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IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Sumário
I - A caducidade do registo da penhora que havia sido ordenada num processo executivo não se confunde com a caducidade ao exercício do direito de impugnação do acto celebrado em prejuízo dos autores na acção de impugnação pauliana.
II - A impugnação pauliana não tem a natureza de uma acção anulatória, consistindo antes o pedido na declaração de ineficácia do acto impugnado pelo credor prejudicado, respondendo os bens transmitidos pelas dívidas do alienante, agora no património do adquirente, na medida do interesse do credor, após procedência da impugnação.
III - A impugnação pauliana enquadra-se nos meios conservatórios da garantia patrimonial. O impugnante é apenas titular de um direito de crédito, que se consubstancia no direito à restituição de determinado valor perante o terceiro a quem o devedor alienou os bens, não colocando em causa a validade do negócio de alienação, o que significa que, triunfando a impugnação, a "ineficácia da doação relativamente ao impugnante" atribui apenas ao credor o direito de obter à custa do bem alienado a satisfação do seu crédito.
Texto Integral
* PROCESSO Nº 1958/08-3 * ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA *
“A” e mulher “B” instauraram, no Tribunal de …, acção pauliana contra “C”, “D” e mulher “E”, casados no regime da comunhão de adquiridos, tendo alegado, no essencial, que a ré “C” foi condenada a pagar aos autores a quantia de 5.151,60 euros, por danos patrimoniais, tendo sido instaurado um processo executivo para cobrança dessa quantia e juros, no qual foram nomeados à penhora o recheio da habitação da executada e dois prédios mistos denominados "…".
O recheio da habitação é de valor inferior a 1.000,00 euros, sendo o valor dos dois prédios superior a 10.000,00 euros.
Após a penhora dos dois prédios, souberam os autores que a ré “C” os havia doado ao réu “D”, seu filho, que os registara a seu favor, declarando este no processo executivo que tais prédios eram sua propriedade e requerido a caducidade da penhora, tendo o senhor juiz encaminhado as partes para os meios comuns.
Não sendo conhecidos outros bens penhoráveis à ré “C”, a doação teve em vista prejudicar os autores, obstando a que estes obtivessem pagamento da indemnização arbitrada em processo judicial.
Terminam a pedir que se reconheça aos autores o direito de executar no património dos réus “D” e mulher “E” os dois referidos prédios mistos para realização do seu crédito.
Os réus contestaram por excepção e por impugnação.
Dizendo contestar por excepção, invocaram:
- que os autores não podem executar o património dos réus “D” e mulher, por terem deixado caducar as inscrições de penhora, provisórias por natureza, que incidiam sobre os dois prédios;
- que a doação efectuada pela ré “C” incidiu sobre a quota disponível que detinha na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais, e não sobre os dois prédios mistos;
- que os autores podem executar o seu crédito sobre a legítima da ré “C” na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais.
Por impugnação, referiram, em súmula, que a doação é anterior ao trânsito da sentença que condenou a ré “C” no pagamento da indemnização aos autores e que a doação teve em vista permitir a candidatura do réu “D” a fundos comunitários de florestação de terras agrícolas, estando então desempregado e com dificuldade em encontrar emprego, por causa da idade.
Os autores replicaram no sentido da improcedência das excepções.
No despacho saneador, para além do mais, relegou-se para final o conhecimento das excepções aduzidas e procedeu-se à selecção da matéria de facto relevante.
Após julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, declarando-se ineficaz a doação denominada "doação de quinhão hereditário", correspondente à escritura pública outorgada no dia 13 de Outubro de 2004, no Cartório Notarial de …, quanto às pessoas dos autores, e no que toca aos dois prédios mistos denominados "…", permitindo-se que os autores executem tais bens que integram o património dos réus “D” e mulher “E”.
Inconformados, os réus “C” e “D” apelaram, tendo alegado e formulado as conclusões que se transcrevem:
1ª. A sentença de fls. 418 a 430 ao não considerar a existência das excepções alegadas pelos réus na contestação, está em contradição com o douto despacho saneador a fls. 256 quando este expressamente admite a existência das excepções, sem as conhecer directamente por necessidade da causa prosseguir para produção suplementar de prova.
2a. A Mmª. Juíza a quo, na sentença, não toma em consideração nem retira consequências dos factos provados nos pontos 2.,3., 7., 8. e 9. a fls. 420 e 421.
3a. Na sequência da notificação do despacho do Mmº. Juiz que remeteu os interessados para os meios comuns, em cumprimento do disposto no n° 4 do artigo 119° do C.R.P., os autores deveriam ter intentado acção declarativa e procedido ao seu registo nos 30 dias seguintes de acordo com o n° 5 do mesmo artigo e 92° n° 5 do C.R.P., a fim de manter em vigor a inscrição da penhora provisória por natureza em cada um dos dois prédios identificados no ponto 3. dos factos provados.
4a. Permitindo que, em caso de procedência da acção declarativa, fosse convertida a inscrição da penhora provisória por natureza em cada um dos dois prédios identificados no ponto 3. dos factos provados, de acordo nº 6 do artigo 119° do C.R.P.
5a. Mas ao não intentaram a acção declarativa no prazo de 30 dias, os autores permitiram que a inscrição da penhora provisória por natureza em cada um dos dois prédios caducasse, conforme ponto 9. dos factos provados.
6a. Os autores por acto de vontade própria desistiram da inscrição da penhora provisória por natureza nos dois prédios, porque poderiam ter intentado acção declarativa de reconhecimento de propriedade contra o titular da inscrição (subrogatória em relação à executada) e ainda intentar acção de impugnação pauliana contra os 2°s réus que declararam que o direito penhorado lhes pertencia.
7ª. Pelo que não se verifica a impossibilidade para os autores de obter a satisfação do seu crédito, requisito da impugnação pauliana previsto no nº 2 do artigo 6100 do C.C.
8ª. Estando por isso vedado aos autores a interposição da impugnação pauliana nos termos em que o fizeram.
9a. Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência revogada a sentença de fls, 418 a 430.
Os autores contra-alegaram a pugnar pela confirmação da sentença.
Os Exmºs Desembargadores Adjuntos tiveram visto nos autos.
São os seguintes os factos que a 1ª instância deu como provados, que se consideram assentes, dado que não se mostram impugnados, nem existe fundamento para os alterar, nos termos do n° 1 do artigo 712° do CPC:
1. No âmbito da acção registada sob o nº … que correu seus termos pelo 2° Juízo deste Tribunal, a ré “C” foi condenada a pagar aos autores “A” e “B” a indemnização de 5.151,60 euros, por danos patrimoniais que lhes causou, decisão essa que transitou em julgado em 06 de Junho de 2005, após confirmação da sentença proferida em 1ª instância com data de 15 de Julho de 2004, a qual havia sido notificada em 02 de Agosto de 2004.
2. Em 27/10/2004, “A” e “B” propuseram uma acção executiva contra “C” que corre termos sob o nº … do 2° Juízo do Tribunal Judicial de …, reclamando o pagamento da quantia em dívida - 5.151,60 euros -, acrescida de juros suplementares compulsórios à taxa anual de 5% até integral e efectivo pagamento.
3. No âmbito dessa execução, os autores nomearam à penhora o recheio da casa de habitação da 1ª ré e dois prédios mistos, sitos ou denominados "…", freguesia da …, concelho de …, descritos na C.R.P. de … sob os nºs 01064/090402, inscrito na matriz, a parte rústica sob o art°. 153° da Secção F e a parte urbana sob o artº. 394° e, 012371120504, inscrito na matriz, a parte rústica sob o artº. 154° da Secção F, a parte urbana sob o artº. 391°.
4. Em 13 de Outubro de 2004, no Cartório Notarial de …, foi lavrada a escritura pública denominada "Doação de Quinhão Hereditário" documento junto a fls. 5-6 cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, instrumento através do qual a ré “C” disse doar a “D” por conta da quota disponível o quinhão hereditário que lhe pertencia na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais “F” e “G”, acto que este disse aceitar.
5. “D” nasceu em 23/0811957, é filho de “H” e de “C” e está casado com “E”.
6. “D” é filho único de “C”.
7. No âmbito da referida execução, uma vez efectuada a penhora, em sede de registo, o acto de apreensão foi lavrado a título provisório por natureza, uma vez que os prédios se encontravam registados a favor de “D”, casado com “E”, aquisição essa que teve a sua origem na doação referida em 4) (al. G) dos factos assentes).
8. Cumprido o disposto no artigo 119°, n° 4 do Código do Registo Predial, ao ser citado, “D” declarou que os aludidos prédios lhe pertenciam e, com esse fundamento foi proferida decisão que remeteu os interessados para os meios comuns.
9. Foi comunicada à Conservatória do Registo Predial a não instauração de qualquer acção declarativa no prazo de 30 dias, da notificação da declaração mencionada em 8., tendo sido averbada a inerente declaração de caducidade às inscrições que incidiam sobre os prédios atrás indicados (registos de penhora).
10. No âmbito da execução foi tentada a penhora de depósitos bancários e as informações bancárias obtidas comunicaram a inexistência de contas abertas em nome de “C”.
11. “C” auferia, em 21/11/2005, uma pensão de reforma no valor de 398,36 euros.
12. “C” é filha de “G” e “F”.
13. “F” e “G” faleceram, respectivamente, no dia 04/01/1975 e 09/03/1989, e foram casados no regime de comunhão geral de bens.
14. Pela ap. 120177 e cota G-1, foi inscrito a favor de “C”, por partilha da herança aberta por óbito de “F”, a aquisição do direito de propriedade do prédio misto, denominado "…" com 1,1500 ha, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, oliveiras, cultura arvense e dependência e parte urbana, composto por casa de habitação, a confrontar a norte com …, a sul com terreno baldio, a nascente com … e a poente com …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 154 da Secção F e urbana sob o artº. 391 ° da freguesia da …, concelhos de …, descrito na C.R.P. de … sob o n° 012371120504.
15. Pela ap. 121110177 e cota G-l, foi inscrita a favor de “C”, por partilha da herança aberta por óbito de “F”, a aquisição do direito de propriedade do prédio misto, denominado "…", com 3.5500 ha, composto por olival, sobreiros, oliveiras, olival e pastagem e parte urbana, composto por casa de habitação, com quatro compartimentos térreos e forno de cozer pão, inscrito na matriz predial rústica sob o artº. 153° da Secção F e urbana, sob o artigo 394°, da freguesia de …, concelho de …, descrito na C.R.P. de … sob o n° 01064/090402.
16. O recheio da casa de habitação da 1ª ré é composto por mobílias diversas, nomeadamente, de quarto, sala e cozinha, usadas e antigas, com o valor global de, sensivelmente, 820 euros.
17. Os referidos prédios valem, sensivelmente, valor um pouco superior a 40.000 euros.
18. À “C” não são conhecidos quaisquer outros bens, com excepção do recheio da casa de habitação e da pensão de reforma.
19. Os prédios em causa eram os únicos bens com valor suficiente para com o produto da venda possibilitarem aos autores o pagamento do crédito que têm sobre a ré “C”.
20. A ré “C”, ao efectuar a doação referida em 4. a “D” e este ao aceitar esse acto actuaram com o propósito de evitar que esta pagasse aos autores a quantia reclamada pelos autores.
21. O réu “D” esteve desempregado, desde pelo menos, 16/03/2004 e à data tinha 47 anos de idade, aproximadamente, idade em que já começa a ser difícil encontrar emprego.
Sendo as conclusões que delimitam, como é regra, o objecto do recurso, são três as questões a decidir:
- se, na sentença, foram conhecidas as excepções, assim apelidadas pelos réus, na contestação;
- se tais excepções podem proceder;
- se estão verificados os requisitos da acção de impugnação pauliana.
Vejamos:
Como anteriormente ficou indicado, os réus invocaram na contestação, a título de excepção:
- que os autores não podem executar o património dos réus “D” e mulher, por terem deixado caducar as inscrições de penhora, provisórias por natureza, que incidiam sobre os dois prédios;
- que a doação efectuada pela ré “C” incidiu sobre a quota disponível que detinha na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais, e não sobre os dois prédios mistos;
- que os autores podem executar o seu crédito sobre a legítima da ré “C” na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus pais.
Ora, só a primeira matéria consubstancia excepção (de caducidade do exercício do direito), que foi apreciada devidamente na sentença, no sentido da irrelevância da alegada caducidade do registo da penhora.
E assim é, porquanto a caducidade do registo da penhora que fora ordenada no processo executivo não se confunde com a caducidade ao exercício do direito de impugnação do acto celebrado em prejuízo dos autores.
Nenhuma dúvida pode subsistir a esse respeito: tendo caducado o registo da penhora, nenhuma influência acarreta no que tange ao exercício do direito dos autores que funda a impugnação pauliana.
Na verdade, caducou o registo da penhora - lavrado a título provisório por natureza, uma vez que os prédios não estavam registados em nome da executada “C”, mas do réu “D” mas tal não impõe, como é evidente, a caducidade ipso facto da presente acção de impugnação pauliana, que está apenas sujeita ao prazo de caducidade de 5 anos, de acordo com o artigo 6180 do Código Civil (o qual não transcorreu, dado que a acção foi proposta a 9 de Janeiro de 2006 e o acto impugnado é de 13 de Outubro de 2004).
As duas outras questões não integram matéria de excepção, enquadrando-se antes nos requisitos gerais da impugnação pauliana, apreciados na sentença recorrida.
Importa, então, atentar no preenchimento dos requisitos.
Como se sabe, a impugnação pauliana, cujo regime legal encontra previsão nos artigos 610° e seguintes do Código Civil, não tem a natureza de uma acção anulatória, consistindo antes o pedido na declaração de ineficácia do acto impugnado pelo credor prejudicado (cf. Vaz Serra, BMJ n° 99, págs. 280 e seguintes e RLJ ano 111°, pág. 154; ac. STJ 28.3.96, BMJ 455-498; ac. STJ 25.2.97, BMJ 464-517; ac. STJ 19.11.98, BMJ 481-405), respondendo os bens transmitidos pelas dívidas do alienante, agora no património do adquirente, na medida do interesse do credor, após procedência da impugnação.
No caso que se aprecia, verifica-se que, em resultado da doação - acto impugnado - os dois prédios foram registados a favor do réu “D”.
Como salienta Henrique Mesquita (RLJ, ano 128°, pg. 254), da procedência da acção "não resulta a extinção do direito real adquirido pelo terceiro, nem tão pouco a sua modificação. Trata-se de uma acção pessoal cuja procedência não afecta a validade dos actos de alienação realizados pelo devedor e apenas confere ao credor impugnante, no plano obrigacional e com fundamento na má fé (tratando-se de negócios onerosos) ou no locupletamento (tratando-se de negócios gratuitos) do terceiro adquirente, o direito de obter deste, à custa dos bens que adquiriu, a quantia necessária à satisfação do crédito".
Ou seja, enquadrando-se a impugnação pauliana nos meios conservatórios da garantia patrimonial, o impugnante é apenas titular de um direito de crédito, que se consubstancia no direito à restituição de determinado valor perante o terceiro a quem o devedor alienou os bens, não colocando em causa a validade do negócio de alienação, o que significa que, triunfando a impugnação, a "ineficácia da doação relativamente ao impugnante" atribui apenas ao credor o direito de obter à custa do bem alienado a satisfação do seu crédito.
Assim, na impugnação pauliana - e sendo o acto de transmissão gratuito, conforme se configura da situação dos autos - aos autores cabia alegar e provar a existência do seu crédito, a realização pelo devedor do acto de diminuição da sua garantia patrimonial e a anterioridade do seu crédito relativamente ao acto impugnado, cabendo ao devedor e ao terceiro adquirente provar que à data do acto impugnado era possível a satisfação integral do crédito dos autores (cf arts. 610°, 611° e 612° n° 1 do CC).
ln casu, os autores fizeram prova da existência do seu crédito e da anterioridade do mesmo relativamente ao acto impugnado (o crédito dos autores foi reconhecido por sentença de 15 de Julho de 2004 e a escritura de doação foi lavrada a 13 de Outubro de 2004).
Doutro passo, os réus não lograram provar que era possível a satisfação do crédito dos autores, independentemente da doação.
Os apelantes invocam ainda que a doação teve por objecto a quota disponível da doadora (a ré “C”) na herança líquida e indivisa aberta por óbito de seus pais, mas o certo é que o beneficiário da doação (o réu “D”) logrou proceder ao registo dos dois prédios a seu favor na Conservatória do Registo Predial, em resultado de aquisição, por doação, sem que tenha sido arguida a falsidade do acto registal.
Por isso, haverá que concluir que foi o acto impugnado que transferiu para o réu “D” o direito real correspondente à propriedade dos dois prédios.
Pelo exposto, mostrando-se verificados os requisitos da impugnação pauliana, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Évora, 20 de Novembro de 2008