DANO QUALIFICADO
IMÓVEL CLASSIFICADO COMO MONUMENTO NACIONAL
Sumário


1. Não sendo conhecidos os elementos caracterizadores de uma Quinta que levaram a que a mesma fosse classificada como monumento nacional não é possível concluir que as obras levadas a cabo pelos arguidos integram os elementos objectivo e subjectivo do crime de dano qualificado que lhes é imputado na acusação pública.
2. Não é toda a acção sobre coisa classificada como património cultural que é susceptível de produzir dano criminalmente punível, mas apenas e tão só aquela que afecte os elementos que determinaram a classificação, a qual deve ser fundamentada.CH.M.

Texto Integral


Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
1. Nos autos de inquérito nº…., a correrem termos no 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de …, o MºPº deduziu acusação contra A…, J. … R. ….e JJ…., imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de dano qualificado p.p. pelos artºs 212º, 213º nº 1 al. d), ambos do C. Penal, com referência ao artº 100º da Lei 107/2001 de 8/9.
2. Os arguidos requereram a abertura de instrução, tendo em vista a sua não pronúncia, alegando que não cometeram qualquer crime.
3. Finda a instrução, a Srª Juiza de Instrução Criminal proferiu despacho de não pronúncia em relação a todos os arguidos, por considerar que não é possível determinar quais os elementos característicos da Quinta … que presidiram ao acto de classificação da mesma como monumento nacional e, assim, se a conduta dos arguidos afectou tais elementos.
4. Inconformado com a decisão, dela recorreu o MºPº, extraindo da sua motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
“1. Da análise conjugada de toda a prova, consideramos que os elementos recolhidos na fase instrutória não abalaram/infirmaram a factualidade vertida na acusação, a qual se mantém suficientemente indiciada/inalterada.
2. É incorrecta e insuficiente a convicção probatória vertida na decisão recorrida ao considerar não indiciados determinados factos, mostrando-se, assim, violados os art.ºs. 97.º, n.º 4, 127.º, 163.º, todos do Código de Processo Penal.
3. Ainda que assim não entendesse, as condutas dos arguidos que a Mma. Juiz entendeu mostrarem-se suficientemente indiciadas, sempre a prática do crime que lhes é imputado.
4. Sendo pacífico que estamos perante um bem classificado, dúvidas não restam que, sendo esse o único e claro elemento típico do crime em análise, este está, reafirma-se, no caso concreto, preenchido (consumado).
5. Sempre se dirá que, em última análise, o crime estaria consumado, uma vez que a Quinta da … foi classificada como monumento, o que era sobejamente do conhecimento dos arguidos, o que integra a circunstância qualificativa da al. b) do n.º 1 do art.º 213.º, do Código Penal.
6. O juízo de inconstitucionalidade é infundado, mostrando-se as invocadas normas em total concordância com princípios da legalidade e da reserva de lei formal, consagrados, respectivamente, nos art.ºs 29.º, n.º 1 e 165.º, n.º 1, al. c). ambos da CRP.
7. Perante toda a factualidade indiciada, conclui-se ter a decisão sub judice violado as regras contidas nos art.ºs 212.º, n.º 1, 213.º, n.º 2, als. b) e d) do Código Penal e art.º 100.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro.

***
Nestes termos, e noutros que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao recurso ora apresentado, revogando-se a decisão recorrida e pronunciando-se os arguidos nos exactos termos constantes da acusação, remetendo-se os autos para julgamento.”
5. Notificados os restantes intervenientes processuais, apresentaram resposta os arguidos, suscitando como questão prévia a obrigatoriedade por parte do MºPº de recurso imediato para o Tribunal Constitucional, concluindo que deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.
6. Nesta Relação o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso merece provimento.
7. O processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas.
Assim sendo, no caso sub judice, as questões que o recorrente submete à apreciação desta Relação são as seguintes:
- É incorrecta e insuficiente a convicção probatória vertida na decisão recorrida ao considerar não indiciados determinados factos, mostrando-se, assim, violados os artº 97º nº 4, 127º e 163º do C.P.Penal?
- Os factos considerados como indiciados na decisão recorrida integram a prática pelos arguidos do crime de dano qualificado pelo qual se encontram acusados?
- O juízo de inconstitucionalidade é infundado, mostrando-se as invocadas normas em total concordância com os princípios da legalidade e da reserva de lei formal consagrados nos artº 29º nº 1 e 165º nº 1 al. c) da CRP
- A decisão recorrida violou o disposto nos artº 21º nº 1, 213º nº 2 al. b) e d) do C. Penal e artº 100º da Lei 107/2001 de 8/9?
Importa, ainda, apreciar a questão prévia suscitada pelos arguidos na sua resposta, relativa à impossibilidade de neste recurso ser reapreciada a questão da inconstitucionalidade do artº 213º nº 1 al. d) do C. Penal, na interpretação propugnada pelo MºPº, pelo facto deste não ter interposto recurso, em primeiro lugar, para o Tribunal Constitucional.
2. A decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão recorrida, na parte que ora nos interessa:
(…)
3.2. O caso dos autos pela apreciação da prova indiciária.
Tendo em conta as finalidades da instrução e delimitado o seu objecto pela matéria vertida no requerimento de abertura desta fase processual, cumpre averiguar quais as diligências efectuadas em sede de instrução e inquérito, quais os factos indiciados e não indiciados e se dos mesmos resultam indiciados os elementos objectivos e subjectivos do ilícito imputados aos arguidos.
Vejamos, então, as diligências efectuadas em sede de inquérito e instrução. Em sede de inquérito:
Os presentes autos iniciaram-se com a queixa apresentada contra desconhecidos pelo Sr. Dr. J.S., dando noticia de os proprietários da Quinta … - imóvel legalmente classificado como monumento nacional desde o ano de 1910 - sito …, durante os anos de 2000 e de 2001, ordenaram a realização de diversas obras consistentes em corte de plátanos seculares e de todas as árvores de grande porte que envolviam a zona da casa e do tanque, a substituição total do laranjal que estava plantado no jardim dos buxos por vinha, a alteração do sistema de rega e utilização de técnicas e materiais de construção não tradicionais, sem que para tal tais obras tenham sido objecto de licenciamento por parte do Ministério da Cultura e parecer prévio do IPPAR e desvirtuando e descaracterizando a Quinta da …, anulando as particularidades que foram fundamentais para a classificação do imóvel.
A fls. 63 verso procedeu-se à incorporação dos autos de inquérito com o NUIPC … que tiveram inicio com uma queixa do IPPAR contra a M., S.A., proprietária do referido imóvel pelos mesmos factos já constantes da queixa apresentada nestes mesmos autos, acrescentando que os muros da referida quinta foram alvo de reparação pela supra citada sociedade.
O referido Instituto apresentou nova participação nos autos (fls. 185 a 186) alegando que, em 24 de Agosto de 2002, as obras no referido imóvel continuaram, sob a forma de arranjos no exterior e vedação da área compreendida entre a estrada nacional n.°… o muro do Palácio/Quinta.
De fls. 15 dos autos consta cópia de um artigo de opinião da Prof…. - Professora Auxiliar da Universidade de … - a qual afirma que "estas intervenções desvirtuam e descaracterizam a Quinta da …. Anulam, mesmo, as particularidades que foram fundamentais para a classificação do imóvel"
De fls. 76 a 79 consta um relatório elaborado pelas técnicas do IPPAR que, em 16.11.2000, efectuaram uma visita à Quinta da …, onde afirmaram, em súmula, que embora se pudesse justificar a substituição e eliminação das árvores de fruto e trepadeiras fixas às fachadas do edificio, não se justificava a retirada de toda a vegetação do local, eliminando-se, com tal conduta os testemunhos da história daquele espaço no secúlo XX, sem que tivesse sido efectuado um levantamento prévio de todas as espécies ali existentes, sendo que as obras efectuadas no local, segundo as referidas técnicas, levantam sérios problemas de conservação, tornando o conjunto do tanque muito susceptível a movimentos do terreno, porque parte do muro daquela estrutura ter ficado a descoberto e que as escavações efectuadas do lado do caminho alteraram também cotas de caminho e de escadas, produzindo uma séria perturbação na leitura do espaço secular, alterando pontos de vista e criando necessidade de construção de novos elementos que, consideram as senhoras técnicas, são inaceitáveis face à conservação do conjunto".
De fls. 80 dos autos consta mapa anexo ao referido relatório.
A fs. 83 a 85 consta cópia de uma carta remetida pela M., S.A. ao IPPAR afirmando que, em sua opinião, não era necessário qualquer parecer nem autorização para a realização das obras em causa, segundo parecer do Prof.° ….
De fls. 118 a 138 constam cópias do Decreto 2/96 de 06.03 e do Decreto do Governo de 16 de Junho de 1910 publicado a 23 de Junho, verificando-se que o conjunto formado pelo Palácio e Quinta … foi classificado como monumento nacional.
Foram inquiridas …, técnicas do IPPAR que elaboraram o relatório supra referido e confirmaram o teor do mesmo nada acrescentando com interesse (cfr. fls. 176 a 178).
O IPPAR juntou aos autos mapa com as zonas protegidas e as zonas alvo das intervenções por parte da M., S.A. (cfr, fls. 189).
Foram constituídos arguidos e interrogados nessa qualidade, A., legal representante da sociedade M. S.A, R., J. e JJ., administradores da referida sociedade.
Todos referiram que as obras realizadas se destinavam a melhorar o espaço uma vez que estava bastante degradado, tendo o primeiro referido que se destinavam a arranjo exterior devido a um temporal que estragou toda a vegetação. Mais referiram que nunca foi sua intenção desfigurar ou destruir do referido imóvel mas sim repará-lo e preservá-lo e que, em sua opinião tais obras não precisavam de parecer prévio do IPPAR conforme, aliás, parecer do Prof. ….
De fls. 329 a 332 e 341 a 343 constam várias fotografias do referido imóvel.
De fls. 351 a 376 consta fotocópia da memória descritiva e justificativa que a sociedade M…S.A. entregou no Município de … como peça instrutiva do pedido de licenciamento de obras de construção de uma vedação do terreno da Quinta da …, elaborado pelo Arquitecto …, que conclui que foi "intenção da actual proprietária proceder a uma revitalização do actual espaço marginal à EN …, por forma a conferir-lhe um cariz mais arrumado, disciplinando-lhe a utilização e acentuando-lhe a diferenciação com o espaço público que é aquela Estrada Nacional" e que "Para o efeito a requerente escolheu um tipo de vedação que, de algum modo, se coadunasse com alguns elementos construtivos existentes no Palácio, quer a nível dos materiais utilizados, quer da sua aplicação e forma, como já foi referido."
Procedeu-se à inquirição do Arquitecto … (fls. 381 e 382), Director Regional de Lisboa do IPPAR, que esclareceu que, nos termos do Decreto 2/96 e de uma Portaria Publicada no mesmo ano, todo o conjunto (imóvel e terrenos) foi classificado como monumento nacional e que as intervenções com as quais a mesma instituição manifestou o seu desacordo centram-se no facto de um laranjal ter sido integralmente substituído por uma vinha, bem como de um muro ter sido derrubado e substituído por uma vedação metálica. Mais referiu que a importância histórica do laranjal se prende com o facto de a nobreza Portuguesa mandar plantar citrinos junto dos seus palácios por forma a que, na Primavera, se sentisse o seu perfume e que por tal razão o Palácio e o laranjal formavam um conjunto de valor histórico, sendo relevante a perda de uma das partes.
A fls. 599 a 623 encontram-se cópias de elementos do processo de Inventário de Bens Culturais da Nação, referente ao Palácio da …, que integram fotografias da Quinta, uma monografia histórico-artistica da Quinta e Palácio da … por …., inventário do Património Aquitectónico do Palácio e Quinta da …, com descrição das suas componentes, constando da descrição ambiente: "Rural, isolado, implantação harmónica (...) ® terreno intramuros, com c. de 4 há, mostra 2 terraplenos: um superior na metade S, em que está implantado o Palácio, o tanque e a casa de fresco (encostada à cerca, a S.) o jardim, o pomar e uma vinha, um inferior na metade N., com outra vinha, separado do superior por 2 pavilhões quadrados (casa da índia e das Pombas) junto à cerca e um cubelo cilíndrico a meio do muro de suporte.", da descrição Tipologia: "Arquitectura civil privada. Gótico. Renascimento. (...) espírito renascentista na concepção do conjunto palácio-jardim, na regularidade da planta e na composição dos alçados rasgados por lójias, com medalhões com bustos embutidos" e da descrição materiais: "Cantaria e alvenaria em pedra, telha cerâmica, azulejo, madeira, vidro.",
De fls. 624 a 825 constam cópias do processo n.° 2000/27-12(39) do IPPAR.
Procedeu-se à inquirição de …., professora de arquitectura paisagística (fls. 832 3 833), que, no essencial referiu ter sido contactada por representantes legais da M. SA, em Setembro de 2000, que a informaram ser proprietários da Quinta da … e pretendiam fazer obras na mesma pelo que lhe solicitaram conselho sobre a intervenção que deveria ser feita, tendo a depoente informado os mesmos sobre a importância histórico-cultural, arquitectónica e paisagística da referida Quinta, constituída pelo edifício, jardins, laranjal e vinha e entregue aos mesmos fotocópias do livro da autoria de …, intitulado, a "Arte Paisagística dos Jardins" e publicado em 1969. Mais referiu esta testemunha que em Março de 2001 e no âmbito de uma visita de mestrado à referida Quinta presenciou obras profundas a serem efectuadas pela M. SA que, em sua opinião, descaracterizavam a mesma, tendo sido arrancado um pomar (laranjal) perto do palácio e do lago e substituído por vinha, arrancados quatro plátanos do páteo de entrada, arrancado todo o maciço arbóreo que individualizava a Quinta dando-lhe privacidade, destruídos os três patamares que terreno existentes na Quinta, alterado o sistema hidráulico, arrancados os azulejos no percurso pedonal que liga o edifício à casa do tanque, possivelmente para recuperar os muros.
Esta testemunha juntou aos autos fotografias do local retiradas antes da intervenção da M. SA na Quinta da … (fls. 871 a 895) e fotografias tiradas após o inicio da intervenção naquela Quinta (fls. 897 a 908).
Foi inquirida …, Presidente da Associação Portuguesa de Jardins e Sítios Históricos, que efectuou tese de doutoramento sobre os jardins dos vice-reis, debruçando-se, essencialmente sobre a Quinta da … (fls. 834 e 835) que, em suma, referiu que a tese que elaborou tem um estudo aprofundado sobre o estado da Quinta no ano de 1992 e em Agosto ou Setembro de 2000 se reuniu com J., tendo-o alertado para a importância global da Quinta da …, bem como para a importância dos pormenores, designadamente dos socalcos, do sistema de rega e do laranjal, tendo entregue ao mesmo uma cópia da sua própria tese. Mais referiu que no lado direito do percurso entre o edifício principal e a casa de fresco todo o muro de suporte do laranjal estava protegido na sua parte superior por capiamento cerâmico do século XVI e que foi substituído por elementos cerâmicos actuais. Acrescentou que, em 2001 e a pedido do mesmo indivíduo, deu uma entrevista para uma cadeia norte-americana de televisão, tendo realçado a importância da Quinta da … e nesse mesmo programa o Sr. J. também deu uma entrevista sobre o vinho e a Quinta …, razão pela qual, necessariamente, este sabia do valor patrimonial do referido monumento.
De fls. 850 a 858 consta cópia de parte do livro "…", da autoria de … em que se faz referência à Quinta da …, com fotografias ilustrativas do local.
De fls. 862 a 869 constam cópias de páginas do livro da autoria de …, intitulado, a "Arte Paisagística dos Jardins" e publicado em 1969, em que se faz referência à Quinta da … e seus elementos componentes até à sua aquisição pela Sr.a ….
A fls. 917 a 1003, consta requerimento apresentado pela M. S.A. informando das diversas intervenções realizadas pela M. SA na Quinta …, datas e motivos que presidiram às mesmas, bem como identificação das entidades intervenientes nas mesmas. Juntaram fotografias do local no inicio do século XX, fotografias do estado da Quinta quando foi adquirida e dos materiais utilizados nas intervenções que foram efectuadas (fls. 929 a 955), bem como parecer do Prof. … relativamente à necessidade de parecer prévio por parte do IPPAR na acção desenvolvida pela sociedade M. SA na Quinta … (fls. 956 a 994), oficio da Câmara Municipal de … referente à desnecessidade de licenciamento por parte da M. SA pelas intervenções de desmatação, limpeza, terraplanagem de cariz agrícola e reparação de muros a realizar na Quinta da … (fls. 995), cópia de decisão do 1° Juízo Criminal de … proferida no proc…., que absolveu a F.P. Vinhos da contra-ordenação que lhe tinha sido aplicada pela movimentação de terras sem autorização prévia (fls. 996 a 999) e parecer elaborado no processo de alargamento do âmbito da zona de protecção do Palácio para a Quinta … (fls. 1000 a 1003).
De fls. 1063 a 1077 constam diversos artigos de opinião das Prof.as…., publicados em jornais.
De fls. 1104 a 1110 constam autos de busca e reconhecimento de objectos efectuados na Quinta da ….
De fls. 1133 a 1153 consta parecer elaborado por … no âmbito de Perícia efectuada na Quinta da ….
Foram, ainda, inquiridas as seguintes testemunhas:
a) …, Conservador do Museu Municipal de …, referiu, em suma, que visitou a Quinta da … por diversas vezes antes da intervenção da M, S.A. e por isso saber da existência de um laranjal entre o jardim dos buxos e a casa de frescos que foi substituído por vinha. Mais referiu que, em sua opinião, a acção mais lesiva da imagem e das características da Quinta foi aquela que foi levada a cabo na zona sul, entre o muro da Quinta e a EN … que era ocupada por árvores de grande porte que faziam uma barreira natural para protecção da intimidade visual e sonora da Quinta e Palácio e o gradeamento colocado em sua substituição nada tem a ver com o restante espaço uma vez que a Quinta continua a ser de matiz marcadamente renascentista e o espaço envolvente, designadamente o arranjo ajardinado em causa, é completamente estranho a essa matriz;
b) …, referiu que sempre se interessou pela Quinta da …e pela sua história e que há mais de 12 anos não visitava a Quinta. Referiu, ainda, que as árvores que se situavam entre o muro da Quinta e a EN … e que foram arrancadas foram ali plantadas pela Sr.a …, como forma de proteger a Quinta do exterior, mas que a pouco e pouco se transformou num verdadeiro matagal, cheio de lixo e ratazanas. Em sua opinião o arranque das árvores e limpeza do local foi uma decisão acertada mas a vedação construída junto da EN… é "feia" e nada tem a ver com a beleza da própria Quinta.
c) …, que referiu ter escrito um livro sobre a história dos 500 anos do Palácio e conhecer o mesmo. Em sua opinião as obras efectuadas em nada afectaram o valor do Palácio e da Quinta, sendo que o arranque de árvores velhas que prejudicavam a visão e conservação do Palácio, provocando humidades por taparem a luz solar, e a sua substituição por vinha, deu maior amplitude à produção do famoso vinho da … Mais referiu que na parte exterior da Quinta havia um terreno desprezado, sem limpeza e que servia de entulho a lixo, pelo que, em sua opinião, saiu beneficiado com árvores decorativas, arrelvado e gradeado ao estilo da época do Palácio, que foi efectuado o corte de árvores de pequeno porte que não tinham importância botânica, ficando, assim, a totalidade do Palácio visível para usufruto das pessoas que passavam e que foi contactado pelo Sr…., quando este comprou o imóvel para que o esclarecesse sobre o historial do Palácio e da Quinta. Esta testemunha prestou, ainda, diversos esclarecimentos sobre as fotografias juntas aos autos.
De fls. 1167 a 1189 consta diversa documentação referente ao Palácio e Quinta da … existente na Direcção Geral dos Edificios e Monumentos Nacionais.
A Direcção Geral dos Edificios e Monumentos Nacionais juntou aos autos os documentos de fls. 1191 a 1260, referentes a reproduções de fotografias da Quinta da …, existentes no arquivo daquela Direcção Geral.
De fls. 1281 e 1282 consta certidão predial da descrição e inscrições em vigor referente ao imóvel em causa nos autos.
De fls. 1293 a 1306 consta monografia da autoria de … referente à Quinta da ….
De fls. 1314 a 1374 consta cópia do livro escrito por …, intitulado Quinta e palácio da …, 500 anos de História.
…., veio a, fls. 1412, informar ter sido contactado em meados de Maio de 2002, por R. e M. para fazer uma vedação para a Quinta da …, o que conclui em Agosto de 2002. Mais informou que recebeu indicações para efectuar a vedação com material enquadrado com o existente na Quinta, tendo, para o efeito, fotografado as varandas existentes no Palácio e optado por um material que ficasse o mais parecido possível.
… veio, a fls. 1417, informar que, em finais do ano 2000 ou princípios do ano de 2001, foi contactado por R. e M. para efectuar reparações nos muros da Quinta da …. Informou que os referidos muros estavam em muito mau estado de conservação por acção do tempo, das raízes das árvores e das heras e infiltrações. Procedeu à reparação dos muros, mantendo a estrutura dos mesmos e utilizando materiais que se aproximavam do que existia anteriormente, assim como cal branca e areia, sendo que já existiam remendos efectuados com cimento que foram retirados e substituídos por massa a condizer. Mais informou que, em Maio de 2002 voltou a ser contactado pelo Sr. … para construir uma vedação junto à EN .. para resguardar a Quinta e que para isso foram efectuadas várias reuniões tendo sido decidido construir a vedação utilizando materiais que se enquadrassem com o estilo da Quinta, ou seja, tijolo de burro e massa de cal, a qual foi montada no final de Agosto de 2002.
De fls. 1420 a 1423 consta certidão comercial de todas as inscrições em vigor referentes à sociedade M., S.A. Em sede de instrução.
Procedeu-se à inquirição das seguintes testemunhas:
-, serralheiro civil, que, com interesse para a causa, referiu que em Maio de 2002 foi contactado pelo senhor R. e pelo Senhor M. para efectuar e montar as grades de vedação para a "Quinta da …", junto à estrada Nacional …. Foi-lhe solicitada então que tirasse fotografias das grades das varandas da quinta para que as grades da vedação correspondessem ao mesmo tipo daquelas, mantendo-se assim aquele estilo. Nesse momento tirou as referidas fotografias e fez uma grade para amostra que apresentou aos supra referidos tendo o mesmo dado a sua concordância à amostra apresentada. Iniciou a colocação das referidas grades em 23 de Agosto de 2002 e finalizou o mesmo no dia seguinte, ou seja, 24 de Agosto de 2002.
-…, empreiteiro da construção civil, que, com interesse para a causa, referiu que em finais de 2000, mais propriamente em Dezembro de 2000, foi contactado pelo senhor R…, para efectuar reparação dos muros da "Quinta da …" que haviam sido afectados pelas intempéries daquele Inverno de 2000, mais propriamente pela enxurrada que resultou das águas que caíram durante o Inverno e provocou a queda de árvores, e que durante anos foram sendo danificados por acção das raízes das árvores e por acção de heras que se agarraram ao mesmo. Assim, procedeu apenas ao restauro de partes do muro que se encontravam danificadas, utilizando para o efeito massa de cal, areia, pedras e restos de tijoleira e outro material que se podia aproveitar do remanescente do muro. Substituíram, na reparação supra referida, por reboco os remendos de cimento que aquelas partes do muro apresentavam. Não chegaram a terminar os trabalhos de reboco por causa da ordem de suspensão proferida pelo IPAR, o que sucedeu em Janeiro ou Fevereiro de 2001 (embora não possa precisar que tenha sido exactamente esta data). No exterior da Quinta junto à Estrada Nacional … existia muito lixo acumulado bem como heras, arbustos e árvores podres, o que resultou de não se mostrar tratada aquela zona e também como resultado das chuvas e enxurradas. Mais refere que a única zona que se encontrava tratada era a zona da vinha, da responsabilidade da F.P. vinhos. Assim quando procedeu à recuperação do referido muro teve que remover bocados de reboco do muro que estava danificado pela queda das árvores e pelas raízes das mesmas e heras que se agarraram ao mesmo e efectuou também a limpeza das terras que tinham entrado para dentro da Quinta com as enxurradas. ® muro afectado encontrava-se essencialmente junto à Estrada Nacional ...
Não foram derrubados quaisquer muros da "…" mas apenas reconstruidos aqueles que se apresentavam danificados pelas circunstâncias supra referidas. A vedação a que se faz referência no artigo 11° do RAI, foi colocada em 23 ou 24 de Agosto de 2002, tendo o depoente efectuado os trabalhos das fundações da mesma e pilares em tijoleira daquela vedação de acordo com o padrão existente na Quinta, conforme lhe foi solicitado que o fizesse.
-…, que trabalha na vinha da Quinta da … desde o ano de 1972, referiu, em suma, que a vinha existente na propriedade vem do anterior proprietário sendo que em 1972 foram plantados cerca de quatro hectares de vinha. Esclareceu que, em 2001, a vinha existente foi substituída por nova vinha porque tinha chegado ao final da sua vida útil, tendo sido acrescentados dois a três mil metros de terreno afecto ao laranjal e, assim, removidas algumas laranjeiras, que se encontravam velhas e sem utilidade e algumas delas, ou todas, colocadas em vasos ao longo da relva. Acrescentou que, para replantação da vinha, foram efectuados trabalhos de nivelamento do terreno e mobilização de terra, mantendo-se, no entanto, os socalcos existentes na Quinta e que a vinha foi plantada por fotina a permitir a utilização de máquinas mas mantendo as características da vinha anterior, só que mais direita e mais aprumada. Com interesse referiu, ainda, que, em 2000 a M. S.A procedeu a uma limpeza da propriedade designadamente na parte exterior em frente ao palácio e junto à estrada nacional, onde se encontrava bastante lixo acumulado por anos de falta de limpeza, tendo ali colocado uma vedação para impedir as pessoas de continuarem a despejar lixo naquele local e procedeu à remoção de várias árvores que tinham caído por se encontrarem podres e por força das chuvas que ocorreram naquele Inverno, assim, como àà reparação do muro que desmoronou por força de falta de conservação e consequente degradação, aliado às chuvas que ocorreram nesse ano e à queda de árvores, tendo utilizado, para o efeito, tijolo, pedra, cimento ou cal e a parte exterior do muro ficou com o mesmo aspecto que o demais muro da quinta. Também referiu, esta, testemunha, que a M. S.A. procedeu à reparação de outras partes dos muros da quinta que apresentavam buracos por falta de conservação, utilizando, para o efeito, massa de cal, que foram colocadas trepadeiras novas nos muros da propriedade, tendo-se procedido a uma limpeza e substituição de plantas que se encontravam secas nos alegretes sem alteração da estética existente, que desconhece a existência de plátanos dentro da Quinta e que os únicos que conhece se encontram no terreno vizinho e formam uma alameda que vai dar à Quinta da …, assim, como desconhece que tenham sido arrancados azulejos de qualquer parte da Quinta e, segundo se apercebeu, os azulejos que esta tinha continuam na mesma posição, não podendo ter sido afectados azulejos com a movimentação de terras uma vez que, no local onde se procedeu à mesma, não existiam azulejos.
-…, referiu trabalhar na actual … - Vinhos de Portugal há mais de dezanove anos e ser esta empresa que explora a vinha na propriedade da Quinta, enquanto arrendatária da sua parte rústica. Esclareceu esta testemunha que, no ano de 2000 ou 2001, a sua entidade patronal substituiu a vinha existente na Quinta por vinha mecanizada e, com a remodelação da vinha, foi ocupado o espaço que fica entre o palácio e o lago, onde existiam laranjeiras, bem como a zona junto à fachada norte da casa, até aí ocupada por árvores secas e matagal, sem qualquer conservação, que eram de médio porte. Com a referida acção foi efectuado nivelamento de terras, sem descaracterizar os socalcos existentes, mantendo-se as regadeiras que existiam e sem afectação de quaisquer azulejos ou da estabilidade do tanque, que apresenta fundações bem profundas. Referiu, ainda, esta testemunha, que quando a M. SA adquiriu a Quinta esta se apresentava em muito mau estado de conservação e com péssimo aspecto, tendo a proprietária, no ano de 2000, procedido à limpeza de mato e lixo que se encontrava concentrado na zona exterior do muro da zona sul junto à EN … e, no ano de 2002, procedido à colocação de uma vedação junto àquela estrada para evitar o depósito de lixo naquela zona. Acrescentou que, quando procedeu à reparação do muro da quinta que tinha sido derrubado por força de queda de árvores e de má conservação, na sequência de uma tempestade, a M. SA procedeu à limpeza e reparação do terreno e do muro, tendo utilizado, na sua reconstrução, pedras do mesmo e massa de areia e cal e, nessa altura, aproveitou para reparar outras zonas do muro que apresentavam buracos, após limpeza das silvas e heras junto ao mesmo, com massa de cal e areia, mantendo a preocupação de continuidade da estética existente e quando procediam à reparação da parte nascente do muro a obra foi suspensa por ordem do IPPAR, tendo ficado por reparar, também, os demais muros da Quinta. Com interesse esclareceu que quando o muro da zona sul foi derrubado foram afectados os azulejos da floreira existente junto ao mesmo, tendo a M. SA o cuidado de os recolocar e, para o efeito, efectuou trabalho de crivagem da terra para tentar encontrar todos os bocados de azulejo que estivessem sob a mesma, que desconhece ter sido efectuada qualquer remoção de árvores de médio porte que não estivessem podres ou caídas por força da tempestade, que o painel de azulejos com o brasão da família … que se encontra na casa de fresco se mantém intacto, que foi efectuada reparação do alegrete que se situa do lado esquerdo do percurso pedonal que vai da casa do fresco para o palácio e se encontrava danificado há muitos anos e mesmo antes da M. SA adquirir o imóvel, utilizando-se, para o efeito, os mesmos materiais do alegrete derrubado e, no capiamento, tijoleira nova com as mesmas dimensões e características da tijoleira existente no passadiço do referido percurso.
-…, técnica de conservação e restauro de azulejo, referiu que efectuou inventário dos azulejos em reserva na Quinta da …., em Maio de 2004 e nessa altura não se encontravam azulejos arrancados. -…, arquitecto, referiu, em suma, ter acompanhado os trabalhos de restauro das coberturas da Quinta da … juntamente com o IPPAR, conhecer as teses de … e que são teses académicas e inovadoras relativamente ao jardim histórico português, sendo que a tese de … não está publicada e a tese de … tem uma edição de poucos exemplares. Mais referiu que os trabalhos de terraplanagem efectuados .foram efectuados de acordo com as normas técnicas e que não colocaram em risco de estabilidade o muro de suporte do tanque, assim, como se mantiveram os três socalcos que caracterizavam o terreno da Quinta, que as árvores de que há registo fotográfico em 1940 se encontravam apenas a ladear a estrada nacional tanto do lado da Quinta como do lado oposto da estrada e que as árvores que, entretanto, foram plantadas com o objectivo de impedir o ruído que provinha da Estrada Nacional. Referiu, também, que os arguidos procederam à reparação de muros devido à queda de algumas árvores e que viu posteriormente as zonas reparadas tendo verificado que as mesmas foram repostas com materiais idênticos e tendo o cuidado de manter o cromatismo dos rebocos existente, não tendo ocorrido qualquer perda de informação histórica com a referida reparação. Confirmou que pelas fotografias da época de 1930 (junta ao RAI) os alegretes já não tinham quaisquer peças de cerâmica a capiá-los, assim, como confirmou o teor do alegado nos arts. 106 e 107 do RAI. Esclareceu, igualmente, que o painel de azulejos com o brasão da família … se encontra, ainda, a casa de fresco e que todas as intervenções efectuadas na Quinta da … têm carácter reversível. Que os terrenos da Quinta foram sofrendo mutações ao longo dos anos e que, conforme resulta de fotografias, os muros e as paredes dos edificios não se encontravam enquadrados por matas, rente aos mesmos.
- …que, com interesse, referiu ter uma empresa de jardinagem e ter sido contratado, em finais do verão de 2000 para efectuar um trabalho de limpeza geral na Quinta da …, a qual se encontrava em muito mau estado de conservação existindo arruamentos, caminhos, portões e poços que se encontravam completamente tapados e só foram sendo descobertos à medida que o trabalho avançava, tornando-se dificil andar na propriedade, e estando as árvores de fruto doentes e secas, tendo procedido numa primeira fase, à limpeza dos arruamentos e ao abate de árvores que se encontravam doentes e encostadas a muros fazendo perigar a segurança dos mesmos. Esclareceu a testemunha que tiveram que interromper os trabalhos em Outubro, por causa das chuvas e retomaram o mesmo no início do ano de 2001, tendo feito um relvado pouco tempo depois entre o muro e a estrada nacional. Mais referiu que dentro da Quinta não existiam árvores de grande porte, que as árvores que foram cortadas não eram muito antigas e que apenas existiam dois plátanos de médio/grande porte, que foram cortados e estavam danificados e com o interior oco, que se encontravam do lado de fora do muro do lado direito para quem está de costas para a EN …. Acrescentou que os canteiros existentes dentro da Quinta estavam ao abandono assim como os buchos, que foram tratados e mantidos. Que foi colocada terra e flores da época nos canteiros e colocados vasos nos arruamentos. Que as árvores arrancadas fora da quinta e junto ao muro da mesma, que estavam doentes ou em risco de cair, foram substituídas por outras, plantadas de forma correcta. Procederam ao arranque de trepadeiras que se encontravam a danificar os muros e que dentro da quinta existiam mais arbustos do que árvores, à excepção do laranjal que se encontrava totalmente degradado e seco e foi retirado.
Os arguidos juntaram aos autos certidão do processo administrativo de alargamento da classificação do Palácio da … por forma a abranger também a Quinta … que correu termos no IPPAR sob o n.° …(126) - cfr. fs. 1600 a 1661.
Juntaram, também, ao RAI, diversas fotografias referentes à Quinta da …, que constam de fs. 1549 a 1555.
A solicitação dos arguidos foram pedidos esclarecimentos à Sr.a perita nomeada nos autos, os quais constam de fls. 1738 e 1739.
Foi efectuado exame ao local com a presença da Sr.a Perita nomeada, com os resultados constantes de fls. 1784 a 1805.
Em sede de prova indiciária complementar foram juntos aos autos os documentos de fls. 1865 a 1876 (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo) e de fls. 1877, bem como obra completa de … sobre a Quinta e o Palácio da ….

Do cotejo das diligências supra referidas importa desde logo considerar como suficientemente indiciado o exposto nos artigos 1° a 19° da acusação pública, no que se refere essencialmente à história do Palácio e Quinta da …., seus componentes, evolução e protecção, o artigo 20° na parte em que se refere que o Decreto 2/96, de 6 de Março de 1996 alargou a classificação de monumento nacional à Quinta da … e o art. 22° da mesma, com excepção do arguido A… que apenas veio a Representar a sociedade M. SA em 26 de Agosto de 2002, conforme resulta da certidão comercial junta aos autos.
Mais resulta indicado, não só porque em parte não contrariado pelos arguidos, mas também porque resultante dos diversos elementos documentais juntos aos autos (artigos, livros, registos e fotografias), depoimentos de testemunhas, relatório pericial elaborado e exame ao local, que os arguidos actuando por conta e no interesse da sociedade M., S.A. proprietária do imóvel em causa, no ano de 2000 a 2002 efectuaram diversas intervenções na Quinta …, através de terceiros que contrataram para o efeito, nomeadamente:
- permitindo que a arrendatária da parte rústica do imóvel efectuasse terraplanagem e movimentação de terras para replantação da vinha existente e plantação de vinha quer na zona ocupada por laranjal situado entre o jardim de buxos e o tanque, quer na zona da fachada norte da casa, substituindo a vegetação aí existente, alterando cotas de terreno;
- criaram taludes relvados (sobre os quais colocaram vasos de terracota onde forma plantados citrinos) com o objectivo de estabelecer concordância entre as cotas préexistentes e as novas cotas;
- derrubaram quase toda a vegetação existente dentro dos muros da Quinta e retiraram as diversas espécies plantadas nos alegretes, que substituíram por outras, e junto às paredes da casa;
- substituíram grande parte do maciço arbóreo existente entre a EN … e o muro da Quinta - composto por árvores de grande porte que abateram -, por relvado (na área a sul) e por ajardinamento (na área a poente);
- que as referidas intervenções tiveram repercussões na vista que se tinha da Quinta a partir da loggia da casa, do jardim e do tanque, alterando as relações visuais dentro da própria Quinta e para o exterior;
- construíram uma vedação em tijolo e ferro a delimitar o espaço entre a EN … e o muro sul da Quinta;
- procederam à reconstrução e reparação dos muros a sul e nascente da Quinta, bem como de alegretes;
- substituíram a terra batida do caminho de acesso ao portão Sul da Quinta por calçada e lancis de betão e colocaram gravilha noutros caminhos da Quinta;
- alteraram o sistema de rega, constituído por caleiras de alvenaria de tijolo, procedendo à instalação de um sistema de rega industrial.
Mais se mostra indiciado, atentos os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em sede de instrução e as fotografias juntas aos autos (designadamente fls. 931 a 944 e 1551 e 1552), que:
- quando a M, S.A. adquiriu o imóvel em causa nos autos este apresentava-se em mau estado de conservação e bastante degradado, encontrando-se a vegetação no interior da Quinta, seca e doente, sem qualquer cuidado;
- a zona exterior da Quinta, entre o muro sul da mesma e a EN .., era constituída por árvores diversas plantadas pela família …, anterior proprietária, para impedir a poluição sonora que provinha da EN,
- a referida área não tinha qualquer arranjo e servia de depósito de lixo;
- a M, S.A. procedeu a desmatação, limpeza e corte de árvores que se encontravam doentes e podres naquela zona, procedendo, também à substituição das plantas nos alegretes por forma a permitir a recuperação dos mesmos e arranque de heras e trepadeiras junto às paredes da casa e dos muros por estas afectarem a conservação dos mesmos;
- por acção da natureza, nomeadamente por efeitos das chuvas que se fizeram sentir no final do ano 2000 verificou-se derrube de uma parte do muro sul da Quinta;
- a M, S.A., na recuperação e reconstrução dos muros da Quinta, utilizou pedras pertencentes aos mesmos e massa de areia e cal;
- a Sr.a …(anterior proprietária) colocou cerâmica do século XVI no capiamento do muro de suporte ao laranjal, situado entre o Palácio e a casa de fresco e revestiu os alegretes e o caminho lateral ao mesmo por tijoleira do século XVI;
- a F.P. Vinhos S.A. explora a zona rústica da Quinta da ... desde, pelo menos 1972;
- quando a M., S.A. adquiriu o imóvel já se encontravam plantados cerca de 4 hectares de vinha e o laranjal apresentava uma área de pelo menos 0,29 hectares;
- quando a M, S.A. adquiriu o imóvel o laranjal apresentava-se seco e degradado;
- o terreno da Quinta … apresenta três socalcos.
No entanto não se mostra indiciado (quer pela existência de contradição entre o relatório pericial junto aos autos e o depoimento das testemunhas inquiridas em sede de instrução e, ainda, pelas fotografias juntas, que não permitem chegar a uma indiciação suficiente dos factos) que:
- as árvores arrancadas pelos arguidos tivessem carácter secular;
- os arguidos tenham procedido ao derrube de parte do muro que envolve a quinta e tenham utilizado massa de cimento na reparação de zonas daquele muro;
- com a reparação dos referidos muros se tenham perdido vestígios de elementos decorativos que anteriormente à acção dos arguidos existiam nos muros do extremo sul da propriedade, nomeadamente 12 medalhões em baixo relevo e se tenha impedido o restauro dos elementos que coroavam esses muros;
- existisse capiamento em cerâmica do século XVI na parte superior do muro de suporte do laranjal, situado entre o edificio principal e a casa de fresco, quando os arguidos adquiriram o imóvel;
- os arguidos tivessem substituído a tijoleira existente nos alegretes e florais do século XVII por tijoleira de produção recente;
- os arguidos tivessem removido o painel de azulejos com o brasão da família … existente na casa de fresco e arrancado todos os azulejos no percurso pedonal que liga o edifício à casa do tanque, incluindo os que se encontravam dispersos na propriedade e que muitos dos azulejos tivessem caído ao solo por força da movimentação de terras efectuadas por acção dos arguidos.

Por virtude do que fica exposto não tem o Tribunal dúvidas em afirmar que a Quinta da …, nos dias de hoje, apresenta uma dinâmica visual bastante diversa daquela que apresentava no tempo da anterior proprietária, Sr.ª …, ou seja, menos intimista e romântica.
Importa, no entanto, analisar se a conduta dos mesmos é susceptível de integrar a prática de um crime.
Para o efeito cumpre, em primeiro lugar, chamar à colação as previsões normativas imputadas aos arguidos.
Com efeito, dispõe o referido Art° 213° do C.P.
"1- Quem, quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável:
a)
b)
c)
d) Coisa pertencente ao património cultural e legalmente classificada ou em vias de classificação;
e) ...”
Não se exige, para o preenchimento da conduta típica expressa na alínea supra descrita, que o bem seja alheio, como sucede no crime base (art. 212°) e na qualificação prevista no n.° 2 do preceito em análise o que nos permite concluir que a referida dimensão punitiva não tutela o património do tipo base mas sim "valores ou interesses supra-individuais, que nada têm a ver com a propriedade" - Manuel de Costa Andrade, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 243.
A conduta típica desdobra-se em quatro tipo de acções, consumando-se quando o agente destrói, danifica, desfigura ou toma não utilizável, património cultural e legalmente classificado ou em vias de classificação.
A destruição reconduz-se à completa perda de utilidade da coisa, a danificação pressupõe uma destruição parcial da utilidade da coisa, a desfiguração, por seu turno, prende-se com a alteração do aspecto físico ou exterior da coisa. Por fim a última acção comporta todos os comportamentos lesivos da utilidade e funcionalidade da coisa, atento o seu fim económico e social, que não se integram nas demais acções.
Assim e no que concerne a coisa pertencente ao património cultural, cumpre concluir que o crime consumar-se-á quando a intervenção do agente no objecto de protecção foi de molde a afectar os elementos que presidiram à caracterização/classificação do mesmo como coisa pertencente ao património cultural.
Por seu turno o elemento subjectivo do ilícito em apreciação exige o dolo nas suas diversas modalidades: directo, necessário ou eventual.
Nesta matéria cumpre, ainda, chamar à colação as leis que disciplinam o património cultural.
Dispunha o art. 1° da Lei n.° 13/85 de 6 de Julho (Lei do Património Cultural Português) que "o património cultural português é constituído por todos os bens materiais e imateriais que, pelo seu reconhecido valor próprio, devam ser considerados como de interesse relevante para a permanência e identidade de cultura portuguesa através do tempo", assentando a protecção legal dos bens materiais que integram o património cultural na sua classificação e podendo os bens imóveis ser classificados como monumentos, conjunto ou sitio (art. 7°). Segundo o disposto na referida Lei por monumento deverá entender-se "obras de arquitectura, composições importantes, ou criações mais modestas, notáveis pelo seu interesse histórico, arqueológico, artístico, cientifico, técnico ou social, incluindo as instalações ou elementos decorativos que fazem parte integrante destas obras, bem como as obras de escultura ou pintura monumental" (art. 8°, n.° 1, al. a)), devendo as decisões de classificação ser devidamente fundamentadas segundo critérios culturais, nomeadamente de carácter artístico ou estético (art. 10°, n.° 2), recaindo sobre todos o dever geral de preservação, defesa e valorização do património cultural (cfr. art. 2°, n.° 1) e remetendo o art. 52° do referido diploma as infracções ao diploma que constituam crime de furto, roubo e dano, para o Código Penal.
Por seu turno a Lei n.° 107/2001, de 8 de Setembro, que veio revogar a supra referida norma e estabelece as bases de politica e do regime de protecção e valorização do património cultural, estabelece, no seu artigo 2°, n.° 1, que "integram o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objecto de especial protecção e valorização", dispondo que os bens imóveis podem pertencer à categoria de monumentos, conjunto ou sítios, sendo os bens imóveis considerados de interesse nacional (ou seja, quando a respectiva protecção e valorização, no todo ou em parte, represente um valor cultural de interesse nacional), classificados como monumentos nacionais (cfr. art. 15°). Segundo a mesma lei recaem sobre os proprietários, possuidores e demais detentores de direitos reais sobre bens que tenham sido classificados, o especial dever de conservar, cuidar e proteger devidamente o bem, de forma a assegurar a sua integridade e a evitar a sua perda, destruição ou deterioração (cfr. art. 21°, n.° 1, al. b)).
Prevê o art. 100° do diploma em referência que aos crimes praticados contra bens culturais aplicam-se as disposições previstas no Código Penal, sem prejuízo das incriminações resultantes do diploma em causa.
O Decreto de … 1910, publicado no Diário do Governo classificou o Palácio … como monumento nacional, na subcategoria dos monumentos civis.
Mais tarde o Decreto …, publicado no Diário da República I Série-B, da mesma data, rectificou aquele decreto, passando a abranger, na sua previsão o Palácio e a Quinta … (art. 2°, n.° 1).
Feita esta resenha normativa cumpre concluir que o artigo 213°, n.° 1, al. d) do C.P., assume o verdadeiro carácter de uma norma penal em branco. [2]
A legitimidade das normas integradoras das normas em branco em função do seu carácter meramente técnico e não inovador ou por consagrarem juízos técnicos de valor equivalente a uma perícia, foi já admitida pelo Tribunal Constitucional. [3]
Vieram, contudo, os arguidos alegar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 212° e 213°, n.° 1, al. d) do C.P. com referência ao artigo 100° da Lei 107/2001, de 8 de Setembro, quando interpretadas com o sentido de que o reenvio para acto administrativo de classificação da coisa como pertencente ao património cultural - enquanto objecto da acção típica - se basta com a referência nominativa, sem contemplar o conteúdo descritivo mínimo necessário à apreensão do âmbito, da delimitação e do sentido da protecção por aquela classificação conferida, por violação dos princípios da legalidade e da reserva de lei formal, consagrados, respectivamente, nos artigos 29°, n.° 1 e 165°, n.° 1, al. c) ambos do CRC.
Refira-se que a Lei do Património Cultural Português vigente à data da extensão da classificação como monumento nacional do Palácio … para Palácio e Quinta … (Lei n.° 13/85), dispunha, no seu art. 9°, n.° 3, que os processos de classificação deverão ser fundamentados e devidamente instruídos e, no seu art. 10°, n.° 2, que as decisões de classificação serão devidamente fundamentadas segundo critérios de natureza cultural, nomeadamente de carácter artístico e histórico.
Compreende-se que assim seja, não só para efeitos de audição prévia dos interessados no processo administrativo de classificação, mas para total transparência do próprio acto administrativo de classificação, o qual, obviamente, pode ser susceptível de impugnação, nos temos legais.
Ora no caso em apreço não é possível determinar quais os elementos característicos da Quinta da …que presidiram ao acto de classificação da mesma como monumento nacional e, assim, se a conduta dos arguidos afectou tais elementos.
Efectivamente do processo de alargamento da área de protecção do Palácio para a Quinta da ... e do acto de classificação juntos aos autos não resultam quaisquer elementos caracterizadores da Quinta mas apenas que o processo de alargamento da classificação foi motivado por uma necessidade de alargar o perímetro de protecção paisagístico do Palácio para protecção do mesmo à intrusão de factores externos.
Tanto assim é que foi necessário nomear perito nos autos e pesquisar diversa bibliografia com vista a determinar quais os elementos característicos na Quinta, sem que, mesmo assim, se conseguisse obter resultados satisfatórios, pois conforme resulta das descrições bibliográficas e fotografias juntas aos autos a Quinta sofreu diversas alterações ao longo dos anos e o único elemento que não sofreu alterações foi o jardim de buxos, sempre caracterizador da Quinta e que se mantêm intacto, atentando-se que do pomar a que se faz referência nas diversas obras apenas restava uma pequena área de laranjeiras aquando da aquisição do imóvel pela M. S.A.
Mas nada nos permite concluir que terão sido estas características determinantes para a extensão da classificação em causa.
Salienta-se que não é toda a acção sobre coisa classificada como património cultural que é susceptível de produzir dano criminalmente punível, mas apenas e tão só aquela que afecte os elementos que determinaram a classificação, a qual deve ser fundamentada.
Será certamente inconstitucional a aplicação das normas em causa com a interpretação a que fazem referência os arguidos, no que resulta a sua não aplicação, com tal interpretação, ao caso em concreto, por violação dos princípios da legalidade e da reserva de lei formal, consagrados, respectivamente, nos artigos 29°, n.° 1 e 165°, n.° 1, al. c) ambos do CRC.
Todavia mesmo que se entendesse pela interpretação da norma integrante em conformidade com a Constituição por conter um juízo técnico (equivalente a uma perícia e nos termos do disposto no art. 163° do C.P.P.) inerente à mesma, sempre restariam dúvidas sobre os elementos que conduziram à formulação do referido juízo e inerentes à extensão da classificação como monumento nacional à referida Quinta, conforme supra se deixou expresso, dúvida essa que impõe uma decisão favorável aos arguidos, sob pena de violação do principio do in dúbio pro reo.

4. Conclusão
Por tudo quanto fica exposto, ao abrigo do previsto nos artigos 307°, n.° 1 e 308°, nos 1 e 2 do C.P.P., decido não pronunciar os arguidos A., J., R. e JJ pela prática do crime que lhes vem imputado na acusação púbica.
Sem custas por não serem devidas.
Notifique e, oportunamente, arquive os autos.”
3. Analisando
A questão prévia
Comecemos por apreciar a questão prévia suscitada pelos arguidos na sua resposta, relativa à impossibilidade de neste recurso ser reapreciada a questão da inconstitucionalidade do artº 213º nº 1 al. d) do C. Penal, na interpretação propugnada pelo MºPº, pelo facto deste não ter interposto recurso, em primeiro lugar, para o Tribunal Constitucional.
Alegam os arguidos que, tendo a Srª Juíza de Instrução recusado a aplicação do artº 213º nº 1 al. d) do C. Penal ao caso concreto, com a interpretação propugnada pelo MºPº, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, o MºPº deveria ter interposto de imediato recurso para o Tribunal Constitucional, o qual é obrigatório, nos termos do disposto no artº 72º nº 3 da LTC.
Não o tendo feito, tem de entender-se que a decisão de julgar inconstitucional a interpretação do artº 213º nº 1 al. d) do C. Penal, já não pode ser posta em causa, sob pena de, admitindo-se a reapreciação dessa questão em sede do presente recurso, se fazer tábua rasa da regra decorrente do artº 75º nº 1 da LTC, conjugada com o preceituado nos nºs 2 e 5 do artº 70º da mesma Lei.
Cremos que não assiste razão aos arguidos.
Na verdade, dispõe o nº 6 do artº 70º da LTC (Lei 28/82 de 15/11, com as alterações introduzidas pela Lei 13-A/98 de 26/2) que “Se a decisão admitir recurso ordinário, mesmo que para uniformização de jurisprudência, a não interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não faz precludir o direito de interpô-lo de ulterior decisão que confirme a primeira.”
No presente caso a decisão proferida pela Srª Juíza de Instrução admite recurso ordinário para esta Relação.
O facto do MºPº não ter interposto recurso para o Tribunal Constitucional não faz precludir o direito de o vir a interpor depois de proferida a decisão por este Tribunal de recurso, desde que esta última venha a confirmar a decisão da 1ª instância.
Ou seja, a questão da inconstitucionalidade suscitada nos autos pode ser reapreciada por este Tribunal, dado que em relação à mesma não existe caso julgado.
A insuficiência da fundamentação da decisão recorrida
Alega o recorrente que é incorrecta e insuficiente a convicção probatória vertida na decisão recorrida ao considerar não indiciados determinados factos, mostrando-se, assim, violados os artº 97º nº 4, 127º e 163º do C.P.Penal.
Vejamos.
Dispõe o artº 308º do C.P.Penal sob a epígrafe “Despacho de pronúncia ou de não pronúncia”:
1. Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2. É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artº 283º nºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº 1 do artigo anterior.
3. (…)”
A remissão feita no nº 2 deste artigo para o disposto no artº 283º do C.P.Penal implica que se considere como nulo o despacho de não pronúncia que não contenha a indicação dos factos que não estão suficientemente indiciados.
Já no que respeita à omissão da discussão dos indícios no despacho instrutório, tem-se entendido que constitui mera irregularidade, resultante da violação do disposto no nº 5 do artº 97º do C.P.Penal, dado que a discussão dos indícios não está incluída no artº 308º nº 2, conjugado com o artº 283º nº 3.
Na decisão recorrida faz-se uma enunciação exaustiva das diligências realizadas em sede de inquérito e de instrução, após o que se referem os factos considerados como indiciados e os não indiciados.
Em relação à matéria fáctica indiciada diz-se na decisão recorrida que a mesma foi assim considerada “porque em parte não contrariado pelos arguidos, mas também porque resultante dos diversos elementos documentais juntos aos autos (artigos, livros, registos e fotografias), depoimentos de testemunhas, relatório pericial elaborado e exame ao local, que os arguidos actuando por conta e no interesse da sociedade M. S.A. proprietária do imóvel em causa, no ano de 2000 a 2002 efectuaram diversas intervenções na Quinta da …, através de terceiros que contrataram para o efeito (…)”
Quanto aos factos não indiciados diz-se na decisão recorrida que assim se considerou “quer pela existência de contradição entre o relatório pericial junto aos autos e o depoimento das testemunhas inquiridas em sede de instrução e, ainda, pelas fotografias juntas, que não permitem chegar a uma indiciação suficiente dos factos (…)”.
Ora, tendo em atenção que na enunciação das diligências de prova foi feita uma descrição exaustiva, acompanhada de um resumo das declarações prestadas pelas diversas testemunhas, é perfeitamente apreensível o processo de convicção do tribunal recorrido ao dar como não indiciados os factos constantes do despacho de não pronúncia.
Mas, ainda que assim não se entendesse, sempre se dirá que a irregularidade relativa à insuficiência da discussão dos indícios sempre estaria sanada porque não arguida em tempo – artº 123º do C.P.Penal.
A integração dos elementos constitutivos do crime de dano qualificado
Aos arguidos foi imputada na acusação pública a prática, em co-autoria material, de um crime de dano qualificado p.p. pelos artºs 212º, 213º nº 1 al. d), ambos do C. Penal, com referência ao artº 100º da Lei 107/2001 de 8/9.
Alega o recorrente, que os factos dados como suficientemente indiciados na decisão recorrida integram a prática pelos arguidos do crime de dano qualificado pelo qual estão acusados.
Dispõe o nº 1 do artº 213º do C. Penal que:
“1. Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável:
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) Coisa pertencente ao património cultural e legalmente classificada ou em vias de classificação;
e) (…)
é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.”
Não dispõe a lei penal de qualquer norma que defina o que deve ser entendido por património cultural ou coisa legalmente classificada.
Para tanto teremos que nos socorrer do disposto na Lei nº 13/85 de 6/7 – Lei do Património Cultural Português – e na Lei 107/2001 de 8/9, que veio revogar aquela e estabelecer as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural.
Dispunha o art. 1° da Lei n.° 13/85 de 6/7 que “O património cultural português é constituído por todos os bens materiais e imateriais que, pelo seu reconhecido valor próprio, devam ser considerados como de interesse relevante para a permanência e identidade de cultura portuguesa através do tempo".
Por sua vez o artº 7º da mesma Lei dispunha que a protecção legal dos bens materiais que integram o património cultural assenta na classificação dos imóveis e dos móveis, podendo os bens imóveis serem classificados como monumento, conjunto ou sitio.
E o nº 2 do artº 10º preceituava que as decisões de classificação serão devidamente fundamentadas segundo critérios de natureza cultural, nomeadamente de carácter artístico e histórico.
A punição do furto, roubo e dano de bens culturais era remetida para o Código Penal – artº 52º da mesma Lei.
No que à Lei 107/2001 de 8/9 concerne, estabelece o nº 1 do artº 2º que “Para os efeitos da presente lei integram o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objecto de especial protecção e valorização."
Os bens imóveis podem pertencer às categorias de monumento, conjunto ou sítio e podem ser classificados como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal – artº 15º nºs 1 e 2.
Para os bens imóveis classificados como de interesse nacional, sejam eles monumentos, conjuntos ou sítios, adoptar-se-á a designação “monumento nacional” – nº 3 do artº 15º.
Aos crimes praticados contra bens culturais aplicam-se as disposições previstas no Código Penal, com as especialidades constantes da mesma Lei – artº 100º.
O Decreto de 1910, publicado no Diário do Governo classificou o Palácio da … como monumento nacional, na subcategoria dos monumentos civis.
O Decreto publicado no Diário da República I Série-B, , rectificou aquele decreto, passando a abranger, na sua previsão o Palácio e a Quinta da … (art. 2°, n.° 1).
Ora, considerou-se na decisão recorrida que no caso em apreço não é possível determinar quais os elementos característicos da Quinta que presidiram ao acto de classificação da mesma como monumento nacional, não sendo, pois, possível concluir se a conduta dos arguidos afectou ou não tais elementos.
Do processo de alargamento da área de protecção do Palácio para a Quinta e do acto de classificação juntos aos autos não resultam quaisquer elementos caracterizadores da Quinta, mas apenas que o processo de alargamento da classificação foi motivado por uma necessidade de alargar o perímetro de protecção paisagístico do Palácio para protecção do mesmo à intrusão de factores externos.
Considerou, ainda, a decisão recorrida que o artº 213º nº 1 al. d) do C. Penal assume o verdadeiro carácter de uma norma penal em branco, pelo que, seria certamente inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade e da reserva de lei formal, consagrados, respectivamente, nos artºs 29º nº 1 e 165º nº 1 da al. c), ambos da CRP, a interpretação das normas constantes dos artºs 212º e 213º nº 1 al. d) do C. Penal com o sentido de que o reenvio para acto administrativo de classificação da coisa como pertencente ao património cultural - enquanto objecto da acção típica - se basta com a referência nominativa, sem contemplar o conteúdo descritivo mínimo necessário à apreensão do âmbito, da delimitação e do sentido da protecção por aquela classificação conferida.
Mais, considerou-se na decisão recorrida que, mesmo que se entendesse pela interpretação da norma integrante em conformidade com a Constituição por conter um juízo técnico (equivalente a uma perícia e nos termos do disposto no art. 163° do C.P.P.) inerente à mesma, sempre restariam dúvidas sobre os elementos que conduziram à formulação do referido juízo e inerentes à extensão da classificação como monumento nacional à referida Quinta, dúvida essa que impõe uma decisão favorável aos arguidos, sob pena de violação do principio do in dúbio pro reo.
Parece-nos, salvo o devido respeito por opinião contrária, muito acertada a posição assumida na decisão recorrida.
Não sendo conhecidos os elementos caracterizadores da Quinta que levaram a que a mesma fosse classificada como monumento nacional não é possível concluir que as obras levadas a cabo pelos arguidos integram os elementos objectivo e subjectivo do crime de dano qualificado que lhes é imputado na acusação pública.
Como bem refere a decisão recorrida, não é toda a acção sobre coisa classificada como património cultural que é susceptível de produzir dano criminalmente punível, mas apenas e tão só aquela que afecte os elementos que determinaram a classificação, a qual deve ser fundamentada.
Invoca o recorrente que o crime de dano qualificado sempre estaria consumado, uma vez que a Quinta da …. foi classificada como monumento, o que integra a circunstância qualificativa da al. b) do nº 1 do artº 213º do C. Penal.
Não cremos que assim seja.
A previsão da al. b) do nº 1 do artº 213º do C. Penal não visa proteger o património cultural, fim visado na al. d) do mesmo artigo, mas proteger os monumentos em função da sua afectação ao fim público.
Ora, como referem os arguidos na resposta ao recurso, o Palácio e a Quinta da … foram desde sempre destinados a habitação dos seus proprietários, não a utilização pública.
Não resulta dos factos indiciados, nem sequer dos alegados na acusação pública, que o Palácio e a Quinta estejam afectos ao fim público.
Concluindo, os factos indiciados não permitem a integração dos elementos objectivo e subjectivo do crime de dano qualificado imputado aos arguidos, pelo que, bem andou a Srª Juíza ao ter proferido decisão de não pronúncia.

III. Decisão
Por tudo o exposto, os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora, decidem negar provimento ao recurso interposto pelo MºPº, confirmando a douta decisão instrutória de não pronúncia.
Sem custas, por delas estar isento o MºPº.

Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).

Évora, 30 de Setembro de 2008

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Maria Guilhermina Vaz Pereira Santos de Freitas

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Carlos Jorge Viana Berguete Coelho




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[2] Sobre o conceito de norma penal em branco leia-se Teresa Pizarro Beleza e Frederico Lacerda da Costa Pinto, in O Regime Legal do Erro e as Normas Penais em Branco (Ubi lex distinguit...), Edição Almedina.
[3] Vejam-se os Acórdãos do TC n.° 427/95 de 6 de Julho e 534/98, de 7 de Agosto.