RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Sumário


I - O prazo de prescrição mais longo, previsto no nº 3, do artigo 498º do C. Civil, apenas se verifica quando, no circunstancialismo gerador de indemnizar, em concreto, se verifiquem todos os elementos essenciais de determinado tipo legal de crime, sendo de todo irrelevante o facto de ter havido ou não processo-crime, do facto de o lesante ser ou não condenado pela prática do respectivo crime ou do facto de o lesado ter deduzido ou não queixa, com vista ao procedimento criminal, sendo de manter ainda mesmo no caso de o crime ter sido entretanto amnistiado.

II - Para que haja abuso de direito, não é necessário que ao exercer o seu direito a parte tenha consciência de estar a exceder os limites imposto peja boa fé, bons costumes e o fim social ou económico desse direito. Bastará que, objectivamente, esses limites se mostrem, claramente, excedidos.

Texto Integral

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PROCESSO Nº 535/05.9TBOLH.E1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A” intentou, em 27.05.2005, acção declarativa ordinária contra “B” pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 38.856,16, acrescida de juros legais desde a citação até efectivo pagamento.
Alegou para tanto e em resumo o seguinte:
No dia 05.06.2000 ocorreu um acidente de viação no qual intervieram o veículo ligeiro misto de matrícula RQ, seguro na ré, e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula FN conduzido pelo autor, sendo que o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo RQ que, ao descrever uma curva, invadiu a hemi-faixa contrária e foi ali embater de frente no veículo conduzido pelo autor, que circulava na sua mão.
Imediatamente após a colisão, o condutor do RQ fugiu do local, não socorrendo o autor que, em consequência do embate, sofreu danos físicos.
A ré aceitou a responsabilidade pelo acidente, tendo pago à proprietária do veículo conduzido pelo autor indemnização relativa à perda total do veículo.
Já que na altura o autor trabalhava como carpinteiro por conta de outrem, o acidente em causa foi considerado como acidente de trabalho, tendo a respectiva seguradora, “C” pago determinadas quantias relativas a indemnizações por incapacidades temporárias, despesas e remissão de pensão anual e vitalícia.
Em consequência dos ferimentos sofridos em resultado do acidente o autor, que ficou com uma incapacidade permanente parcial de 18,.74 % sofreu danos morais, relacionados designadamente com as dores, os internamentos e as suas limitações (que avalia em € 20.000,00), danos patrimoniais directos (no valor de € 72.50) e lucros cessantes (avaliados em € 38.856,15).
Uma vez que os factos integram um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo art. 148º, nº 1 e 3, com referência ao art 144º, ambos do C. Penal, e um crime de omissão de auxílio p. e p. pelo art. 200º, nº 2 do mesmo diploma, é de 5 anos o prazo ele prescrição, nos termos do disposto no art 18º nº 1. al. c) do C Penal e daí que ainda não se mostre prescrito o direito do autor.

Citada, veio a ré contestar, invocando a excepção de prescrição, por considerar aplicável ao caso dos autos o prazo de prescrição de 3 anos, já decorrido, e por considerar ainda que, mesmo que seja aplicável o prazo de 5 anos, tal prazo já havia decorrido aquando da sua citação, e defendeu-se ainda por impugnação.

Replicou o autor, tomando posição no sentido da falta de verificação da invocada excepção de prescrição.

O Instituto de Segurança Social, IP - Centro Distrital de Segurança Social de … veio deduzir pedido de reembolso de prestações pagas a título de subsídio de doença, contra a ré “B” e ainda contra “D” (condutor do veículo seguro na ré) pedindo a condenação dos mesmos no pagamento da quantia de € 266,80, acrescida de juros vincendos, desde a notificação do pedido de reembolso.
Contestou a ré a tal articulado, invocando igualmente a excepção de prescrição e defendendo-se por impugnação.
E replicou o Instituto de Segurança Social, pugnando pela improcedência da invocada prescrição.
Foi proferido despacho saneador, nos termos do qual se absolveu da instância “D”, relativamente ao pedido de reembolso também contra ele formulado pelo Instituto de Segurança Social, se julgou improcedente a invocada excepção de prescrição invocada pela ré relativamente ao direito indemnizatório do autor e se julgou procedente a invocada excepção de prescrição relativamente ao direito ao reembolso por parte do Instituto de Segurança Social, absolvendo-se a ré do respectivo pedido, tendo sido ainda elaborados os factos assentes e a base instrutória.

Inconformada com o despacho saneador, na parte em que nele se decidiu sobre a improcedência da prescrição, interpôs a ré recurso de apelação recurso esse admitido a subir a final.
Entretanto, instruído o processo e realizada a audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença, nos termos da qual a acção foi julgada parcialmente procedente, tendo a ré sido condenada a pagar ao autor a indemnização global de € 27.072,50, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo pagamento (e absolvida do demais peticionado),

Notificadas, as partes não interpuseram recurso da sentença limitando-se a ré a pedir que fosse ordenada a expedição do recurso, de apelação, interposto do despacho saneador, sendo então ordenada a subida dos autos a esta Relação

Está assim apenas em causa o recurso de apelação interposto pela ré do despacho saneador, em cujas alegações foram apresentadas as seguintes conclusões:

1ª - Os factos descritos na matéria assente no despacho saneador, de que se recorre, não configuram a prática de um crime, pois são suficientes para preencher todos os requisitos do tipo legal;
2a - Pelo que não pode o recorrido aproveitar do prazo mais alargado para a prescrição do direito a indemnização a que se reporta o art. 498º nº 3 do Código Civil.
3ª - A invasão da hemi-faixa de rodagem contrária é necessária para os mais diversos comportamentos estradais e só por si não é suficiente para sustentar a imputação ao agente da prática de um crime.
4a - O Tribunal não pode presumir a velocidade excessiva de um veículo nem a imperícia de um condutor apenas com base da invasão da hemi-faixa de rodagem contrária. Tais fados deveriam ter sido alegados e provados para que pudesse eventualmente concluir-se pela existência de um crime.
5ª - Dos factos considerados provados, não é possível inferir qualquer referência ao animnus do agente, pelo que, também por esse motivo, não é possível imputar-lhe subjectivamente qualquer tipo legal de crime.
6ª - Não basta a susceptibilidade da prática de um crime, como se conclui na decisão em crise, para que se verifique o aumento do prazo prescricional do direito a indemnização, por efeito do art. 498. nº 3 do C.C. Este artigo exige que se verifique efectivamente a existência de um crime.
7ª - A prescrição tem de ser considerada à luz do prazo do nº 1 do art. 498º do C.C. e não do nº 3, porque o recorrente (e ofendido) não apresentou a queixa necessária ao respectivo procedimento criminal, já não o podendo fazer.
8a - Se o Autor (e ofendido) não se pretendeu valer do procedimento criminal, também não poderá valer-se dos prazos que, nesse âmbito, lhe são conferidos, entre os quais o da prescrição.
9ª - Não pode proceder o argumento de que o que justifica o aproveitamento dos prazos prescricionais sobre factos susceptíveis de configurar um ilícito penal, é a gravidade do facto e do dano, a especial qualidade do ilícito;
10ª - Porque a gravidade dos factos, para este tipo de crime em concreto, é da exclusiva apreciação do próprio ofendido/lesado, não podendo ser presumida pelo Tribunal.
11ª - É apenas a sua convicção pessoal sobre a gravidade dos factos que determina o andamento do procedimento criminal. Se entender que eles não o justificam não apresenta a respectiva queixa.
12ª - Ao contrário de outros crimes, em que, exactamente pela “gravidade do facto e do dano e a especial qualidade do ilícito", o legislador entendeu não deixar na livre disposição das partes o respectivo procedimento criminal (não os fazendo depender de queixa crime), o crime de ofensa à integridade física por negligência não tem essa pré-qualificação de "especialmente gravoso" que se lhe pretende dar.
13ª - Se o próprio lesado entende que os factos ilícitos não representaram especial gravidade (ao não exercer o respectivo direito de queixa) porque haveria de, posteriormente, se valer de outros direitos sustentando exactamente o contrário?
14ª - Em direito civil, onde, afinal, a questão está a ser analisada, facilmente tal situação se enquadra no instituto do Abuso de Direito - art. 334º do CC. - na modalidade de venire contra factum proprio,
15ª - Se o recorrente desconsiderou por completo a natureza penal dos factos, não pode agora basear nela o direito (civil) de que se pretende valer.
16ª - O Tribunal ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 498 nº 1. e 334º do C.C. e 1º, 118, nº 1, al. c) e 148º nº 1 do C.P.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
Em face do conteúdo das conclusões das alegações da ré apelante, enquanto delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684º nº 3 e 690º, nº 1º do CPC. na redacção anterior ao D.L. 303/2007 de 24.08, aplicável aos autos), são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:
- prazo de prescrição aplicável ao caso dos autos:
- abuso de direito.

É a seguinte a factualidade assente, em que assentou a decisão recorrida (e com interesse específico para as questões a analisar), desde logo dada como provada em sede de despacho saneador:
1) No dia 5 de Junho de 2000, cerca das 22 horas e 15 minutos, na Estrada Municipal …, no Sítio de … concelho de …, ocorreu um embate entre o veículo automóvel ligeiro misto de matrícula RQ, propriedade de “E” e conduzido por “D” e o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula FN, propriedade
de “F” e conduzido pelo autor “A”, conforme participação de acidente de viação fls. 27 e 28, cujo teor se dá por integralmente reproduzida.
2) O veículo de matrícula FN, conduzido pelo autor “A”, circulava na referida estrada municipal nº …, em B… no sentido de marcha B… - P…
3) O Autor conduzia o veículo de matrícula FN na via de trânsito destinada à circulação dos veículos com o seu sentido de marcha (B… - P… ) e a uma velocidade inferior a 50 (cinquenta) km/hora.
4) O veículo automóvel de matrícula RQ, conduzido por “D”, circulava no sentido de marcha P… - B…
5) O condutor do veículo de matrícula RQ, “D”, ao descrever a curva existente na faixa de rodagem, localizada próximo do Restaurante …, saiu da hemi-faixa direita destinada ao trânsito das viaturas que circulam no sentido de marcha P… - B… e invadiu a hemi-faixa esquerda, considerando o mesmo sentido de marcha, por onde seguia a viatura conduzida pelo autor.
6) O veículo de matrícula RQ, conduzido pelo “D”, na curva e local referidos no número anterior, saiu da sua mão de trânsito, invadiu a mão de trânsito destinada aos veículos a circular em sentido contrário e, acto contínuo, embateu frontalmente no veículo de matrícula FN, conduzido pelo autor.
7) O autor não logrou evitar o embate do veículo de matrícula RQ, pelo motivo deste ter ocupado a via de trânsito por onde circulava o veiculo FN.
8) O embate deu-se totalmente no espaço da via que constitui a mão de trânsito do autor, para lá do eixo que divide a faixa de rodagem em duas metades.
9) O “D”, imediatamente após a colisão entre os dois veículos em causa, fugiu do local de embate e não socorreu o Autor, que ficou ferido.
10) O autor foi sujeito a intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos no Hospital Distrital de …, no Hospital Central de …, em … no Hospital da … em … e na Casa de Saúde … - Hospital Privado, em …
11) No dia 19 de Junho de 2000, o autor, no Hospital de …, em …, sob anestesia geral, foi operado pela equipa de Ortopedia para redução e encavilhamentos aberto do fémur direito e fechado do fémur esquerdo.
12) O Autor, no ano de 2002, foi operado no Hospital da …, em …, para extracção do material que lhe havia sido colocado no femur direito e esquerdo, na sequência da intervenção cirúrgica referida em 11).
13) Em 13 de Fevereiro de 2001, o autor efectuou um exame de RX através do qual se verificou que a fractura da rótula estava consolidada em posição viciosa e com osteopénia lacunar e osteofítose.
14) A responsabilidade civil pelos danos provocados a terceiros e emergentes da circulação rodoviária do veículo de matrícula RQ, conduzido por “D”, estava transferida, na data do sinistro, para a ré “B” através de contrato de seguro titulado pela apólice nº …
15) O autor é beneficiário da Segurança Social com o n.º …. tendo-lhe o Instituto de Segurança Social. IP- Centro Distrital de Segurança Social de … pago a quantia de € 266,80 a título de subsídio de doença nos períodos de incapacidade para trabalhar na sequência de acidente de viação sofrido no dia 05-06-2000 compreendidos entre 06-06-2000 e 26-06-2000 e entre 27-07-2000 e 07-08-2000.
16) O autor intentou a presente acção em 27 de Maio de 2005, tendo a ré sido citado para contestar em 29-06-2005, tendo o Instituto de Segurança Social. lP- Centro Distrital de Segurança Social de … sido citado nos termos do artigo 1º do DL 59/89, de 22 de Fevereiro em 22-11-2005.

Quanto ao prazo de prescrição:

Está em causa saber se o prazo de prescrição do direito à indemnização, que o autor pretende fazer valer nos presentes autos, é de 3 ou de 5 anos.
Com efeito, sabendo-se que o acidente de viação em causa nos autos ocorreu em 05.06.2000 e que a acção apenas foi proposta em 27.05.2005, ou seja, decorridos que foram quase cinco anos, caso se considere ser de 3 anos o prazo de prescrição (conforme entende a apelante) a outra conclusão se não poderá chegar que não seja a de considerar como verificada a invocada prescrição do direito do autor - o que implicará a improcedência da acção, com a consequente absolvição da ré do pedido.
A ré, em sede de contestação, também suscitou a questão da verificação da prescrição mesmo que se considerasse aplicável o prazo de 5 anos, pelo facto de, apesar de a acção ter sido interposta antes do decurso desse prazo, em 27.05.2005, ela apenas ter sido citada já depois de terem decorrido esses 5 anos.
Tal questão foi julgada improcedente no despacho saneador (no qual se considerou aplicável o prazo de 5 anos e se julgou improcedente a invocada prescrição) com base no disposto no nº 2 do art. 323º do CPC.
Todavia, conforme se alcança das conclusões da recorrente, tal questão já não foi suscitada no âmbito do presente recurso (conformando-se a recorrente, nessa parte, com a decisão recorrida) daí que tal questão se deva considerar como definitivamente resolvida, estando, como tal, fora do objecto do presente recurso.
Sendo em princípio de 3 anos o prazo de prescrição do direito à indemnização, nos termos do disposto no nº 1 do art 498º do C. Civil, estabelece o nº 3 do mesmo artigo que "se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável".
Ora, foi com fundamento em tal disposição, conjugada com o disposto no art. 118º nº, al. c) do C. Penal, na redacção do DL nº 48/95, de 15.03 (que estabelece o prazo de prescrição de 5 anos para o crime de ofensa à integridade física por negligência) e por considerar não estar afastada, no caso dos autos, a possibilidade da conduta imputada ao condutor do veículo segurado na ré consubstanciar a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, punível com pena de prisão até um ano nos termos do disposto no art. 148º. nº 1 do C. Penal (ou punível, ocorrendo ofensa à integridade física grave, nos termos do nº 3 deste artigo) - que o tribunal "a quo considerou como sendo aplicável ao caso em apreço o prazo de prescrição de 5 anos, e daí a improcedência da invocada excepção de prescrição.
Discorda todavia a apelante de tal entendimento, por considerar que os factos descritos na matéria assente não configuram a prática de um crime (não bastando a mera susceptibilidade da prática de um crime) e daí que, em seu entender, não aproveite ao recorrido o prazo mais longo, de 5 anos, a que se reporta o nº 3 do art. 498o do C. Civil.
E diz, para tanto, não só que a invasão da hemi-faixa de rodagem contrária, necessária para os mais diversos comportamentos estradais, não é só por si suficiente para sustentar a imputação ao agente da prática de um crime e que o tribunal não pode presumir a velocidade excessiva, como também que não é possível inferir qualquer referência ao animus do agente.
Para além disso, defende ainda a apelante inaplicabilidade do nº 3 do art. 498ºdo C. Civil, pelo facto de o autor não ter apresentado queixa, necessária ao procedimento criminal.
Desde já se diga que tal entendimento, da recorrente, se nos afigura infundado.
É certo que o prazo de prescrição mais longo, previsto naquele nº 3 apenas se verifica se o facto ilícito gerador do dever de indemnizar constituir crime, sendo preciso que em concreto se verifiquem todos os elementos essenciais de determinado tipo legal de crime (vide ac. do STJ de 21.04.2004, em que é relator Oliveira Barros. in www.dgsi.pt)
Todavia, conforme tem vindo a ser entendido na jurisprudência, trata-se do único requisito de que a lei faz depender a aplicação desse prazo de prescrição mais longo, sendo de todo irrelevante o facto de ter havido ou não processo-crime, do facto de o lesante ser ou não condenado pela prática do respectivo crime ou do facto de o lesado ter deduzido ou não queixa, com vista ao procedimento criminal (vide, entre vários outros, para além do já citado acórdão. os acórdãos da RP de 07.11.2002. in C.J. 2002. V. 167 e do STJ de 20.02.2001, in CJ/STJ. 2001. I. 126 e de 08.12.98 in BMJ. 482. 203)
Aliás, conforme referem P. Lima e A. Varela (in C. Civil Anotado, I volume 2ª ed. revista e actualizada, pag. 438) a regra do nº 3 do art 498º ainda se mantém mesmo no caso de o crime ter sido entretanto amnistiado.
Assim, para o efeito, o que importa verificar é se a entretanto apurada conduta do condutor do veículo segurado na ré é passível de integrar, pelo menos, o crime de ofensa à integridade física por negligência previsto e punível pelo art. 148º. Nº 1 do C. Penal, com pena de prisão até 1 ano (ou multa).
E na verdade, analisada a matéria factual desde logo dada como provada em sede de saneador, a outra conclusão se não pode chegar que não seja a de responder afirmativamente a tal questão.
Com efeito, resultou provado que o embate entre o veículo conduzido pelo autor e o veículo segurado na ré se deveu ao facto de o condutor deste último, ao descrever uma curva, ter saído da sua mão de trânsito (hemi-faixa direita, atento o seu sentido de marcha), indo invadir a mão de trânsito destinada aos veículos que circulavam em sentido contrário, não logrando o autor, que por ali circulava (na sua mão de trânsito, nesse sentido contrário) evitar o embate, vindo este a sofrer diversos ferimentos que requereram intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos.
Ao invadir (ao descrever uma curva) a hemi-faixa contrária (na qual circulava, correctamente, o autor), o condutor do veículo segurado na ré violou o disposto no art. 13º do C. da Estrada, dando dessa forma causa, ainda que a título de negligência, ao acidente e, consequentemente, aos ferimentos sofridos pelo autor.
Assim, e porque no art. 118°. nº 1, al c) do C. Penal se estabelece para o crime em causa (crimes puníveis com pena de prisão com limite máximo igual ou superior a um ano, mas inferior a 5 anos) o prazo de prescrição de 5 anos, tinha que ser este, como foi, o prazo de prescrição a considerar.
Improcedem assim, nesta parte, as conclusões do recurso.

Quanto ao abuso de direito:

Considera ainda a apelante que se o lesado entende que os factos não justificam pela sua especial gravidade o exercício do direito de queixa, desconsiderando por completo a natureza penal dos factos, não se justifica que posteriormente venha e possa fazer valer outros direitos sustentando precisamente o contrário, estando-se perante uma situação de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Todavia, a nosso ver igualmente sem razão.
Nos termos do disposto no art. 334° do C. Civil “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito"
Com tal disposição, adoptou assim o legislador a concepção objectiva do abuso de direito.
Com efeito, conforme tem sido entendido na doutrina e na jurisprudência, para que haja abuso de direito, não é necessário que ao exercer o seu direito (que existe realmente) a parte tenha consciência de estar a exceder os limites imposto peja boa fé, bons costumes e o fim social ou económico desse direito, bastando que objectivamente esses limites se mostrem claramente excedidos (vide P. Lima e A. Varela. in C. Civil Anotado. Vol. I. em anotação ao art. 334°. e acórdão do STJ de 28.06.2007 em que é relator Gil Roque, in www.dgsi.pt).
Por outro lado, o abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pressupõe que, tendo o titular do direito causado no outro agente, pelo seu comportamento, uma posição (objectiva) de confiança, de não exercício do direito, acabe por agir contra essa expectativa ao exercer o direito.
Conforme se considerou no ac. do STJ de O6.11.2007 (em que é relator Nuno Cameira. in www.dgsi.pt), são pressupostos do abuso de direito, nessa modalidade:
- a existência de um comportamento anterior do agente (titular do direito). Susceptível de basear uma situação objectiva de confiança;
- a imputabilidade das duas condutas, anterior e actual, ao agente;
- a boa fé da outra parte;
- e o nexo de causalidade entre a situação objectiva de confiança e o investimento que nela assentou.
No caso dos autos, o autor limitou-se a aguardar pelo decurso do prescrição de 5 anos, a que acabámos de nos referir, tendo proposto a acção antes de terminar o decurso de tal prazo, sem que tenha tomado qualquer outra atitude (que nem sequer foi alegada) que tenha criado na ré a convicção do não exercício do direito à indemnização
Aliás, sabendo que dispunha do prazo prescricional de 5 anos (podendo até ter razões que o tivessem levado a não ter proposto anteriormente a acção), o autor limitou-se a exercer o direito dentro do prazo que a lei lhe concedia, sendo a nosso ver de todo irrelevante o facto de não ter apresentado queixa com vista à instauração de procedimento criminal.
Tal significa que apenas lhe interessou obter da ré seguradora (a única responsável que civilmente podia ser demandada, nos termos da lei do seguro obrigatório) a indemnização a que se julgava com direito, sendo certo que, no caso dos autos, a queixa-crime sempre teria que ser deduzida contra outra pessoa, neste caso, o condutor do veículo segurado na ré.
Assim e sendo certo que o abuso de direito na invocada vertente de venire contra tactum propriuni apenas se verifica quando o exercício do direito atinge proporções juridicamente intoleráveis (ac. do STJ de 24.01.2002. in CJ/STJ. 2002. I 51), o que não é manifestamente o caso dos autos,. havermos de concluir no sentido da inexistência de abuso de direito.

Improcedem assim igualmente nesta parte as conclusões do recurso.
Termos em que se acorda em negar provimento à apelação e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Évora, 14 de Maio de 2009