TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
Sumário


I – O Tribunal Competente para a revisão e confirmação não aprecia de mérito a decisão revidenda, limitando-se a verificar os requisitos taxativamente enunciados no artigo 16º, nº 2 da Concordata aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 74/2004, de 16 de Novembro.

II – Não existe contradição juridicamente relevante entre uma decisão do Tribunal Eclesiástico que decretou a nulidade do casamento católico e uma sentença do Tribunal Judicial que recusou a anulação do casamento, pois que as normas aplicadas pertencem a ordenamentos diferentes: Direito Civil e Direito Canónico.

III – A circunstância de um Tribunal Civil ter recusado a anulação do casamento não impede a revisão e confirmação da decisão do Tribunal Eclesiástico.

Texto Integral

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PROCESSO Nº 1144/08-3
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A” residente na …, apartado …, em …, requereu, contra “B”, residente na …, n° … em … ao abrigo dos artigos 1094° e seguintes do Código de Processo Civil e 16° da nova Concordata celebrada entre a República Portuguesa e a Santa Sé, a revisão e confirmação da sentença proferida pelo Tribunal Eclesiástico de …, em …, que declarou nulo o casamento católico celebrado entre a requerida e o requerido, com fundamento em infidelidade do cônjuge marido, erro de qualidade que redunda em erro de pessoa, sofrido pelo cônjuge mulher, e por dolo perpetrado pelo cônjuge marido para obter o consentimento do cônjuge mulher.

Alegou que a requerente e o requerido celebraram casamento católico, um com o outro, em …, e que o casamento foi declarado nulo pela sentença revidenda, a qual foi confirmada, em 2ª instância, por Decreto Confirmatório do Tribunal Patriarcal de Lisboa, e verificada pelo Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica.
Alegou, ainda, que a sentença revidenda é autêntica, dimana de tribunal competente, com respeito pelos princípios do contraditório e da igualdade, sem que o decidido ofenda os princípios da ordem pública internacional e do Estado Português.
O requerido deduziu oposição no sentido da improcedência do pedido de revisão e confirmação da sentença, invocando, no essencial, que não foi permitido o acompanhamento do processo pelos seus mandatários, por não estarem reconhecidos pela Igreja Católica como advogados, o que ofende o princípio constitucional da igualdade de direitos, que a sentença revidenda nunca lhe foi notificada e que não teve possibilidade de refutar os factos da petição inicial.
Aduziu, de igual modo, que os fundamentos invocados pela requerente são idênticos aos que fundamentaram a acção … do … juízo cível do Tribunal Judicial de …, julgada improcedente, e que o reconhecimento da decisão eclesiástica seria contraditória com a sentença absolutória proferida pelo Tribunal Português.
Na resposta, a requerente veio dizer que o requerido foi citado e notificado da sentença, que prestou depoimento nos autos e arrolou prova testemunhal, que foi produzida; invocou, de igual modo, que os mandatários autorizados a intervir devem preencher os requisitos exigidos pelo cânone 1483 do Direito Canónico, sendo este o direito aplicável em razão da competência do tribunal, que apreciou apenas a existência do Sacramento do Matrimónio, à luz do Direito Canónico, e não os fundamentos da acção que correu no Tribunal nacional.
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Facultado o processo para alegações, a requerente e o Ministério Público pronunciaram-se no sentido da confirmação da sentença revidenda.
Os Exmºs Desembargadores Adjuntos tiveram visto nos autos.
Colocam-se nesta acção de revisão de sentença as questões que se deixam enunciadas:
- se a decisão revidenda contraria a sentença de Tribunal Português;
- se a exigência de requisitos para a intervenção de mandatário, conforme o direito canónico, viola o princípio da igualdade;
- se o requerido não foi citado para a acção, nos autos do Tribunal Eclesiástico, nem a decisão lhe foi notificada;
- se estão presentes os requisitos da revisão e confirmação.

Mostra-se documentalmente provado:
1. A requerente e o requerido celebraram, um com o outro, casamento católico, no dia …
2. Assento de casamento católico mostra-se transcrito na Conservatória do Registo Civil de …
3. Por sentença do Tribunal Interdiocesano de …, proferida a …, foi declarada a nulidade do mencionado casamento católico, com fundamento em "infidelidade do requerido, de erro de qualidade que redunda em erro da pessoa, sofrido pela requerente, e por dolo perpetrado pelo requerido para obter o consentimento da requerente".
4. Através de decreto-sentença de 2a instância, prolatado pelo Tribunal Patriarcal de Lisboa, em …, foi confirmada a sentença de 1ª instância, reconhecendo nulo o matrimónio em causa pelos capítulos de "exclusão da fidelidade por parte do requerido, erro acerca da qualidade da pessoa directa e principalmente pretendida pela requerente e erro doloso perpetrado pelo requerido para obter o consentimento da requerente".
5. O Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, por decreto de …, procedeu à verificação da sentença do Tribunal eclesiástico de 1ª instância e do decreto confirmatório do Tribunal Patriarcal de Lisboa.
6. O requerido foi citado através de carta registada com A/R do pedido apresentado por “A” para declaração de nulidade do matrimónio.
7. A Exmª advogada …, constituída mandatária do requerido, foi notificada pelo Tribunal Interdiocesano que, de acordo com o art. 105 §1° da Dignitas Connubii e o cânone 1483 do Código do Direito Canónico, só podem ser patrocinadores em causas de nulidade matrimonial advogados que, além de católicos, sejam doutores em direito canónico ou, pelo menos, verdadeiramente peritos e aprovados pelo Bispo diocesano.
8. A mesma senhora advogada respondeu não ser doutora em Direito Canónico.
9. O requerido “B” apresentou um requerimento ao Tribunal Interdiocesano, em 15 de Fevereiro de 2006, a referir não lhe ter sido possível constituir como mandatário doutor em direito canónico, referindo não ter qualquer excepção a opor aos membros do Tribunal e contestar os fundamentos invocados pela requerente - parte - no libelo introdutório.
10. O requerido “B” foi autorizado a consultar o libelo formulado pela autora (a requerente “A”) e apresentou resposta ao libelo junto do Tribunal Diocesano, em 2 de Março de 2006.
11. O requerido “B” prestou declarações perante o Tribunal Interdiocesano, tendo lido o libelo da autora (a requerente destes autos).
12. O requerido indicou testemunhas, que prestaram depoimento.
13. “A” intentou no Tribunal do Círculo Judicial de … acção contra “B” a pedir a anulação do casamento.
14. A acção foi julgada improcedente, por sentença de 26 de Outubro de 2006.

Vejamos, então, se a sentença pode ser revista e confmnada:
A Concordata entre a República Portuguesa e a Santa Sé, aprovada através da Resolução da Assembleia da República n° 74/2004, de 16 de Novembro de 2004, que substituiu a Concordada de 7 de Maio de 1940, estabelece no artigo 16° n° 1: As decisões relativas à nulidade e à dispensa pontifícia do casamento rato e não consumado pelas autoridades eclesiásticas competentes, verificadas pelo órgão eclesiástico de controlo superior, produzem efeitos civis, a requerimento de qualquer das partes, após revisão e confirmação, nos termos do direito português, pelo competente tribunal do Estado.
Dispondo o n° 2 do mesmo normativo: Para o efeito, o tribunal competente verifica:
a) Se são autenticas;
b) Se dimanam do tribunal competente;
c) Se foram respeitados os princípios do contraditório e da igualdade;
d) Se nos resultados não ofendem os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Assim, a revisão e confirmação das decisões das autoridades eclesiásticas relativas à nulidade do casamento católico, como é o caso em apreço, segue as regras dos artigos 1094° e seguintes do Código de Processo Civil, embora os requisitos necessários para a confirmação sejam os que constam do n° 2 do artigo 16° da Concordata e não os do artigo 1096° do Código de Processo Civil.
Deste modo, o tribunal competente para a revisão e confirmação - no caso, o Tribunal da Relação de Évora, de acordo com o artigo 1095° do CPC - não aprecia de mérito da decisão revidenda, limitando-se a verificar os requisitos taxativamente enunciados no referido artigo 16° n° 2 do Concordata.
Por isso, a circunstância de um tribunal português haver recusado a anulação do casamento entre a requerente e o requerido, lavrado na competente Conservatória do Registo Civil de …, por transcrição, em decorrência do disposto no artigo 13° da Concordata, não constitui obstáculo à revisão e confirmação da decisão do Tribunal Eclesiástico que decretou a nulidade do casamento católico, uma vez que o julgamento do caso pelas autoridades eclesiásticas aplicou as normas de um distinto ordenamento jurídico (Código de Direito Canónico).
Na verdade, o Tribunal Eclesiástico conheceu a (in)validade do casamento católico, segundo o Direito Canónico, matéria vedada, evidentemente, à apreciação do Tribunal português, pelo que inexiste contradição juridicamente relevante entre as duas decisões.
Acresce que não se suscita qualquer dúvida sobre a autenticidade da sentença do Tribunal Interdiocesano de …, devidamente confirmada pelo Tribunal Patriarcal de Lisboa e verificada por Decreto do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, nem sobre a competência destas autoridades eclesiásticas para conhecer e decidir os fundamentos da nulidade do casamento católico.
Também não se suscita dúvida acerca do trânsito em julgado da sentença revidenda.
De igual modo, toma-se inquestionável que no processo eclesiástico foram observados os princípios do contraditório e da igualdade: o requerido foi citado, teve intervenção no processo, prestou depoimento e indicou prova testemunhal, que foi produzida.
Doutro passo, a exigência do Direito Canónico de o advogado ou procurador ser doutor em direito canónico ou verdadeiramente perito aprovado pelo Bispo não viola os citados princípios, uma vez que aplicável a ambas as partes, radicando na especialidade e delicadeza das questões que se apreciam em matéria de nulidade do casamento católico.
Ainda de ponderar que a decisão que reconheceu a nulidade do casamento católico celebrado entre a requerida e o requerido não ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, entendida como o conjunto de valores fundamentais subjacentes ao sistema jurídico que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam.
De resto, a invalidade do casamento é expressamente admitida pela ordem jurídica nacional.
Por todo o exposto, acorda-se, revista a sentença do Tribunal Interdiocesano de …, que decretou a nulidade do castamente católico celebrado entre a requerente e o requerido, em confirmá-la na ordem jurídica portuguesa para produzir todos os seus efeitos.

Após trânsito, comunique à Conservatória do Registo Civil de …

Custas pelo requerido.

Valor tributário: o da alçada do tribunal de 1ª instância (art. 6° al. a) do CCJ).

Évora, 16 de Dezembro de 2008