PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
DIREITO DE TAPAGEM
TRADITIO BREVI MANU
BENFEITORIAS
ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
Sumário


I – O direito de tapagem constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade

II – Pressuposto fundamental para o tribunal decretar o direito de tapagem é a prova da titularidade do direito de propriedade por parte do requerente.

III – A doação de imóvel por documento particular, com tradição, embora seja formalmente nulo, determina a aquisição pelo donatário de uma posse jurídica relevante, pois a tradição converte a detenção precária na posse em nome própria.

IV - As benfeitorias distinguem-se da acessão por na primeira existir uma relação jurídica que vincula à pessoa a coisa beneficiada, o que não se verifica na segunda.

Texto Integral

*
PROCESSO Nº 2282/08-3
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
*
RELATÓRIO
No Tribunal de … foi requerida por “A” e “B” procedimento cautelar inonimado contra “C” e mulher, “D”, pais da requerente mulher, para que lhes fosse reconhecido o direito de vedarem com portão e muro uma parcela de terreno de prédio dos requeridos na qual eles, com consentimento e autorização destes, construíram uma moradia de habitação.
Os requeridos opuseram-se a tal pretensão.
Produzidas as provas, foi indeferida a providência, fundamentalmente por falta de demonstração do direito de propriedade dos requerentes sobre a dita parcela de terreno.
Inconformados, agravaram os requerentes para esta Relação, pugnando pela revogação da decisão em alegação que finalizam com a seguinte síntese conclusiva:
A) Numa situação como esta, de indesejável conflito agudo entre pessoas ligadas por laços familiares, a pretensão dos Agravantes ao requerer a providência foi claramente a de obter da Justiça o apoio susceptível de minorar as pequenas questões do dia a dia.
B) Denegou-se, pela sentença recorrida, a viabilidade de uma solução de Direito, mas ignorando:
- Documento fundamental para definição da posse exercida pelos Agravantes;
- Factos do conhecimento comum que nem carecem de alegação nem de prova (artigo 514.° do Código de Processo Civil).

Não foram apresentadas contra-alegações.
Remetido o processo a esta Relação, após o exame preliminar - no qual foi corrigido o efeito atribuído ao recurso para suspensivo - foram corridos os vistos legais.
Nada continua a obstar ao conhecimento do agravo.
FUNDAMENTAÇÃO
- Vejamos os factos provados:
1. A requerente é casada com o requerente sendo filha dos requeridos;
2. Os requeridos são donos de um prédio onde está implantada a sua habitação, na Rua da …, nº …, em …;
3. Os requerentes, pelo menos desde 21.1.1984, com o consentimento dos requeridos iniciaram a construção de uma moradia numa parcela de terreno, com aproximadamente a área de 96 m2, contígua ao prédio referido na resposta ao artigo 2, sito na Rua da …, nº …, em …;
4. O requerente marido adquiriu para edificação da citada moradia os materiais discriminados nos docs. de fls. 14, 18 e 19;
5. Logo que a moradia ficou construída, os requerentes passaram a nela habitar;
6. A requerente em 24.9.1990 apresentou na então 3a Repartição de Finanças do concelho de … declaração para inscrição de um "prédio de dois pisos destinado a uma só habitação com estrutura de betão armado e alvenaria de tijolo que constitui benfeitoria assente em terreno de “C” tendo recebido o nº U-02436 na matriz predial urbana da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 9.050,19, passando a pagar a contribuição autárquica;
7. Os requerentes com o conhecimento e concordância dos requeridos passaram a dispor da parcela de terreno onde se encontra construída a moradia por eles edificada e do espaço para acesso da via pública à mesma habitação;
8. Os requerentes edificaram a moradia à vista de toda a gente, incluindo os requeridos, passando a nela viver e a receber amigos, sem oposição de ninguém;
9. O terreno onde se encontra implantada a moradia onde os requerentes habitam tem acesso directo à via pública, sem qualquer portão e dispõe de uma divisória amovível entre ele e o terreno onde está implantada a moradia dos requeridos;
10. Os requerentes pretendem instalar um portão para o lado da via pública e uma divisória fixa na parte que confina com o terreno dos requeridos;
11. Os requerentes contrataram uma pessoa para a execução do portão que se deslocou ao local para tirar medidas e avaliar as condições para a execução do trabalho, ao que os requeridos se opuseram, dizendo-lhe para se por dali para fora porque tudo aquilo era deles e a obra carecia da autorização deles;
12. O que levou a que pessoa contratada pelos requerentes se retirasse do local;
13. Desde há cerca de 4 anos que as relações entre os requerentes e requeridos se agudizaram, tendo estes sido alvo de agressões físicas por parte do requerente marido;
14. Os requerentes passaram a dispor do terreno onde se encontra implantada a moradia mencionada no artigo 4º;
15. Os requerentes, para além da moradia vinda de referir, levaram a cabo, anos depois, a construção de uns anexos, sem o consentimento dos requeridos.
Considera-se também provado que:
16. Por documento particular de 02-01-2002, “C” e mulher, “D”, declaram doar uma parcela de terreno com a área de 426,4 m2, confrontando a Norte com …, a Sul e Poente com “C” e “D” e a Nascente com serventia, do prédio sito na Rua da … nº … em …, a sua filha, “B”, por força da quota disponível dos seus bens.

- Consideremos agora o direito:
A 1ª instância indeferiu a providência cautelar por falta de demonstração dos respectivos requisitos, a saber, da probabilidade do direito de propriedade invocado, do justificado receio de lesão grave ou dificilmente reparável ao mesmo e da adequação da providência.
Insurgem-se os requerentes, alegando a necessidade da providência para a prevenção de conflitos familiares com os requeridos e a desconsideração da insegurança de pessoas e bens, factos de conhecimento comum, e de um documento particular datado de 22-01-2002, pelo qual os requeridos teriam doado a sua filha, ora requerente e agravante, uma parcela de terreno do seu prédio, por conta da sua quota disponível.

Apreciando:
Com a providência cautelar cujo indeferimento motivou o presente recurso, os requerentes pretendiam o reconhecimento do direito de vedar com portão e vedação em chapas aquele para o lado da rua e este para o lado do logradouro dos requeridos - uma parcela de terreno com a área de 426,4 m2 na qual construíram uma casa de habitação e que confronta a Norte com …, com caminho a Nascente e com os Requeridos a Sul e Poente.
Através do exercício deste direito de tapagem, pretendiam acautelar o seu direito de propriedade sobre a casa de habitação bem como os bens móveis nela existentes, impedindo o aceso e a devassa pela vizinhança.
Sabe-se que uma das características do direito de propriedade é a exclusividade do respectivo gozo - "o proprietário goza de modo (...) exclusivo ... " (art. 1305° nº 1 CC) significando o poder de excluir terceiros da utilização da coisa, consequência do seu carácter absoluto e da sua oponibilidade erga omnes.
Para isso, goza o titular do direito de propriedade do direito de tapagem: "a todo o tempo o proprietário pode ... tapá-lo de qualquer modo" (art. 1356° CC).
"O direito de tapagem ou de vedação, fundamentalmente destinado a impedir o livre trânsito de pessoas estranhas ou animais, constitui uma das faculdades inerentes ao direito de propriedade. É uma faculdade de tal modo indiscutível como meio de assegurar a exclusividade da fruição (...) que os autores chegam a considerar ingénua a disposição que atribui ao proprietário o direito de vedar o seu prédio (...)" (Cfr. Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2a ed., p. 203-204).
Por sua vez, a colocação de portões, na medida em que estes permitem controlar o acesso ao prédio, são também uma manifestação do direito de tapagem.
Por conseguinte, o pressuposto fundamental do decretamento da providência cautelar peticionada é a titularidade do direito de propriedade na esfera jurídica dos requerentes.
Serão eles, então, proprietários?
Sabe-se que construíram uma casa de habitação em prédio dos requeridos com conhecimento e autorização destes, que, em 24-09-1990, a inscreveram na matriz predial como benfeitoria assente em terreno do requerido, que a construíram à vista de toda a gente, que nela passaram a habitar e a receber amigos, sem oposição de ninguém, desde há vários anos e que em 02-01-2002, através de documento particular, os requerentes declararam doar à sua filha, a ora requerida (sic, mas devendo ler-se requerente), por força da quota disponível, uma parcela de terreno com a área de 426,4 m2 do seu prédio.
Começando por este último facto, trata-se de um negócio formalmente inválido, logo, ineficaz para a produção do efeito jurídico pretendido - a transferência do direito de propriedade (art. 947° nº 1, 2200 e 289° CC).
Os requerentes não eram possuidores da parcela de terreno, mas tão só dela meros detentores precários ou possuidores em nome alheio, como bem se decidiu na decisão recorrida.
Tal negócio, porém, apesar de formalmente nulo, determinou a aquisição por eles da posse juridicamente relevante em nome próprio por tradição (art. 1263°-b) CC).
É um caso típico de traditio brevi manu, em que o detentor, tendo a coisa em seu poder, passa a possuidor através de acordo com o anterior possuidor (conversão da detenção precária em posse em nome próprio).
Como é óbvio, neste caso a entrega (tradição) não se faz, não porque tal não deva ser feito mas porque já tinha sido feita anteriormente a título de detenção. Subjacente à traditio brevi manu está a prévia colocação da coisa na esfera de facto de um detentor e se o possuidor celebra com este um determinado acto jurídico apto potencialmente a transmitir um direito real para o detentor, este passa a possuidor apenas por causa desse acto jurídico e sem que seja necessária a entrega (que já foi efectuada). Em rigor, pois, não há qualquer traditio, já que não se faz entrega; esta é substituída pela celebração do acto jurídico; logo é uma tradição simbólica, conforme referido pelo art. 1263°.b) CC.
A posse dela resultante é uma posse não titulada, pois como decorre do art. 1259° n01 CC, releva para o título de posse a validade formal do negócio; como tal, presume-se de má-fé (art. 1260° n02 CC).
Logo, os prazos de usucapião do direito de propriedade são superiores (art. 1296° CC). Por conseguinte, os requerentes e agravantes não podem exercer direitos nem faculdades integradas no direito de propriedade (como é do de tapagem) contra a vontade do proprietário.
Logo, falece-lhes o direito cuja existência (ou probabilidade de existência) estava suposta na providência cautelar.
Dir-se-á, porém, que, não sendo donos da parcela de terreno onde implantaram a construção, são, contudo, donos desta última.
A construção de qualquer obra em terreno alheio, de boa-fé, suscita, normalmente, um conflito entre o direito de propriedade do solo e o da obra, normalmente resolvido pelas regras da acessão industrial imobiliária (art.s 1325°, 1339° e 1340° CC).
E tendo esta carácter potestativo, até ao respectivo exercício, as propriedades mantêm-se distintas, a do solo e a da obra (Cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil - Direitos Reais, 4a ed., p. 403).
Poderá dizer-se que, com a colocação da vedação e dos portões, os requerentes visam defender o seu direito de propriedade da obra.
Todavia, foram os próprios requerentes quem, para além da omissão de alegação dos requisitos da aquisição da propriedade do solo por via da acessão industrial imobiliária (art. 1340° n01, 2 e 3 do CC), afastou mesmo a aplicabilidade deste regime quando no próprio acto de inscrição matricial da moradia construída a identificaram como benfeitoria assente em prédio dos requeridos, ou seja, como despesa feita para conservar ou melhorar o prédio destes (art. 2160 nº 1CC).
“A benfeitoria e a acessão embora objectivamente se apresentem com caracteres idênticos, pois há sempre um benefício material para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela. A aquisição por acessão é sempre subordinada (...) à falta (...) de um título que dê, de per si, a origem e a disciplina da situação criada "(. .. )
Porque as benfeitorias estão sempre dependentes de uma relação jurídica (posse, locação, comodato, usufruto), elas têm o aspecto de excepcionais em relação à acessão, que seria a regra. Trata-se de uma mera aparência, que não corresponde ao fundamento jurídico ou lógico das duas espécies de melhoramentos. As benfeitorias e a acessão constituem fenómenos paralelos que se distinguem pela existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule à pessoa a coisa beneficiada" (Cfr. Pires de Lima - A. Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2a ed., p. 163).
Funciona, assim, o princípio geral da expansão do direito de propriedade a tudo o que ao respectivo objecto se vier a unir ou incorporar, mesmo que alheio (art. 13250 CC).
Logo, também por esta via, falece a pretensão dos requerentes.
É certo que, in extremis, os recorrentes justificam, na alegação de recurso, a necessidade de vedação e de portões para prevenir os conflitos familiares do dia a dia com os requeridos.
Ora, não sendo eles titulares do direito que se arrogam, não são as providências cautelares o meio adequado para prevenir os conflitos, ainda que familiares, cujo pressuposto é a existência real ou meramente provável desse direito.
E isto ainda que se conceda, por constituir facto notório, a crescente necessidade actual de segurança contra agressões à propriedade.
Eis porque a nosso ver a providência cautelar não pode ser deferida, afinal contra os proprietários do prédio.

Em síntese:
I - Pressupondo o decretamento de uma providência cautelar a existência ou probabilidade de existência de determinado direito, não pode ser deferida a que visava a tapagem e a colocação de portões no acesso à via pública por parte de quem construiu uma casa de habitação em parcela de prédio alheio com autorização do dono deste, enquanto não adquirir por qualquer forma o direito de propriedade do solo.
II - Se, depois de construída a casa, os donos do prédio doam por mero documento particular a parcela de terreno onde teve lugar tal construção, operou-se a aquisição da respectiva posse por traditio brevi manu: de possuidores precários converteram-se em possuidores em nome próprio.
III - Neste caso, a aquisição do direito de propriedade por usucapião só ocorre depois de completado o respectivo prazo.
IV - As providências cautelares não são adequadas à prevenção de conflitos familiares.
ACÓRDÃO
Nesta conformidade, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao agravo e em confirmar o douto despacho recorrido.
Custas pelo recorrentes.
Évora e Tribunal da Relação, 06.11.2008