período de um a dois anos, se o infractor, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave, devendo, neste caso, ser condicionada, singular ou cumulativamente:

a) À prestação de caução de boa conduta;

b) Ao cumprimento do dever de frequência de acções de formação, quando se trate de sanção acessória de inibição de conduzir;

c) Ao cumprimento de deveres específicos previstos noutros diplomas legais. (...)».

Art. 147.º (“inibição de conduzir”):

«1 - A sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contra-ordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir.
(…)

No domínio do Decreto-Lei n.º 265-A/2001 - diploma que alterou os Decretos-Lei nºs 114/94, de 3 de Maio, e 2/98, de 3 de Janeiro, e revogou os Decretos-Lei nºs 162/2001, de 22 de Maio e 178-A/2001, de 12 de Junho -, sob a epígrafe “dispensa e atenuação especial da inibição de conduzir” estatuía o art. 141.º:

1 – A sanção de inibição de conduzir cominada para as contra-ordenações graves pode não ser aplicada, tendo em conta as circunstâncias da infracção, se o condutor não tiver praticado qualquer contra-ordenação grave ou muito grave nos últimos cinco anos.

2 – Os limites mínimo e máximo da sanção de inibição de conduzir cominada para as contra-ordenações muito graves podem ser reduzidos para metade, nas condições previstas no número anterior.”

Por sua vez, sob a epígrafe “suspensão da execução da sanção, caução de boa conduta e deveres”, estatuía o artigo 142.º:

«1- Pode ser suspensa a execução da sanção de inibição de conduzir no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas» (o número citado corresponde, com alterações de mínimo pormenor à redacção originária do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio).

2 - A suspensão da execução da sanção de inibição de conduzir pode ser condicionada, singular ou cumulativamente, ao cumprimento dos seguintes deveres:

a) Prestação de caução de boa conduta;

b) Frequência de acções de formação;

c) Cooperação em campanhas de prevenção rodoviária.

3. O período de suspensão é fixado entre seis meses e dois anos. (...)».

É evidente que com a alteração legislativa foi eliminada do Código da Estrada a possibilidade de decretamento da dispensa da sanção acessória de inibição de conduzir, que estava prevista para as contra-ordenações graves (mantendo-se a atenuação especial da sanção acessória no art. 140.º), tendo sido erradicada também a possibilidade legal de suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada a contra-ordenações muito graves.

Com a autorização legislativa da Lei n.º 63/93, de 21 de Agosto, ficou o Governo habilitado a contemplar, inter alia, «a consagração da faculdade de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir, entre seis meses e dois anos, verificando-se os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas criminais» [artigo 2.º, alínea j)].

Por sua vez, a Assembleia da República concedeu ao Governo, pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, autorização para «proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.ºs 2/98, de 3 de Setembro, e pela Lei n.º 20/2002, de 21 de Agosto (...)», «para permitir a criação de um regime jurídico em matéria rodoviária em conformidade com os objectivos definidos no Plano Nacional de Prevenção Rodoviária, com as normas constantes de instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado e com as recomendações das organizações internacionais especializadas com vista a proporcionar índices elevados de segurança rodoviária para os utentes» (artigos 1.º e 2.º).

Concretamente, e no segmento que importa ter em conta, dispôs o artigo 3.º, da predita Lei n.º 53/2004:

«A autorização referida no artigo 1.º contempla:

g) A qualificação como contra-ordenações de todas as infracções rodoviárias e a aplicação do regime contra-ordenacional previsto no Código da Estrada a todas elas;
j) A determinação da medida e regime de execução das sanções tendo em conta os antecedentes do infractor relativamente ao diploma legal infringido ou seus regulamentos;

m) A previsão de atenuação especial e de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir condicionadas ao prévio pagamento da coima e ao facto de o infractor não ter praticado outras infracções no período fixado;

n) A consagração do princípio de que a suspensão da execução da sanção acessória possa ser condicionada, além da prestação de caução de boa conduta, à frequência de acções de formação ou ao cumprimento de deveres específicos previstos em legislação própria;

o) A alteração dos limites mínimo e máximo da caução de boa conduta para, respectivamente, € 500 e € 5000».

Cotejados os diplomas e as específicas normas destes que se evidenciam relevantes para o conhecimento do objecto do recurso, urge, antes de mais, determinar se a norma questionada (art. 141.º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-lei 44/2005, de 23 de Fevereiro) se enquadra no âmbito da competência legislativa reservada à Assembleia da República.

Neste sentido se manifesta a recorrente.

O artigo. 165.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, da Constituição, dispõe como segue:

«1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo:

d) Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.

2. As leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada».

Nestes termos, é da competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a elaboração de legislação sobre o regime geral (o comum) de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.

Gomes Canotilho e Vital Moreira acentuam que, quanto aos direitos sancionatórios diversos do direito penal, a reserva legislativa relativa da Assembleia da República só abrange o regime geral: «cabe assim à AR definir a natureza do ilícito e os tipos de sanções, bem como os seus limites, além das regras gerais do respectivo processo, mas não a definição de cada infracção concreta e a cominação da respectiva pena» [2]

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem caminhado no mesmo sentido. Foi referido no Acórdão n.º 309/95, de 17 de Outubro de 2000, acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt, o seguinte:

«Ao Governo compete, concorrentemente com a Assembleia da República, definir, alterar e eliminar contra-ordenações e, bem assim, modificar a sua punição, enquanto constitui matéria reservada do Parlamento, integrando o regime geral do ilícito de mera ordenação, a definição da natureza do ilícito contra-ordenacional, a definição do tipo de sanções aplicáveis às contra-ordenações e a fixação dos respectivos limites e das linhas gerais da tramitação do processo a seguir para a aplicação concreta de tais sanções»

Também no Acórdão do TC n.º 447/91, de 28 de Novembro de 1991, acessível no mesmo site, foi referido o seguinte: [3]

«Em matéria de ilícito de mera ordenação social é, assim, da competência reservada da Assembleia, salvo autorização do Governo, a elaboração de legislação sobre a definição da natureza do ilícito, a definição do tipo de sanções aplicáveis às contra-ordenações e a fixação dos respectivos limites a as linhas gerais do processo por que se há-de reger a aplicação de tais sanções.

Ao Governo caberá a elaboração da legislação pela qual se proceda à desgraduação de contravenções não puníveis com pena privativa de liberdade em contra-ordenações e a definição, punição e modificação de concretas infracções contra-ordenacionais, devendo, porém, o Governo, nestes aspectos, respeitar os limites que estiverem definidos pelo regime geral regulador desse tipo de ilícito».

O regime geral do ilícito de mera ordenação social constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14-09 e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12), não contém qualquer referência sobre a suspensão da execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações e, por outro lado, afigura-se-nos de todo em todo descabida a aplicação subsidiária às contra-ordenações do regime de suspensão da execução da pena constante do Código Penal, por força do estatuído pelo art. 32.º do diploma indicado em primeiro lugar.

Como anotam os Srs. Conselheiros Simas Santos e Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3.ª edição, 2006, pág. 278/279, «a aplicação subsidiária, (...) só se justifica perante a existência de um caso omisso, pelo que só se deverá recorrer a ela quando se possa concluir que, para além de se tratar de um ponto não regulado no R.G.C.O. nem em lei especial, se está perante um caso que, em coerência, deveria ser regulamentado».

Considerada a estrutura normativa global que o legislador ordinário conferiu ao regime geral do ilícito de mera ordenação social, donde sobressai a regulação de um plano ordenador do sistema jurídico contra-ordenacional tendencialmente aplicável a todas as contra-ordenações especialmente previstas, é apodíctico que a inexistência de regulamentação na área em causa foi determinada por razões político-jurídicas e correspondem a uma opção do legislador, a uma inexistência planeada.

Além do mais, o Código Penal apenas prevê a suspensão da execução da pena quando em causa estão penas de prisão aplicadas em medida não superior a cinco anos (cf. art. 50.º, n.º 1).

Assim, temos como certo que, no domínio do regime geral das contra-ordenações, não está previsto, mesmo que subsidiariamente, a possibilidade de suspensão da execução das penas acessórias de inibição de conduzir. Dito de outro modo: a suspensão da execução das penas acessórias não integra o regime geral contra-ordenacional.

Sendo assim, tendo em conta o campo de previsão da al. d) do art. 165.º da Constituição, tal como ele é considerado na doutrina e jurisprudência, cabe «na competência concorrente da Assembleia da República e do Governo a previsão de existência de sanções acessórias, de entre as dos tipos previstos no n.º 1 do artigo 21.º do regime geral das contra-ordenações, bem como a possibilidade de suspensão da sua execução. E se assim for quanto à opção legislativa do estabelecimento da possibilidade de aplicação de sanções acessórias e da suspensão da sua execução, não poderia deixar de ser diferente quando a opção legislativa seja de eliminação, modificação ou estabelecimento de condições de execução, desde que se quedassem dentro do regime geral.

Teríamos, portanto, de concluir que o legislador do Decreto-Lei n.º 44/2005, ao excluir, através da alteração introduzida ao artigo 141.º, n.º 1, do CE, da possibilidade de suspensão da execução as sanções acessórias de inibição de conduzir aplicadas pela prática de infracções muito graves, não estaria a invadir a reserva de competência da Assembleia da República, mas no exercício de uma competência concorrente» [4]

Com fundamentos, no essencial, convergentes, foi dito no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 604/2006, de 14 de Novembro de 2006, publicado no DR, 2.ª série, n.º 249, de 29 de Dezembro de 2006, «estabelecida que estava relativamente ao específico regime especial das contra-ordenações estradais - quer pela Lei n.º 6/93 que pela Lei n.º 53/2004 - um “desvio” relativamente ao regime geral das contra-ordenações no que se prende com a consagração da possibilidade de suspensão da execução da sanção acessória, podia o Governo definir, alterar, eliminar ou modificar a punição e as condições de execução das infracções contra-ordenacionais estradais. É que, de um lado, aquelas definição, eliminação, modificação e estabelecimento de condições de execução, desde que não ofensivas de um regime geral, cabem na competência legislativa concorrente do Governo, como, sem discrepâncias, tem sido realçado por este Tribunal (cf., a título meramente exemplificativo, os Acórdãos n.ºs 56/84, in Diário da República, 1.ª série, de 9 de Agosto de 1984, 79/95, idem, 2.ª série, de 12 de Junho de 1995, 69/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15.º vol. pp. 253 a 265, 436/2000, in Diário da República, 2.ª série, de 17 de Novembro de 2000, 461/2000, idem, idem, de 29 de Novembro de 2000, e 236/2003, idem, de 24 de Junho de 2003)».

Outras razões existem, contudo, que levam à rejeição da tese defendida pela recorrente.

Continuando a seguir as esclarecedoras passagens contidas no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 629/2006, neste se diz a dado passo:

«Não desconhecia o legislador parlamentar, ao definir, pelo modo descrito, o sentido e a extensão da autorização legislativa, que a inibição de conduzir estava prevista no regime então vigente do novo CE saído da alteração feita pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, à versão originária (...), como sanção acessória de que eram passíveis as contra-ordenações graves e muito graves (artigo 139.º), e que esse mesmo regime previa a possibilidade de «ser suspensa a execução da sanção de inibição de conduzir (...). Não obstante isso, o legislador parlamentar autorizou o Governo a proceder à revisão do CE, nos termos amplos acima transcritos, sem o subordinar, na definição do âmbito da extensão da autorização, concernente à matéria em causa, à observância de outros limites que não sejam os, nele, expressamente contemplados.

Dispondo o legislador parlamentar que a autorização concedida, (...), contempla, máxime, «a determinação da medida e regime de execução das sanções tendo em conta os antecedentes do infractor relativamente ao diploma legal infringido ou seus regulamentos» (al. j) do art. 3.º da Lei 53/2004), «sem recortar quaisquer limitações pelo estabelecido anteriormente, há que concluir que a autorização possibilita a determinação, como se fora originariamente, das sanções principais e acessórias e do regime da sua execução, neste se tendo de incluir a possibilidade de suspensão ou de não suspensão da inibição de conduzir prevista como sanção acessória para as contra-ordenações graves e muito graves (artigo 138.º do CE), tanto mais que a opção legislativa tomada, pelo legislador autorizado, se afigura adequada» ao sentido de autorização definido no art. art. 2.º, parte final, da Lei 53/2004, ou seja, o de proporcionar índices elevados de segurança rodoviária para os utentes.

«Na verdade, independentemente de a suspensão de execução de uma pena poder ser vista, não como uma forma funcionalizada à sua execução, mas antes como uma pena de substituição em sentido próprio (...), o efeito jurídico-prático que a suspensão da inibição de conduzir importa é a possibilidade de não cumprimento da sanção aplicada e isso tem que ver com a definição do «regime da sua execução.

Ora, o legislador da norma questionada estava autorizado a definir esse regime sem respeito ou subordinação pelas regras vindas do passado».

Deste modo, e pela dupla ordem de razões apontadas - radicando a primeira na competência concorrente do Governo e da Assembleia para a edição da norma em causa e, a outra, na constatação de que, em qualquer caso, o Governo legislou a coberto de autorização legislativa concedida na Lei n.º 53/2004 -, não padece o art. 141.º do Código da Estrada, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, do vício de inconstitucionalidade orgânica que o recorrente lhe aponta, pelo que também não padece desse vício o art. 1.º desse DL n.º 44/2005, por ter alterado os artigos 141.º e 142.º do CE. [5]


7. Quanto à 2.ª questão suscitada pela arguidaa suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir que lhe foi aplicada, tendo por base o disposto nos art. 132.º do CE, 32.º do RGCO, 50.º do Código Penalé patente que não pode proceder, face ao que se disse supra.

A técnica utilizada pelo legislador assenta na não previsão da possibilidade de suspensão da execução de sanções acessórias no RGCO, relegando essa possibilidade para regimes específicos – como o estradal – e para situações muito específicas, quer por apelo à gravidade relativa do ilícito, quer pela esperança de não reincidência, com exclusão total em casos de gravidade do ilícito, designadamente pelo acréscimo de risco inerente à conduta.

Não se reconhece no dispositivo do art. 141.º, n.º 1, do vigente Código da Estrada, qualquer omissão ou lacuna legislativa quanto à suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir cominada a agente de infracção contra-ordenacional rodoviária muito grave.

Não faz, por conseguinte, sentido o recurso ao direito subsidiário se o próprio direito contra-ordenacional aplicável – o Código da Estrada – contém um específico regime de suspensão, não das penas, sim das sanções acessórias contra-ordenacionais e, então aí sim, fará sentido o apelo ao direito subsidiário nos casos em que seja possível, porque prevista, a suspensão, como ocorre com o artigo 141º, nº 1 do C.E., por remissão expressa para o respectivo regime, de onde “importa” tão somente os pressupostos materiais da suspensão, pois que os formais estão definidos naquela norma do direito estradal.

Não procede, por conseguinte, o recurso interposto pela arguida.

8. Em face da improcedência do recurso, a arguida não pode deixar de ser responsabilizada pelo pagamento das custas, nos termos do disposto nos art. 513.º e 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, sendo a taxa de justiça fixada de acordo com o disposto nos art. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, estes do Código das Custas Judiciais.

III. Dispositivo:

9. Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto por M., confirmando-se a decisão recorrida.

Condena-se a arguida/recorrente nas custas, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC.

(Processado por computador e revisto pelo relator)

Évora, 09.09.2008
Ribeiro Cardoso




_____________________________

[1] - A questão da constitucionalidade do art. 141.º do CE, na redacção que lhe foi dada pelo DL 44/2005, de 23 de Fevereiro, já foi apreciada nesta instância de recurso no âmbito do acórdão proferido em 6.3.2007 no processo n.º 2679.06 – 1, de que foi relator o Exmo. Desembargador Alberto Mira, cujo entendimento da questão também perfilhamos e que, por isso, seguiremos de perto.
[2] - In Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., 2.ª ed., Coimbra, 1985, pág. 200.
[3] - Ver também os acórdãos do TC nºs 69/90, de 15/03/1990, 88/90, de 28/03/1990, 414/89, de 07/06/1989, e 585/84, de 12/06/1984.
[4] - Neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 629/06, de 16 de Novembro, publicado no DR, 2.ª série, de 3 de Janeiro de 2007.
[5] - No sentido da constitucionalidade vide os Acórdãos n.º 603/06, 6/07, 32/07 e 424/07, todos acessíveis no site do Tribunal Constitucional.