NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
Sumário


I. “O conceito de negligência grosseira implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito. A este último nível torna-se indispensável que se esteja perante uma acção particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada.”
II. A negligência grosseira não se verifica apenas – ou mesmo privilegiadamente - nos casos de negligência consciente.
III. O arguido que, com uma só acção, realiza diversos tipos legais ou realiza diversas vezes o mesmo tipo de crime contra as pessoas, por negligência consciente ou inconsciente, é punido, em concurso efectivo ideal (homogéneo ou heterogéneo, conforme os casos), por uma pluralidade de crimes.

Texto Integral


Acordam os Juízes, após audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. – Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo nº ..que correm termos no 2º juízo criminal do tribunal Judicial da Comarca de …, foi julgada A. … nascida em 30/07/78, , a quem o MP imputara a prática, em concurso real, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.137º nº 1 e 2 do C. Penal; de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº1do mesmo Código; de um crime de condução perigosa de veículo, p. e p. pelo art. 291º nº 1 al. b) do C. Penal; de uma contra-ordenação ao disposto no art. 35º do Código da Estrada; de uma contra-ordenação ao disposto no art. 21º do C. Estrada, com referência ao art. 145º, al. f) do mesmo Código e de uma contra-ordenação ao disposto nos art.s 29º e 30º também do C. Estrada.

2. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento, foi decidido, por acórdão de 25.02.2008:
« - Julgar extinto por prescrição o procedimento contraordenacional contra a arguido quanto às contra-ordenações de que vem acusada.
- Julgar a acusação improcedente, por não provada quanto ao crime de condução perigosa de veículo p. e p. pelo art.º 291º do C. Penal dele absolvendo a arguida.
- Julgar a acusação procedente por provada, nos termos e com a qualificação jurídica supra descritas e, em consequência:
a) condenar a arguida pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo art.º 137º, nº1 do C. penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, na condição da arguida pagar à Associação Para a Promoção da Segurança Infantil (APSI), com sede na Vila Berta, nº7, r/c, Esq. em Lisboa, a quantia de 600€, no prazo de 3 meses;
(…) »

3. Inconformado com a decisão, recorreu o MP para este tribunal, terminando a sua motivação com as seguintes Conclusões:

«1. Ao condenar A. … pela prática de um único crime de homicídio por negligência, p. e p. no artº 137º, nº1, do Código Penal, quando os deveres de cuidado omitidos pela arguida no exercício da condução estradal o foram por forma grosseira e foram causa adequada da produção, quer da morte de B. …, quer de ofensas na integridade física de C. … - já que foi por via da invasão da faixa de rodagem em que circulavam por parte da arguido que se deu o embate entre o veículo por esta conduzido e o motociclo em que aqueles seguiam, sendo certo que a morte e as lesões que sofreram não teriam ocorrido se não fosse esse embate - violou o douto colectivo o disposto nos artºs. 137º, nº2 e 30º, nº1, ambos do Código Penal;
2. Violado foi o artº 137º, nº2, porquanto a matéria de facto provada leva a concluir pelo seu preenchimento: A arguida, ao efectuar uma manobra de trânsito de forma totalmente descuidada, que se traduziu na invasão da faixa de rodagem contrária àquele em que seguia, sem se importar com o trânsito que ali se fazia sentir e levando ao embate no motociclo, demonstrou total inconsideração pelos demais utentes da via, total desconformidade com as necessidades básicas de cautela com que se deve actuar no exercício da condução;
3. Sendo assim de qualificar como grosseira a negligência com que agiu, a merecer o agravamento da pena de homicídio, nos termos do nº2 do artº 137º do Código Penal.
4. Por outro lado, dispondo o nº 1 do artº 30º do Código Penal que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente» deveria a arguida ter sido condenada pela prática de dois crimes, em concurso real, procedendo-se depois ao cúmulo jurídico das penas assim impostas.
5. Ao que não obsta estar-se no domínio da negligência, conforme tem vindo recentemente a ser entendido pela jurisprudência.
6. Pois que é a arguida merecedora do juízo de censura próprio da culpa relativamente a cada um dos concretos resultados verificados e crimes praticados.
7. Ao fazer-se reconduzir a punição à actuação da arguida, ao seu acto de vontade, ao entendimento de que o juízo de censura terá que ser igual ao número de decisões de vontade do agente, como justificar a sua não punição nos casos em que tal conduta não leva a qualquer resultado danoso para terceiros (casos de acidentes sem vítima)?
8. E como justificar que a mesma conduta possa ser qualificada como de homicídio negligente ou de ofensa à integridade física negligente consoante os resultados de uma mesma acção?
9. Terá necessariamente que se concluir que nestes casos, embora se puna a conduta (negligente), esta punição tem que ser ligada às consequências, aos resultados, não se verificando qualquer violação do princípio ‘ne bis in idem’.
10. O juízo de censura parte dos resultados para a acção. Só se os primeiros existirem, e no grau em que existiram, existe censura.
11. Na verdade, a punição a título de negligência pune precisamente a conduta traduzida numa omissão do dever objectivo de cuidado que, de acordo com as circunstâncias, se deveria ter tido. E, se é certo que as consequências não são queridas pelo agente (motivo pelo qual ele é punido a título de negligência e não de dolo), também é certo que é possível censurar a sua conduta por negligente, tantas vezes quantas as lesões jurídicas que ele devia prever se produziriam e efectivamente vieram a ter lugar.
12. O desvalor do resultado tem que ser relevado, tal como sucede nos crimes dolosos.
13. Daqui que o douto acórdão recorrido deva ser revogado e substituído por outro no qual a arguida A. … seja condenada pela prática, em concurso real, de um crime de homicídio por negligência e um outro contra a integridade física por negligência, pp. e pp. nos artºs. 137º, nºs 1 e 2 e no artº 148º, nº1, do Código Penal, procedendo-se depois ao cúmulo jurídico dessas penas.
14. Entendendo o MºPº que, tendo em conta todos os elementos constantes no acórdão, nomeadamente em termos de escolha da medida da pena, deverá a arguida ser condenada na pena de 2 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de homicídio por negligência (grosseira) e de 1 ano de prisão pela prática do crime contra a integridade física por negligência e, em cúmulo, imposta a pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução nos termos e sob a condição imposta no acórdão recorrido. »

3. – Notificada para o efeito, a arguida não respondeu.
4.- Nesta Relação, o MP apresentou o seu parecer, concluindo pela procedência do recurso.

5. – Notificada da junção do parecer a arguida nada disse.

6. Transcrição parcial da decisão recorrida.

« Discutida a causa ficaram provados os seguintes FACTOS:
1. No dia 5 de Julho de 2005, pelas 19 horas, na E. M. s/nº, …a arguida conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula…., no sentido nascente/poente.
2. No mesmo local e à mesma hora, mas em sentido contrário, seguia o motociclo, de matrícula…., conduzido por B. …, levando como passageiro C. ….
3. Ao chegar próximo de um entroncamento existente junto ao Hotel …, a arguida pretendeu mudar de direcção para a esquerda, para entrar no parque de estacionamento existente em frente do referido hotel.
4. Uma vez ali, sem atentar no trânsito que circulava em sentido contrário, a arguida avançou, mudando de direcção para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, invadindo a faixa de rodagem contrária onde circulava o motociclo, indo assim embater com a parte da frente lateral direita do seu veículo, na frente do motociclo, cujo condutor, não teve tempo de travar e evitar o embate.
5. Em consequência da colisão, o condutor e o passageiro do motociclo caíram, tendo aquele ficado junto do local do embate e C. … sido projectado por cima do veículo que a arguida conduzia e ficado a cerca de dois metros do mesmo local.
6. Da referida colisão resultou para o condutor do motociclo, B. … graves lesões traumáticas, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 18 a 21, que aqui se dá por reproduzido, que foram causa directa e necessária da sua morte e para o passageiro que com ele circulava, C …. resultou traumatismo do membro inferior direito com ferida inciso-contusa da perna e ferimentos superficiais no pé, lesões estas que lhe determinaram um período de doença por 8 dias, sendo os primeiros quatro dias com incapacidade para o trabalho, conforme relatório médico de fls. 183 a 185 e ficha clínica de fls. 187, os quais aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
7. A arguida, ao pretender mudar de direcção para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, fê-lo com manifesta falta de cuidado, sem prestar atenção ao trânsito que circulava em sentido contrário, como lhe era exigível, invadindo a faixa contrária no momento em que nela circulava um outro veiculo, dando assim causa ao acidente, com desrespeito por regras elementares de condução, cujo cumprimento bem sabia ser-lhe exigível.
8. A arguida conhecia bem o local em virtude de então trabalhar, em part-time, no referido hotel ….
9. A arguida não tem quaisquer antecedentes criminais.
10. A arguida é tida pelas pessoas que com ela lidam como uma condutora, prudente e respeitadora da sinalização.
11. A arguida trabalha como contabilista auferindo mensalmente 650€ e fora do seu horário de trabalho está a concluir o 3º ano do curso de gestão na Faculdade de Portimão. Vive com o marido e um filho menor de 8 meses de idade.
12. Segundo o relatório social elaborado pelo IRS, o acidente em apreço provocou na arguida instabilidade emocional tendo recorrido a apoio psicoterapêutico junto do Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio.
Em julgamento não ficou provado:
- que a arguida não assinalou, por qualquer forma, a sua intenção de mudança de direcção para a esquerda;
- que na data do acidente, a circulação no referido parque de estacionamento para a via pública onde seguia a arguida apenas era permitida para a saída de veículos do parque para a referida estrada municipal;
- que a entrada no referido parque era, então, proibida aos condutores que circulassem na via em que seguia a arguida, em ambos os sentidos;
- que tal proibição de entrada no parque encontrava-se, ao tempo, devidamente assinalada para os condutores que circulassem na aludida via, através de dois sinais verticais de sentido proibido, que ladeavam, um à direita e outro à esquerda, a saída do referido parque;
- que a arguida conhecia a existência dos referidos sinais de sentido proibido;
Fundamentação
(…)
ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
(…)
Com a sua conduta, a arguida omitiu um dever de diligência que lhe era exigível em matéria de condução rodoviária, não tendo tomado as cautelas exigidas por lei, no art.º35º do C. Estrada, sempre que um condutor pretenda mudar de direcção, nem as previstas nos art.ºs 29º e 30º do mesmo Código, sempre que pretenda entrar num entroncamento ou cruzamento, o que no caso concreto lhe era exigível, tendo assim actuado com negligência nos termos do art.º 15º do C. Penal.
Vem porém a arguida acusada de ter actuado com negligência grosseira. Não sendo ainda seguro, numa perspectiva dogmática, o que deva entender-se por este conceito, a negligência grosseira constitui, no dizer do Prof.º Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 113) um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência.
Para o preenchimento do conceito, continuando a citar o mesmo autor, torna-se necessário que estejamos perante uma intensificação da negligência, tanto ao nível da culpa como do tipo de ilícito. Exige-se assim uma acção particularmente perigosa e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada, que revele uma atitude particularmente censurável de descuido perante o comando jurídico-penal.
Conforme se escreveu no Ac. da Relação do Porto, de 9/12/98, acessível em www.dgsi.pt, “haverá negligência grosseira, no crime de homicídio involuntário, quando a falta de cuidado corresponde a uma violação grave dos deveres gerais de cautela, segundo as regras da experiência comum e se traduza numa conduta em que a falta de observância daqueles deveres de cautela seja tão clamorosa que a sua ilicitude fique no meio caminho entre o dolo eventual e a negligência consciente”.
Ora, face ao factualismo apurado, afigura-se não estarmos perante uma situação de negligência grosseira, embora concedamos que, a ter-se provado toda a matéria de facto constante da acusação, a conduta da arguida pudesse ser punida a esse título.
Ao chegar a um entroncamento, a arguida decidiu mudar de direcção para a sua esquerda. Fê-lo sem atentar no trânsito que circulava em sentido contrário e sem se certificar que de tal manobra resultaria embaraço para o trânsito, acabando por não ceder a passagem ao motociclo que circulava na via onde a arguida pretendia entrar. Contudo, não se provou que a arguida se tenha apercebido que o motociclo circulava na mesma estrada, na faixa de rodagem onde a arguida pretendia entrar, o que seria fulcral para caracterizar o tipo de negligência.
O factualismo assente apenas permite concluir que a arguida conduziu de forma desatenta e descuidada mas já não que tenha conduzido com elevado desrespeito das regras de condução estradal nem que a sua atitude revele “uma atitude particularmente censurável de descuido perante o comando jurídico-penal”.

A conduta da arguida é assim subsumível, no que ao homicídio respeita, na previsão legal do nº1 do art.º137º e não no seu nº2 como vem acusada.
Contudo, tendo ocorrido em consequência do embate a morte de uma pessoa e ferimentos noutra, coloca-se agora a questão, que há muito vem sendo debatida nos tribunais, com resultados nem sempre coincidentes, e que não é consensual na doutrina, que é a de saber se estamos apenas perante um concurso ideal de crimes, devendo a arguida ser punida apenas pelo crime mais grave que é o do homicídio, ou se perante um concurso real entre um crime de homicídio negligente e um crime de ofensa à integridade física simples, a punir autonomamente.
Maioritariamente os Tribunais superiores têm entendido que quando do mesmo acidente resulte a morte de uma ou mais pessoas e ferimentos noutras, estamos perante um crime de resultado múltiplo, em que se pune o mais grave, funcionando os outros como agravantes a atender na fixação concreta da pena. Isto porque actuando o agente com mera culpa não é possível formular mais do que um juízo de censura por cada comportamento negligente e daí que a pluralidade de resultados típicos não corresponda a uma pluralidade de infracções (neste sentido e entre outros cfr. Acs. STJ de 21/01/98, CJ, ano VI, tomo 1º, pág. 173, de 28/10/97, CJ ano V, tomo 3º, pág. 212, de 14/03/90, CJ, ano XV, tomo 2º, pág. 11, da Relação do Porto de 29/05/02, acessível em www.dgsi.pt/jtrp, da Relação de Coimbra de 6/04/95, CJ, ano XX, Tomo 3º, pág. 59, da Relação de Évora de 18/05/99, acessível em www.dgsi.pt/jtre).
Apesar de existir jurisprudência em sentido contrário, ainda que minoritária, que defende nestes casos um concurso real de crimes em virtude de existirem resultados múltiplos e por estarem em causa bens jurídicos eminentemente pessoais (cfr. Ac. RC de 29/03/2000, CJ, ano XXV, tomo 2º, pág. 48 e Ac, RP de 24/11/2004, disponível em www.dgsi.pt/jtrp), em se tratando de crimes involuntários praticados com negligência inconsciente temos alguma dificuldade em dissociar a acção do seu resultado e como tal, não sendo o mesmo previsível ao tempo da acção não é possível punir o agente por mais do que um crime. Só faz sentido punir o agente por mais do que um crime quando ele pudesse ter configurado a possibilidade de da sua acção negligente poder resultar mais do que uma vítima, pois só então é passível de vários juízos de censura, tantos quantos os resultados que previu. De outro modo, o agente teria de ser responsabilizado individualmente por tantos crimes quantos os resultados que adviessem da mesma acção negligente, o que em certos casos, designadamente em matéria de acidentes de viação, significaria uma penalização excessiva, tornando dependente do mero acaso a punição por um ou mais crimes, designadamente do número de ocupantes do veículo contra o qual o agente embate, quando nem sequer o agente configurou a possibilidade de atingir várias pessoas, nem lhe ser exigível que se aperceba do número de ocupantes desse veículo.
Temos assim, e em conclusão, que a conduta da arguida integra apenas a prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art.º 137º, nº1 do C. Penal.
DOSIMETRIA DA PENA
Resta então determinar a pena concreta a aplicar à arguida, o que se fará dentro dos limites definidos na lei, em função da sua culpa e das exigências de prevenção, atendendo a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a seu favor ou contra ela, tudo nos termos do art.º 71º, nºs1 e 2 do C. Penal.
O crime em questão é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa.
Manda o art.º 70º do C. Penal que se ao crime forem aplicáveis em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada as finalidades da punição, as quais são nos termos do art.º 40º do mesmo Código, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Não obstante estarmos perante uma conduta negligente, embora típica e ilícita, dela resultaram consequências muito graves – a perda da vida de um jovem com apenas 17 anos a que se seguiu certamente a perda da alegria de viver da sua família, por terem ficado tão cedo sem o seu ente querido, além de que foram causadas lesões físicas, embora sem sequelas permanentes num outro jovem da mesma idade.
As exigências de prevenção geral assumem aqui relevo significativo atento o elevadíssimo índice de sinistralidade que ocorre nas estradas portuguesas, resultado, na sua grande parte, do desrespeito pelas normas de cuidado jurídico impostas a todos no exercício da condução.
Não obstante a circulação rodoviária ser em si mesma uma actividade objectivamente perigosa, recai sobre cada um de nós, enquanto condutores, um dever especifico de prudência por forma a adoptar os deveres de cuidado adequados a evitar acidentes já que hoje podemos ser autores de um ilícito típico dessa natureza mas amanhã podemos ser vítimas desse mesmo facto ilícito praticado por outrem.
Apesar da arguida não ter antecedentes criminais e de estar inserida social e profissionalmente , o que atenua as exigências de prevenção especial quanto às necessidades da sua socialização, mostra-se mais adequada a pena detentiva da liberdade , de inequívoca superioridade politico-criminal, face às fortíssimas exigências de prevenção geral.
Ponderando, assim, o grau de ilicitude dos factos trágico nas suas consequências e elevado também pelo facto da arguida conhecer bem o local, sendo-lhe por isso ainda mais exigível o tal dever de cuidado que não respeitou, que a culpa do acidente é no caso de atribuir em exclusivo à arguida e que a mesma apesar de ter ficado abalada psicologicamente com o acidente, não assumiu em julgamento a sua responsabilidade, tendo presente a moldura penal prevista para o crime, entendemos adequada a pena de 18 meses de prisão.
Considerando, porém, que a arguida é primária, está integrada social e profissionalmente, tem agora um filho de tenra idade e é tida como uma condutora prudente e cumpridora das regras de sinalização, mostram-se esbatidas as necessidades de ressocialização pelo que a advertência que constitui a condenação numa pena de 18 meses de prisão será quanto a nós um factor mais do que suficiente, de acordo com um juízo normal de prognose, de que no futuro a arguida irá ser uma condutora mais prudente e diligente e que os factos ocorridos terão sido um acto isolado na sua vida.
Termos em que, se suspenderá a execução da pena de prisão por igual período nos termos do art.º 50º do C. Penal.
Ponderando a circunstância de a arguida não ter verdadeiramente demonstrado interiorização da censurabilidade da sua conduta e porque hoje já é mãe e por isso melhor compreenderá a dor, certamente ainda sentida por aqueles que ficaram privados tão cedo do seu filho tão jovem, entendemos subordinar a suspensão da execução da pena à obrigação de pagar à APSI (Associação Para a Promoção da Segurança Infantil), com sede em Lisboa, a quantia de 600€, no prazo de 3 meses, de tal devendo fazer prova nos autos.
(…) »

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. –. Delimitação do objecto do recurso.
O MP apenas vem recorrer em matéria de direito, suscitando duas questões que importa decidir:
- Se é de qualificar como grosseira a negligência com que agiu a arguida.merecendo o agravamento da pena de homicídio, nos termos do nº2 do art. 137º do C. Penal;
- Se deveria a arguida ter sido condenada pela prática de dois crimes, em concurso real, sendo um de homicídio negligente p. e p. pelo art- 137º nºs 1 e 2 e outro de ofensa à integridade física negligente p. e p. pelo art. 148º nº 1, ambos do C.Penal.
2. Decidindo.
2.1.- Da qualificação do crime de homicídio negligente.
Como referido supra, a primeira das questões a decidir é a de saber se em face da factualidade provada a conduta da arguida consubstancia a prática por esta de um crime de homicídio co0m negligência grosseira p. e p. pelo nº 2 do art. 137º do C.Penal.
Vejamos.
A revisão do o C.Penal de 1995 manteve no art. 137º dois níveis de punição do homicídio negligente que já vinham do art. 136º da versão originária do C.Penal, limitando-se a aumentar as penas abstractas neles previstas, de um máximo de 2 para 3 anos na negligência simples e de um máximo de 3 para 5 anos na negligência grosseira, limites que se mantêm na redacção actualmente em vigor, inalterada desde o Dec-lei 48/95 de 15 de Março.
Sobre o que deva entender-se por negligência grosseira, valem sobretudo as considerações sobre o conceito que podem colher-se na doutrina e na jurisprudência, de que possam resultar alguns parâmetros ou critérios capazes de orientar o aplicador do direito, pois o legislador utiliza-o na parte especial do C.Penal sem o definir aí ou na parte geral.
Independentemente de questões de ordem sistemática, refere o Prof. F. Dias, depois de aludir às dúvidas sobre o conceito, que seguro é que a negligência grosseira constitui um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência. Indiscutível esta asserção, plenamente concordante com a moldura penal mais grave cominada no nº 2 do art. 137º C. Penal, escasseiam as certezas ao nível do sentido e fundamento do conceito de negligência grosseira.
Diz a este respeito aquele professor, depois de aludir a outras respostas possíveis para a questão – constituir mera circunstância modificativa da pena, uma forma de culpa ou uma característica da atitude do agente – que a razão estará com Roxin quando defende “…que o conceito implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito. A este último nível torna-se indispensável que se esteja perante uma acção particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada.Ao nível da culpa, não pode esta deduzir-se sem mais da especial gravidade da ilicitude, exige-se antes o juízo autónomo de que o agente revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal ? [1]
Na jurisprudência, pode citar-se entre muitos o Ac STJ de 11.11.1998 de cujo sumário pode ler-se que, “ III . A negligência grosseira corresponde à antiga culpa ‘lata’ latina e apresentando grandes afinidades com a culpa temerária espanhola….constitui uma culpa qualificada pela falta de previsão, ponderação, atenção, diligência e cuidados mais elementares “(relator: Conselheiro Leonardo Dias, acessível em www.dgsi.pt). Também no sumário do Ac. STJ de 15.11.2001 pode ler-se: “I.A negligência grosseira é uma forma qualificada de negligência que ocorre quando a violação dos deveres de cuidado e diligência que consubstancia a negligência simples assume uma mais intensa gravidade, quando os mais elementares deveres de precaução e prudência são de todo omitidos, quando o acto omissivo revela grande irreflexão ou ligeireza.” (relator: Cons Hugo Lopes, acessível em www. dgsi.pt)
Posto isto, importa agora deixar claro, no concernente à relação do conceito com a negligência consciente e a negligência inconsciente (art. 15º do C.Penal) que, ao contrário do que parece pressupor o acórdão recorrido, [2] a negligência grosseira não se verifica apenas – ou mesmo privilegiadamente - nos casos de negligência consciente. Como diz o Prof. Faria Costa, “ … poder-se-ia pensar o comportamento negligente – a nosso ver erradamente – à luz de uma escala de valor ascendente: a negligência inconsciente encontrar-se-ia no extremo da menor gravidade, no centro estaria a consciente e, no limite do desvalor máximo, desvendar-se-ia a negligência grosseira. Uma tal compreensão em crescendo da negligência levar-nos-ia em conclusão de que a negligência grosseira, por força da sua localização naquela escala, teria de possuir as notas caracterizadoras da negligência consciente e algo mais que justificasse a exasperação do desvalor. Não seria, assim pensável a qualificação como grosseira de uma negligência – a inconsciente – vista como um minus à luz daquela gradação. Não se nos afigura, porém, adequada, por desconforme com a realidade, uma arrumação de tal modo espartilhada desta categoria dogmática que é a negligência. É, de resto, do mais elementar senso comum a ideia de que a imprevisão do resultado que a norma pretende evitar pode, em si mesma, ser muito mais desvaliosa….” [3] .
Num quadro legislativo próximo do nosso, afirma também Mir Puig [4] – referindo-se às categorias gerais da negligência grave e negligência leve (correspondentes à negligência grosseira e negligência simples) e à relação destas com a negligência consciente e a negligência inconsciente que, por um lado, “ …a culpa inconsciente poderá ser tão grave ou mais que a consciente se a infracção do dever objectivo de cuidado que supõe, for maior que a realizada com negligência consciente”, por outro lado que, “Tanto pode constituir negligência grave a negligência consciente como a inconsciente, sendo por vezes gravemente negligente empreender uma conduta muito perigosa sem sequer ter-se preocupado em averiguar quais os riscos que a conduta, evidentemente, implica.”.
Sendo assim, como pensamos que é, concluímos que independentemente de a arguida ter actuado com negligência inconsciente ou consciente, o elevado grau de violação do dever de cuidado objectivamente reflectido na factualidade provada, sempre preencheria o conceito de negligência grosseira prevista no art. 137º nº2 do C.Penal, contrariamente à conclusão a que chegou o tribunal recorrido.
Na verdade, do ponto de vista da ilicitude, a acção concreta da arguida deve reputar-se particularmente perigosa, sendo o resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada.
Conduzindo a arguida o seu veículo automóvel e mudando de direcção para a sua esquerda, sem prestar atenção ao trânsito que circulava em sentido contrário, com o que invadiu a faixa de rodagem contrária por onde circulava o motociclo, tão próximo deste que não deu ao condutor tempo de travar e evitar o embate, constitui violação grave das regras estradais (cfr arts 35º, 44º e 145º nº 1 f), todos do C. Estrada), devendo reputar-se elevada a probabilidade de embater em veículo que circulasse em sentido contrário e sendo grande a susceptibilidade de pôr em perigo a vida de quem seguisse nele, designadamente tratando-se de veículo de duas rodas como foi o caso.
Ao nível da culpa, a arguida revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal, pois seguindo numa recta de boa visibilidade, durante o dia e sem que resulte dos autos a verificação de qualquer circunstância que pudesse atenuar a censurabilidade da sua conduta, é dificilmente compreensível – à luz do que será a conduta estradal de um condutor médio - que naquele circunstancialismo a arguida invadisse a faixa contrária e fosse embater no motociclo, quer consideremos que não chegou sequer a ver o motociclo, quer o tivesse visto e confiasse temerariamente (ajuizando ex post factum a partir da forma como ocorreu a colisão - nº4 dos factos provados) que passaria sem embater-lhe.
Concluímos, assim, como aludido, que a arguida agiu com negligência grosseira.

2.2. – Concurso efectivo ou aparente de crimes ?
Tendo ocorrido em consequência do embate a morte de uma pessoa e ferimentos noutra, coloca-se agora a questão de saber se estamos apenas perante um concurso aparente de crimes, também designado concurso de normas, devendo a arguida deve ser punida apenas pelo crime de homicídio por ser o mais grave – como decidido no acórdão recorrido - ou perante um concurso efectivo de crimes, no caso concurso ideal heterogéneo, por se preencherem tipos penais diferentes com a mesma conduta, devendo a arguida ser punida em concurso efectivo por um crime de homicídio negligente e um crime de ofensa à integridade física negligente, como pretende o MP recorrente.
2.2.1. – Súmula das três correntes jurisprudenciais sobre a questão.
Tem-se dividido a jurisprudência dos tribunais em três entendimentos sobre esta mesma questão, todos representados em decisões do STJ.
a) No chamado entendimento tradicional, tem-se considerado que nos crimes negligentes com pluralidade de vítimas e unidade de conduta verifica-se sempre concurso aparente de crimes, isto é, quer se trate de negligência consciente ou inconsciente, sendo o agente punido com a pena prevista no tipo penal mais grave.
Entre muitos, é exemplo desta corrente, o Ac. STJ de 17.12.1997 (Rel. Conselheiro Joaquim Dias) cujo sumário aqui se transcreve integralmente por incluir o enunciado e os fundamentos: do entendimento seguido:

« I - O concurso de crimes corresponde a uma pluralidade de crimes, não necessariamente a uma pluralidade de factos.
Um só facto pode bastar para desenhar a figura do concurso ideal, que o código equipara ao concurso real, perfilhando o critério teleológico. Um só facto pode ofender vários interesses jurídicos ou repetidamente o mesmo interesse jurídico. Se a tais ofensas corresponderem outros tantos juízos de censura, verifica-se o concurso efectivo de crimes - real ou ideal.
II - Portanto, na definição de concurso efectivo de crimes, não basta o elemento da pluralidade de bens jurídicos violados; exige-se a pluralidade de juízos de censura.
III - Ora, o número de juízos de censura é igual ao número de decisões de vontade do agente dos crimes. Uma só resolução, um só acto de vontade, é insusceptível de provocar vários juízos de censura sem desrespeito do princípio ne bis in idem.
IV - Por isso, no concurso ideal, sendo a acção exterior uma só, a manifestação da vontade do agente, quer sob a forma de intenção quer de negligência, tem de ser plúrima: tantas manifestações de vontade, tantos juízos de censura, tantos crimes.
V - Nos termos do artigo 15, do CP, o autor material de um crime culposo viola um dever de cuidado ou diligência, objectiva e subjectivamente. A manifestação de vontade do agente do crime culposo consiste, pois, na omissão voluntária de um dever; não tem por conteúdo o facto e as suas consequências.
VI - Num acidente de viação culposo, a acção voluntária do agente traduz-se no exercício de condução incorrecta, de consequências não previstas mas que se deviam prever.
Sendo uma só a manifestação da vontade e um só o facto ilícito, ainda que de evento plúrimo, o número de juízos de censura não pode ultrapassar a unidade.
VII - A acção negligente do arguido, que, com culpa grave, deu causa ao acidente de que resultou a morte de uma pessoa e ofensas corporais noutras quatro, dirigiu-se exclusivamente à forma de condução. Sobre ele recai, portanto, um só juízo de censura como autor de um crime de homicídio por negligência grosseira. As ofensas à integridade física, porque não fazem parte do tipo de crime, são consideradas para efeitos do disposto na alínea a) do n. 2 do artigo 71 do CP, aumentando o grau de ilicitude do facto.»

b) Uma segunda corrente jurisprudencial encontra-se espelhada no Ac STJ de 8.07.1998, CJ STJ A, VII, T.II/p. 240, (rel. Conselheiro Martins Ramires) que decidiu que ”…em matéria de crimes involuntários praticados com negligência consciente o agente comete tantos crimes quanto os resultados que previu e injustificadamente confiou que não se produziriam”, confirmando a condenação dos arguidos pela autoria, em concurso efectivo, de 3 crimes de homicídio negligente, tantas quantas foram as vítimas.
Em termos de fundamentação escreveu-se aí: « …na definição de concurso efectivo de crimes não basta o elemento pluralidade de bens jurídicos violados; exige-se a pluralidade de juízos de censura.
E como é sabido pluralidade de juízos de censura existe sempre que seja possível desdobrar o elemento da culpa constituído pelo elo psicológico entre o agente e o resultado. Elo que é característico dos crimes dolosos ( …)mas que, embora mais ténue, também existe nas infracções praticadas com culpa consciente (com art. 15º a) do CP), ou seja, nas infracções em que o agente prevê o resultado mas actua confiado em que este não irá acontecer”. p. 240
«Quando o agente não prevê os resultados típicos, por actuar com culpa inconsciente, só é possível formular um juízo de censura por cada comportamento negligente, não tendo, assim, a pluralidade de eventos virtualidade para desdobrar as infracções. » -cfr Ac STJ de 28.10.1997, CJ STJ A. V/T.III p. 212.
Parece ir neste sentido o acórdão recorrido, conforme resulta do trecho que ora se transcreve bem elucidativo das razões do tribunal recorrido: «…em se tratando de crimes involuntários praticados com negligência inconsciente temos alguma dificuldade em dissociar a acção do seu resultado e como tal, não sendo o mesmo previsível ao tempo da acção não é possível punir o agente por mais do que um crime. Só faz sentido punir o agente por mais do que um crime quando ele pudesse ter configurado a possibilidade de da sua acção negligente poder resultar mais do que uma vítima, pois só então é passível de vários juízos de censura, tantos quantos os resultados que previu. De outro modo, o agente teria de ser responsabilizado individualmente por tantos crimes quantos os resultados que adviessem da mesma acção negligente, o que em certos casos, designadamente em matéria de acidentes de viação, significaria uma penalização excessiva, tornando dependente do mero acaso a punição por um ou mais crimes, designadamente do número de ocupantes do veículo contra o qual o agente embate, quando nem sequer o agente configurou a possibilidade de atingir várias pessoas, nem lhe ser exigível que se aperceba do número de ocupantes desse veículo.»

c) Por último, considera-se, como no Ac STJ de 11.11.1998 que, « I. Não há razão válida para se defender que, ainda que só nos casos de negligência inconsciente, o concurso ideal heterogéneo deva ser punido como um único crime.
II. O que se impõe concluir é, antes, que qualquer tipo de concurso ideal – homogéneo ou heterogéneo, doloso ou negligente – se integra na previsão do art. 30º n1do C.Penal vigente, o que significa que o agente, com uma só acção, realiza diversas tipos legais ou realiza diversas vezes o mesmo tipo de crime, independentemente de agir com dolo ou negligência (consciente ou inconsciente), comete tantos crimes vezes quantos os tipos preenchidos ou o número de vezes que o mesmo tipo foi realizado, a punir nos termos do art. 77 daquele Código».No mesmo sentido decidiu-se no Ac STJ de 02.06.1999, igualmente relatado pelo Conselheiro Leonardo Dias (sumários disponíveis em www.dgsi.pt).
Também o Conselheiro Armando Leandro concluiu no mesmo sentido em voto de vencido aposto no Ac STJ de 7.10.98, CJ STJ A. VI, T.III/p.183-186, acórdão este relatado pelo Conselheiro Andrade Saraiva, que decidiu revogar a decisão do colectivo de 1ª instância condenando o arguido como autor de um único crime de negligência, apesar de serem oito as vítimas no que ficou conhecido como o caso da hemodiálise de Évora.
É este o entendimento invocado pelo MP recorrente e que igualmente perfilhamos. pelas razões que, sucintamente, exporemos e que encontramos já em boa parte na sentença confirmada pelo Ac RP de 24.11.2004 (relator: Desembargador Coelho Vieira), acessível em www.dgsi.pt, e no Ac. desta Relação de Évora de 24.06.03 CJ XXVIII, T. III/p. 267, de que é relator o Desembargador Chambel Mourisco, cujo sumário é do seguinte teor:« Nos casos de negligência inconsciente, o que é relevante é determinar se a conduta do agente tinha ou não a virtualidade de produzir os eventos efectivamente verificados e, se tivesse, então sobre tal conduta recaem tantos juízos de censura quantas as lesões jurídicas que devia ter previsto que se produziriam e, efectivamente, se produziram, como consequência adequada das sua omissão.».
Mais recentemente, também o Ac STJ de 22.11.2007, sumariado em www.dgsi.pt entendeu que, “(…) XXVII – Não pode deixar de se considerar que, resultando de um acidente de viação, em que o condutor violou dever objectivo de cuidado, na morte de alguém e ferimentos em duas pessoas, será imputável ao arguido a prática, não de um crime de homicídio por negligência, mas um concurso ideal heterogéneo, dada a comissão, além do homicídio, de mais dois crimes de ofensas corporais involuntárias”
Na doutrina pronunciam-se neste sentido: Pedro Caeiro e Cláudia Santos, RPCC Ano 6º (1996), fasc. 1 p. 127 e sgs, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Vol I p. 114 e Dá Mesquita [5] [6] , Processo «Hemodiálise de Évora»: pluralidade de ofendidos em resultado da violação de um dever de cuidado …, RMP Ano 19º (1999) nº 76 p. 151 sgs, cuja sequência lógico-argumentativa nos parece particularmente adequada a responder às diversas questões suscitadas, quer de índole dogmática, quer do ponto de vista da política criminal.
2.2.2. – Razões da concordância com o entendimento doutrinário e jurisprudencial que considera dever ser punido em concurso ideal – homogéneo ou heterogéneo, consoante os casos - o agente que agindo com negligência (consciente ou inconsciente) causa a morte e/ou ofensas à integridade física em mais que uma pessoa.
a) Desde logo, o art. 30º do C.Penal de 1982 pune em concurso efectivo tanto o chamado concurso ideal como o concurso real, equiparando para este efeito as duas situações: assim, tanto é punido quem com uma só acção preenche diversos tipos penais (ou várias vezes o mesmo tipo), como aquele que o faz por meio de duas ou mais acções. A este respeito refere Eduardo Correia (A Teoria do Concurso, p. 108) que, “…do ponto de vista da dignidade penal não conseguimos descobrir o quid em que reside o «menos» do concurso ideal em face das formas do concurso real de crimes. (…) Tanto num caso como noutro, sendo efectivamente violados vários preceitos legais, são negados também valores jurídico-diversos e autónomos. Quando assim não seja, se substancialmente o conteúdo destes valores coincidir, estar-se-á somente em face de um concurso aparente de leis, ficará, portanto, logo excluída a existência de uma efectiva pluralidade de infracções e já não poderá falar-se em concurso ideal.” Significa isto que, na verdade, as situações de concurso efectivo ideal são negativamente delimitadas pelo concurso aparente de normas, pois neste último caso a uma só conduta corresponde a punição por um só crime contrariamente ao que ocorre com o concurso efectivo ideal.
b) Do ponto de vista da previsão do art. 30º do C.Penal é, realmente, decisiva, a questão de saber se estamos perante concurso aparente de normas, o que implicaria aceitar que ao causar a morte ou ofensa de mais que uma pessoa com a mesma conduta, não se estaria a negar por diversas ou de formas diferentes valores jurídico penais autónomos, mas antes perante a negação de valores que substancialmente coincidem, pelo que apenas há que punir o agente por um só crime. Significaria isto que seria punido por um só crime o agente que com uma só bomba pretendesse tirar a vida a várias pessoas. A especial natureza e regime dos bens jurídicos eminentemente pessoais afasta a hipótese de concurso aparente, pois sempre se tem entendido que aqueles bens devem ser considerados como bens autónomos sempre que radiquem em pessoas diferentes.
Esta conclusão que é pacífica quanto aos crimes dolosos tem sido rejeitada pelo entendimento jurisprudencial tradicional quanto aos crimes negligentes que aqui nos ocupam.
Sem razão, porém, porque também relativamente aos crimes negligentes de homicídio ou de ofensas à integridade física, a especial natureza destes bens jurídicos afasta a hipótese de concurso aparente, na medida em que o concurso efectivo de crimes a que se refere o art. 30º do C.Penal tem lugar também quanto aos crimes negligentes.
É assim, porque apesar de não poder falar-se de um pluralidade de resoluções criminosas com vista a lesar várias vezes o mesmo bem ou diversos bens, com a sua conduta, que nos crimes dolosos determina a pluralidade de crimes, nos crimes negligentes “…é possível censurar a sua conduta por negligente tantas vezes quantas as lesões jurídicas [que ele não quis produzir mas ] que ele devia prever se produziriam e efectivamente vieram a ter lugar”. – E. Correia (pp 109 e 110).
É esta a fundamentação da doutrina e jurisprudência que seguimos e que neste momento explica ainda a razão pela qual não pode aceitar-se que só a conduta e não também o resultado, seja objecto do juízo de desvalor que integra a ilicitude.
c) Na verdade, tanto o crime de homicídio negligente previsto no art. 137º, como o crime de ofensas à integridade física por negligência, previsto no art. 148º, ambos do C. Penal, são crimes materiais ou de resultado e de dano, pelo que no nosso ordenamento jurídico-penal a morte e a ofensa à integridade física fazem parte dos respectivos tipos legais, não as configurando o legislador como meras condições de punibilidade alheias ao núcleo do ilícito típico. Ilícito típico que nestes crimes negligentes que nos ocupam (homicídio e ofensa) abrange, assim, tanto o desvalor de acção, traduzido na violação do dever objectivo de cuidado que enforma a conduta negligente, como o desvalor do resultado, pelo que consistindo este resultado – tipicamente – na violação de bem jurídico eminentemente pessoal, são tantas as negações de valores jurídico-penais autónomos, quantas as pessoas atingidas, o que significa que são tantos os crimes de homicídio negligente e/ou de ofensa á integridade física por negligência, quantas as vítimas.
É irrelevante que estejamos perante negligência consciente ou inconsciente (como sucede in casu), essencialmente por duas ordens de razões. Por um lado, a representação do resultado não é típica, face à remissão geral e implícita que fazem os arts 137º e 148º para o art. 15º do C.Penal, abrangendo, assim, tanto a negligência consciente como inconsciente o que, aliás, é regra, não nos ocorrendo qualquer caso de punição exclusiva da negligência consciente. Por outro lado e em consequência, o critério de distinção entre unidade e pluralidade de infracções nos crimes negligentes não passa pela representação do resultado típico como sucede com os crimes dolosos, mas antes pela sua previsibilidade (cfr supra E.Correia, ob. e loc. cit.).
d) Também do ponto de vista das regras da punição, o nosso modelo de punição do concurso efectivo é garantia suficiente de que à pluralidade de crimes e penas parcelares não corresponde uma pena única desproporcionada face ao carácter negligente da conduta, pois sempre a medida da pena única será encontrada de acordo com a globalidade dos factos e da personalidade do agente. Veja-se como exemplo prático desta asserção o voto de vencido do Conselheiro Armando Leandro ao Acórdão de 7.10.1998 (caso hemodiálise Évora), que é do seguinte teor: “ Vencido em parte: confirmaria a condenação do arguido recorrente …pela autoria material de oito crimes de homicídio negligente e na pena de um ano de prisão por cada um deles.; reduziria, porém, a pena única para o quantum ora fixado, ou seja, para dezoito meses de prisão, cuja execução seria suspensa nos exactos termos em que o faz o acórdão).”
Apesar de o acórdão ter condenado o arguido como autor de um só crime de homicídio por negligência inconsciente p. e p. pelo art 136º nº1 do C.Penal de 1982, a pena teria igual medida (sendo igualmente substituída por prisão suspensa) de acordo com o voto de vencido. Embora, obviamente, não retiremos daqui a conclusão que a pena deve será a mesma, quer se puna em concurso efectivo ou em concurso aparente – nem sequer tendencialmente -, o exemplo apenas pretende ilustrar que não tem razão de ser a ideia que a punição será desproporcionadamente agravada por se decidir pelo concurso efectivo de crimes no caso de pluralidade de vítimas em resultado de conduta negligente.
2.2.3. – Concede-se, pois, provimento ao recurso do MP também nesta parte pelo que a arguida vai condenada por dois crimes em concurso efectivo. A conduta da arguida encontra-se por demais caracterizada nos autos a propósito da morte do condutor do motociclo, discutindo-se no presente recurso apenas o carácter grosseiro da negligência, para efeitos do disposto no art. 137º do C.Penal, o que foi já objecto de decisão, sendo certo que aquela forma de negligência não é aplicável à ofensa á integridade física, conforme apreciado e expressamente afastado por Faria Costa, com quem concordamos (cfr ob. cit. p. ).
Assim, deve a arguida ser condenada ainda como autora de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art. 148º do C.Penal, na pessoa de C… que seguia como passageiro do motociclo embatido e, em consequência da colisão, sofreu traumatismo do membro inferior direito com ferida inciso-contusa da perna e ferimentos superficiais no pé, lesões estas que lhe determinaram um período de doença por 8 dias, sendo os primeiros quatro dias com incapacidade para o trabalho, conforme descrito sob o nº6 da factualidade provada.
2.3.. – Da medida concreta das penas parcelares.
Impõe-se agora decidir da pena a aplicar pelo crime de homicídio por negligência grosseira que o art. 137º nº 2 pune com pena abstracta de prisão até 5 anos, bem como à determinação concreta da pena a aplicar pelo crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art. 148º do C. Penal com prisão até um ano ou multa até 120 dias.

2.3.1. – Homicídio negligente.
Face à nova qualificação jurídica dos factos a que se procede, são essencialmente duas as diferenças verificadas no que respeita à pena parcelar a aplicar à arguida pela prática do crime de homicídio negligente. A moldura penal é agora de um mês a 5 anos de prisão (em vez de 1 mês a 3 anos de prisão), não prevendo multa em alternativa. Por outro lado, na medida concreta da pena não pode considerar-se agora terem sido causadas lesões físicas no jovem passageiro entre as consequências não típicas da conduta da arguida, pois aquelas lesões integram os elementos constitutivos de um crime de ofensa á integridade física, a punir em concurso efectivo, como decidido.
Assim, ter-se-ão em conta as seguintes circunstâncias que não fazendo parte do tipo depõem contra a arguida:
- No que respeita ao grau de ilicitude do facto e suas consequências, releva sobretudo o maior desvalor do resultado traduzido na juventude da vítima mortal – 17 anos de idade – e no sofrimento concretamente causado nos seus familiares, conforme se refere também na sentença recorrida;
Em sentido favorável à arguida:
- Estarmos perante negligência inconsciente pois, sendo a típica a negligência grosseira, seria ainda mais grave que a arguida tivesse previsto a morte do jovem condutor como consequência possível da sua conduta estradal e, ainda, assim tivesse desprezado a inevitabilidade (objectivamente verificada) do embate e a elevada probabilidade de verificação do resultado morte;
- As condições pessoais da arguida, designadamente a inserção familiar e profissional, bem como a ausência de antecedentes criminais e o abalo psicológico que sofreu em consequência do acidente, relativamente ao qual se escreve no relatório psicossocial: “Os factos em causa …suscitaram grande pressão e instabilidade emocional à arguida que expressa um sentimento de penosidade face aos mesmos. Revela sentido crítico e noção das repercussões dos seus actos em terceiros”. (cfr fls 392). As necessidades de reinserção social não poderem aferir-se neste tipo de criminalidade em termos semelhantes às colocadas noutras áreas da criminalidade (v.g. crimes dolosos em geral), pois a um quadro pessoal, económico e social estabilizado não correspondem necessariamente menores necessidades de consciencialização das consequências da sua conduta – nomeadamente estradal - face a terceiros. O quadro de segurança e conforto do agente pode levar, antes, ao adormecer da consciência crítica sobre os efeitos das suas opções na vida dos outros e à necessidade de alterar comportamentos como forma de prevenir a lesões dos bens jurídicos tutelados penalmente.
No caso concreto não é, pois, tanto a situação pessoal e familiar que torna menores as necessidades de ressocialização, na sua vertente de socialização positiva, – como se diz na sentença recorrida – mas antes a sua atitude perante os factos tal como resulta do relatório social aludido, na medida em que a mesma aponta para uma menor necessidade de pena, desde logo do ponto de vista do seu carácter aflitivo: a arguida sofre com as consequências dos seus actos, o que significa memória dos mesmos e consciência da vantagem psicológica [7] em evitar a sua repetição. Por outro lado, a situação pessoal e familiar da arguida afasta a aplicação de pena muito elevada e, antecipando o momento, posterior, de escolha de pena de substituição, aponta no sentido da adequação da substituição da prisão por pena não privativa da liberdade na medida em que aquela assumiria feição claramente dessocializadora no caso presente.
Entendemos, pois, que a pena de 2 anos e 6 meses de prisão preconizada pelo MP na sua motivação de recurso mostra-se ajustada a satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial presentes no caso, situando aquém do limite representado pela sua culpa, pelo que é esta a medida concreta fixada.
2.3.2. Pena a aplicar pelo crime de ofensa à integridade física negligente.
Já quanto à pena a aplicar por este crime, carece de fundamentação e de fundamento a aplicação da pena privativa de liberdade – em detrimento da pena de multa prevista em alternativa no tipo legal – e a sua determinação pelo limite máximo: 1 ano de prisão –, preconizadas pelo MP recorrente.
a) Nos termos do art. 70º do C.Penal que, na versão em vigor desde a Revisão de 1995, mantém a opção originária do C.Penal em 1982 pela pena não privativa da liberdade, [8] “ Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.
Significa isto, que o tribunal deve dar preferência à pena de multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de ressocialização, no caso concreto, e deve preteri-la na hipótese inversa.
Na verdade, vimos entendendo que não obstante o art. 70º do C.Penal constituir afloramento claro e significativo do princípio incontroverso da preferência pela pena não privativa da liberdade em todos os casos em que a opção é possível para o julgador, a alteração verificada em 1995 na sua letra (foi acrescentada a expressão em alternativa) e a repetição da locução final (realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”) nos actuais art.s 48º, 50º e 58º, todos do C.Penal, parecem reflectir o propósito de que aquela norma funcione sobretudo como regra de escolha da pena principal.
Ora, na sua concreta formulação, o artº 70º deixa claro que, no momento de escolha da pena principal, o que o julgador terá que avaliar é se a pena de multa prevista no tipo legal realiza suficientemente as finalidades preventivas das penas, sem cuidar de contrapor-lhe, nesse momento, a eventual necessidade de impor o cumprimento da pena privativa de liberdade prevista, em alternativa, no tipo.
Isto é, a opção neste momento - nesta fase de escolha da pena principal - pela pena de prisão, não é sinónimo de opção pela execução ou cumprimento da pena privativa de liberdade [9] , pois no nosso sistema de escolha e determinação da pena, as restantes penas alternativas à prisão são penas de substituição, o que significa que as mesmas apenas são aplicáveis depois de escolhida e concretamente determinada a medida da pena principal privativa de liberdade, sendo nessa altura que terá de avaliar-se da necessidade de sujeitar o condenado ao efectivo cumprimento da mesma.
Daí que neste momento apenas haja que decidir se a pena de multa até 120 dias prevista no tipo é suficiente e adequada ou se o não é por razões de prevenção geral positiva ou prevenção especial.
A nosso conclusão é que relativamente ao crime de ofensa à integridade física em apreço, não há razões atinentes às finalidades das penas que nos levem a afastar a opção legal de princípio pela pena não privativa da liberdade, pois esta mostra-se suficiente e adequada em atenção, sobretudo, às seguintes razões:
- Do ponto de vista do grau de ilicitude do facto e das suas consequências, não podem reputar-se especialmente extensas ou intensas as lesões sofridas (traumatismo do membro inferior direito com ferida na perna e ferimentos superficiais no pé), que determinaram 8 dias de doença, sendo 4 de incapacidade para o trabalho, pelo menos do ponto de vista das necessidades de prevenção geral positiva; ainda no âmbito da ilicitude mas perspectivando a conduta da arguida a partir do desvalor da acção, vai este em sentido favorável à arguida porquanto estamos perante um caso de concurso ideal em crime negligente, não podendo levar-se à conta da maior ou menor perigosidade da sua conduta os ferimentos no jovem, enquanto mero passageiro do motociclo.
Por outro lado, valem aqui as considerações expendidas supra a propósito da relação entre a situação pessoal e social da arguida e as necessidades de prevenção especial positiva no caso concreto, que não implicam, de modo algum, a preterição da pena principal e multa prevista no tipo penal.
b) Quanto à determinação concreta da pena de multa, como é sabido, o Código Penal de 1982 adoptou o chamado modelo ou sistema de dias-de-multa, na designação do Prof. F. Dias, segundo o qual a determinação concreta desta pena faz-se, no essencial, em dois momentos distintos, obedecendo as respectivas operações a diferentes critérios e teleologia.
Na primeira dessas operações, ou seja, na fixação do número de dias de multa, atendem-se igualmente aos factores de determinação da pena estabelecidos no nº1 do art. 71º do C. Penal (cfr art. 47º nº1 do C. Penal) já apreciados e confrontados supra entre si, no sentido favorável e desfavorável à arguida. Assim, considerando por um lado o menor grau de ilicitude do facto resultante em larga medida do menor desvalor da acção no que a este crime respeita (que não se confunde com o juízo formulado a propósito do crime de homicídio) e as necessidades de prevenção especial que, por um lado, apontam para a afirmação da gravidade das consequências dos seus actos e a necessidade de não os repetir no futuro (necessidades positivas de socialização) e o propósito de reduzir ao indispensável a dessocialização inerente à pena, consideramos ajustada a pena de 80 dias de multa.
No que respeita à segunda das operações implicadas, isto é, à fixação do quantitativo diário, genericamente estabelecido no art. 47º nº2 do C.Penal, entre 1 e 498,80, Euros à data dos factos e entre 5 e 500 € na sua redacção actual, introduzida pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro, relevam os seguintes factos:
-“11. A arguida trabalha como contabilista auferindo mensalmente 650€ e fora do seu horário de trabalho está a concluir o 3º ano do curso de gestão na Faculdade de Portimão. Vive com o marido e um filho menor de 8 meses de idade.”
Devendo o quantitativo diário ser estabelecido em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais (cfr art. 47º nº1 C.Penal), de acordo com os limites legalmente fixados à data dos factos (vd supra) [10] , julgamos ajustado o quantitativo diário de 10 €.
Vai, assim, a arguida condenada na pena de 80 dias de multa à razão diária de 10 €, pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, na pessoa de C. ….
2.3.3. – Referência ao concurso de penas e à substituição das penas principais por pena de substituição.
a) Tendo em conta que as penas aplicadas pelo crime de homicídio e pelo crime de ofensa à integridade física são de espécies diferentes (prisão suspensa na sua execução e multa), não há cúmulo jurídico destas penas, mpois o legislador não consagrou o necessário critério legal de conversão – cfr art. 77º nº 3 C. penal.
Por outro lado, não se verificam os pressupostos formais da substituição da pena de multa por Admoestação que, em todo o caso, não se ajustaria às finalidades de prevenção geral positiva presentes no caso, pelo que apenas relativamente à pena de prisão há que fazer referência à substituição por prisão suspensa na sua execução.
b) Relativamente à suspensão da execução da pena decidida em 1ª Instância e não impugnada, mantém-se a mesma, tanto no que respeita ao período de suspensão como no que concerne à condição fixada, não havendo sequer que ponderar qualquer modificação por via das alterações introduzidas no regime legal em 2007, designadamente quanto ao período de suspensão, pois encontrando-se este fixado de modo conforme com o actual nº5 do art. 50º do C.Penal, não está em causa a eventual aplicação oficiosa de Lei Nova mais favorável ao arguido.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP, substituindo-se a decisão condenatória recorrida nos seguintes termos:
- Vai a arguida, A. …, condenada pela autoria, em concurso efectivo ideal heterogéneo, de:
- Um crime de homicídio por negligência grosseira p. e p. pelo art.º 137º nº 1 e 2 do C. Penal na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, na condição de a arguida pagar à Associação Para a promoção da Segurança infantil (APSI), com sede na Vila Berta nº 7, r/c Esq. Em Lisboa, a quantia de 600 €, no prazo de 3 meses e
- De um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148º, nº1do C. Penal, na pena de 80 dias de multa à razão diária de 10 €.
Sem custas
Évora, 18 de Novembro de 2008
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Maria Guilhermina Vaz Pereira Santos de Freitas)




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[1] Cfr Comentário Conimbricense, T.I, p. 113.
[2] Vd trecho supra transcrito:
“Ao chegar a um entroncamento, a arguida decidiu mudar de direcção para a sua esquerda. Fê-lo sem atentar no trânsito que circulava em sentido contrário e sem se certificar que de tal manobra resultaria embaraço para o trânsito, acabando por não ceder a passagem ao motociclo que circulava na via onde a arguida pretendia entrar. Contudo, não se provou que a arguida se tenha apercebido que o motociclo circulava na mesma estrada, na faixa de rodagem onde a arguida pretendia entrar, o que seria fulcral para caracterizar o tipo de negligência.
O factualismo assente apenas permite concluir que a arguida conduziu de forma desatenta e descuidada mas já não que tenha conduzido com elevado desrespeito das regras de condução estradal nem que a sua atitude revele “uma atitude particularmente censurável de descuido perante o comando jurídico-penal”.
[3] Cfr José de Faria Costa, Direito Penal Especial, Coimbra Editora, 2004 p. 95.
O trecho transcrito em texto conclui uma passagem mais ampla que termina assim: “será, com efeito, assim, sempre que a probabilidade de ocorrência daquele resultado se apresenta de tal modo evidente que o cidadão comum, medianamente consciente e cumpridor dos comandos normativos, teria, dde forma clara, evitado a conduta violadora do dever de cuidado. Caberão assim equivocamente na categoria da negligência grosseira (…) também os casos em que, por força de um alto e inqualificável teor de imprevisão, forem desrespeitadas as mais evidentes regras de cuidado de perigo para com o Outro.”
[4] Cfr Drecho Penal. parte General. 5ª ed. pp. 270-1
[5] Só por lapso se referirá na motivação do recorrente que Dá Mesquita conclui que “…em matéria de crimes involuntários praticados com negligência consciente o agente cometeu tantos crimes quanto os resultados que previu …”, pois é claro o seu entendimento de que à pluralidade de crimes é indiferente o carácter consciente ou inconsciente da negligência, enfatizando mesmo e a nosso ver com razão, que “ Não se vislumbra (…)em que medida para a construção judiciária desse tribunal superior releva que o crime tenha sido cometido com negligência consciente ou inconsciente - já que, ao que pensamos, ninguém contesta que é indiferente para a imputação de uma pluralidade de delitos dolosos que estes tenham sido cometidos com dolo directo, necessário ou eventual.
(…) para o preenchimento dos tipos de crime previstos pelas normas é, tão só, necessário que o agente tenha agido com negligência definida no art. 15.º, do CP -, esta irrelevância do elemento intelectual da negligência para a questão da unidade ou pluralidade de infracções ainda é mais evidente à luz de uma perspectiva neo-clássica que trata a negligência ao nível da culpa, depois da tipicidade e da ilicitude.”
E mais adiante “ … ao contrário do que se insinua nalguns dos acórdãos citados, e se afirma de forma expressa no acórdão de 8-7-1998 (o qual é, contudo, contraditado pelo acórdão de 21-1-1998, do mesmo relator), o facto de o agente ter actuado com negligência consciente ou inconsciente não pode ser determinante no tratamento de um concurso de crimes. Como sublinhámos supra, o problema é da aplicação plúrima da norma de homicídio negligente a uma só acção (ou a uma só violação de um dever de cuidado) com vários eventos de morte, e essa norma é aplicável a qualquer conduta negligente que origine a morte de outrem independentemente da previsão efectiva desse perigo.”.
[7] Como impressivamente descreve Roxin, a propósito as finalidades de prevenção das penas « Imaginava-se a alma do delinquente potencial que havia caído em tentação como um campo de batalha entre os motivos que o empurravam para o delito e os que lhe resistiam. (..); no manual de Feuerbach, [continua o autor] pode ler-se um resumo exacto daquela concepção, tanto racionalista como determinista:
- “ Todas as infracções têm o seu fundamento psicológico na sensualidade, até ao ponto em que a faculdade de desejo do homem é incitada pelo prazer da acção de cometer o facto. Este impulso sensitivo pode suprimir-se ao saber cada um que com toda a segurança o seu acto será seguido de um mal inevitável [ a pena] que será maior que o desagrado resultante do impulso não satisfeito pela comissão..”. » - cfr Roxin: 1999, 90 (traduzido livremente do castelhano).
[8] A pena privativa de liberdade como última ratio da política criminal constitui um dos princípios caracterizadores do movimento de reforma penal em Portugal ( que culminou com a entrada em vigor do C.Penal de 1982), e que se insere no âmbito mais vasto do movimento internacional de reforma penal, assente num fundo político-criminal comum, de que podem salientar-se os seguintes princípios: …” restrição do âmbito e da frequência de aplicação das penas privativas da liberdade; luta decidida contra as penas de prisão de curta duração, conducente à sua substituição, na generalidade ou mesmo na totalidade dos casos, por penas não detentivas ou não institucionais; enriquecimento da panóplia e aumento sensível do campo e da frequência de aplicação das penas não detentivas, em particular da pena de multa; tentativa de limitar, por todos os meios, o efeito estigmatizante – e consequentemente criminógeno – das reacções criminais …”. – Cfr F.Dias:1993 p. 50-1.
[9] Apelando aos critérios de conveniência e adequação para escolha da pena principal, a que igualmente se referem F.Dias:1993, 363-4 e M. João Antunes: 2001, 710, refere a Professora Anabela Rodrigues que, “a opção pela aplicação de uma ou outra pena à disposição do tribunal não envolve um juízo, feito em função das exigências preventivas, sobre a necessidade da execução da pena de prisão efectiva – que o juiz sempre terá de demonstrar para fundamentar a aplicação da prisão -, mas sim um juízo de maior ou menor conveniência ou adequação de uma das penas em relação à outra, em nome da realização das referidas finalidades preventivas.”- cfr A.Rodrigues:1999, 664
[10] No caso concreto é a lei vigente à data dos factos a mais favorável ao arguido, no que respeita à determinação da pena (onde ocorreram alterações), pois o limite legal foi aumentado em 2007 e não se verificaram outras alterações relevantes que pudessem sobrepor-se ao efeito desfavorável desse aumento. – cfr art. 2º n4 do C.Penal.