SERVIDÃO DE PASSAGEM
DIREITO DE TAPAGEM
Sumário


I – Uma servidão de passagem, não pode ser estorvada ou tornar-se demasiado onerosa para o proprietário dominante, mas é conciliável com o direito de tapagem e não prejudica este direito do proprietário serviente, por isso admite-se que as zonas de entrada ou saída sejam vedadas por cancela ou portão, com entrega das respectivas chaves àquele proprietário.
II - A simples incomodidade de ter de abrir e fechar o portão sempre que utilize a servidão, não constitui estorvo à utilização da servidão e não é juridicamente relevante para obstar ao direito de passagem .
III – O dono do prédio serviente que vedou o prédio e colocou portões na entrada e saída da servidão e entregou chaves aos donos do prédio dominante, tem o direito de exigir destes, sem que isso constitua um estorvo ao exercício da servidão, que fechem os portões após passarem por eles.

Texto Integral


Proc. N.º 1332/03.1TBLGS.E1
(3ª secção)
Apelação em processo sumário
Tribunal Judicial de Lagos (2º Juízo)



Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Álvaro ..................e esposa, Laura ............... intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra os réus Manuel ............. esposa Rosa............., peticionando a condenação destes:
a. a comunicarem, por escrito, aos autores a identidade de todas as pessoas que estiverem por eles autorizadas a utilizar a servidão constituída sobre o prédio dos autores como acesso ao seu prédio, e bem assim a que titulo tais pessoas utilizam a servidão;
b. a deixar e a assegurar que fiquem trancados e fechados os portões existentes no prédio dos autores, sempre que utilizem por eles próprios e terceiros por eles autorizados, a servidão de passagem;
c. a não excederem, e a assegurar que não seja excedida por quem estiver por eles autorizado a utilizar a servidão, a velocidade de 10 km/horários sempre que eles próprios, e terceiros por eles autorizados, se desloquem pela servidão em veículo motorizado;
- a pagarem uma sanção pecuniária de €200,00:
d. sempre que alguém que detenha cópia das chaves e cuja identidade não tenha sido previamente comunicada aos autores utilize a servidão para aceder ao seu prédio;
e. por cada vez que à passagem para e de o prédio dominante qualquer um dos portões fique aberto ou por trancar;
f. por cada vez que a velocidade de 10 Km/h seja manifestamente ultrapassada;
g. sempre que os limites de boa fé sejam de outra forma manifestamente ultrapassados;
h. a pagarem aos autores a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de €4.000,00;
i. a pagarem aos autores a título de indemnização a quantia a liquidar em execução de sentença, não inferior a €2.500,00.
Alegaram, em síntese, que são donos do prédio misto sito em Dez Reis, freguesia de Bensafrim, concelho de Lagos, descrito na CRP de Lagos sob o n.º 01451/30112000, o qual confronta a sul com o prédio dos réus e se encontra onerado com uma servidão de passagem a favor deste último prédio; que essa servidão tem 90 metros de cumprimento e a largura de 3 metros; que em Setembro de 2002 construíram à volta do seu prédio um muro de vedação, para salvaguarda da sua intimidade e protecção de pessoas e bens; que nas extremidades do prédio construíram dois portões de correr, com a largura do caminho, tendo entregue aos réus cópia das chaves respectivas; que os réus deixam sempre os portões abertos à passagem, o que, para além do perigo latente para pessoas, tem possibilitado a entrada de animais que sujam o logradouro e danificam a horta; e que os utilizadores da servidão fazem-no de automóvel e a velocidade considerada alta.
Os réus contestaram, defendendo-se por impugnação, e deduziram reconvenção, tendo peticionado a condenação dos autores:
- a retirarem o muro e murete que impede que a servidão se desenvolva por um caminho de 3 metros de largura em toda a sua extensão;
- a retirarem os muros e muretes não licenciados que obstruam o normal exercício da servidão;
- a levantarem o pavimento em desperdício de mármore e em cimento que colocaram parte do caminho e a recolocar terra batida bem compactada como consta da sentença;
- a retirarem os portões com fechadura e chave que impedem o normal exercício da servidão e o acesso de pessoas, veículos e animais ao prédio dos réus.
Os autores apresentaram articulado de resposta, propugnando pela sua absolvição dos pedidos deduzidos em via reconvencional.
Após foi realizada a audiência preliminar, no decurso da qual foi elaborado o despacho saneador, fixados os factos assentes e organizada a base instrutória.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu:
- julgar improcedente a presente acção e, em consequência, absolver os réus dos pedidos contra si formulados;
- julgar parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, condenar os reconvindos a retirarem os portões com chave que colocaram no caminho/servidão que impede o acesso normal ao prédio dos reconvintes;
- absolver os reconvindos do restante pedido formulado.
Inconformados, vieram os autores interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminaram com a formulação das seguintes conclusões:
A. As restrições a que está sujeito o direito de propriedade ao abrigo da parte final do art.º 1305° do Código Civil (C.C.) podem ser de direito público ou de direito privado. Sendo que, as restrições de direito privado são as que resultam das relações de vizinhança, encontrando-se, na sua generalidade, previstas e reguladas nos art.°s 1344° e segs. do C.C .
B. Nos termos do art.° 1356° do C.C., uma das faculdades inerentes ao direito de propriedade é constituída pelo direito de tapagem ou de vedação. Este direito que assiste aos AA., ora Recorrentes, não foi directamente considerado pela decisão recorrida que se limitou a considerar a ponderação de interesses entre os prédios dominante e serviente.
C. Sucede que, a restrição imposta pela existência de uma servidão - concretamente, aquela a que é feita referência no ponto 4 da matéria de facto provada - não é idónea a colocar em causa aquele direito de tapagem ou de vedação (cfr., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08,06.2006, disponível em www.dgs.pt, processo 0681480).
D. Tem-se entendido que o dono do prédio serviente pode fazer vedação do seu prédio, não podendo impedir ou de qualquer modo dificultar o uso da servidão. A servidão de passagem não pode tornar-se mais onerosa para o dono do prédio dominante, admitindo-se que nas entradas se possa colocar portão, desde que o acesso se mantenha com a mesma facilidade.
E. Ora, nada há no elenco factual que nos permita considerar que o portão é pesado, ou que o não é, que é difícil abri-lo ou que nenhuma dificuldade existe. O único incómodo que resultou para os RR. provado é que: "os réus são obrigados a sair do automóvel para abrirem o portão" (ponto 20 da matéria de facto provada, página 4 da decisão). No entender dos ora Recorrentes, porém, não é tal incómodo suficiente para impedir o seu direito de tapagem.
F. É a "era da comodidade" levada ao extremo considerar que"sair do carro" para abrir o portão é interesse superior ao sentimento de segurança que a colocação de uma vedação sempre implica. Ou admitir que para que a segurança possa ser posta em causa tem de existir um facto que a coloque em causa, como sugere a Sentença recorrida. Infelizmente, porém, pessoas a quem nunca nada aconteceu não sobreviveram para contar que, afinal, tinham sido vítimas de uma ameaça de perigo concreto.
G. Em face do exposto, com todo o respeito merecido, conclui-se ter o Tribunal a quo violado o disposto nos arts. 1305°, 1344° e seguintes e 1356° do C.C., pelo que deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que, na senda do Acórdão do S.T.J. de 08.06.2006, condene os RR., ora Recorridos nas ais. a), b) e d) do petitório e absolva os AA., ora Recorrentes, integralmente do pedido reconvencional.
Termina pedindo que o recurso seja julgado integralmente, procedente, por provado e, em consequência, seja proferido acórdão que, revogando a sentença recorrida, condene os RR., ora recorridos nas als. a), b) e d) do petitório e absolva os AA., ora recorrentes, integralmente do pedido reconvencional.
A apelada apresentou contra-alegações, propugnando pela manutenção do julgado.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.

*
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual:
1. Os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio misto sito em Dez Reis, na freguesia de Bensafrim e Concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o número 01451/30112000, que confronta a Sul com o prédio dos RR., um prédio rústico sito em Dez Reis, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o número 00023/140285.
2. O prédio dos AA. foi adquirido por meio de transacção judicial que pôs termo a litígio que correu termos, originariamente na 1 a Secção deste Tribunal sob o Processo no 111/85, e mais tarde no Tribunal de Circulo de Portimão, sob o Processo n°. 34/93, entre os AA e os RR , tendo sido destacado do referido prédio dos RR
3. Os AA. construíram uma casa no seu prédio.
4. Por transacção judicial realizada no processo referido em B) foi constituída servidão de passagem sobre o prédio dos AA. a favor do prédio dos RR. entre este e a estrada de Dez Reis constituída por um caminho de terra bem compactado, com três metros de largura, ao longo de toda a sua estrema Poente.
5. Em Setembro de 2002 os AA. decidiram construir à volta do seu prédio um muro de vedação.
6. Os AA igualmente construíram, do lado nascente do caminho um pequeno murete em tijolo com cerca de 30 cm de altura.
7. Os AA. instalaram nas extremidades do prédio dois portões de correr em metal, com a largura do caminho, e entregaram aos RR. cópia das chaves de ambos os portões, tendo na altura solicitado que à passagem para acesso de e para o prédio daqueles os portões fossem abertos e fechados, sendo as chaves utilizadas para o efeito
8. Os réus são obrigados a sair do automóvel para abrirem o portão;
9. Entre a data da conclusão da construção do muro e o final do Verão de 2003, as referidas chaves jamais foram utilizadas pelos RR., ou por quem utiliza o terreno dos AA. para aceder de e para o seu prédio, ficando sempre os portões abertos à passagem.
10. Mas fazem-no propositada e ostensivamente;
11. Na maior parte das vezes os AA. viam-se obrigados a percorrer os 90 metros de caminho para eles próprios, o A. marido com quase 80 anos e a A. mulher com 71, fecharem os portões.
12.Deslocam-se constantemente de uma ponta à outra do seu terreno para fecharem os portões deixados abertos;
13. Os portões ficaram abertos sempre que alguém por eles passava durante a noite.
14. Os portões ficavam abertos também, por vezes, durante vários dias, sempre que os AA. se encontravam ausentes.
15. Os autores passaram a trancar os portões, tarefa que nas últimas semanas tem sido assegurada por vizinhos, que acederam em fechar os portões ao anoitecer, o que efectivamente vem acontecendo todos os dias.
16. Os AA. nunca foram antes informados pelos RR. da identidade de quem está por eles autorizado a aceder ao seu prédio utilizando a servidão, como não foram agora informados da identidade a quem os RR. facultaram cópias das chaves.
17. O prédio dos réus tem acesso à via pública, para além da servidão que onera o prédio dos autores, por um outro caminho situado a sul.
18. O caminho situado a sul é sinuoso e estreito.
19. Em parte do caminho os AA colocaram mármore (5 1.5 metros), cimento (2,5 metros) no fim do mármore e ainda 4,5 metros de cimento a sul junto ao portão.
20. Os autores colocaram em grande parte do caminho desperdício de mármore sobrando apenas cerca de 28 metros em terra batida;
21. Cimentaram 2,5 m no fim do mármore e mais 4,5m a sul junto ao portão;
22. O caminho entre os portões tem cerca de 90 m de comprimento;
23. Em Junho de 2003 os AA. enviaram aos RR. uma carta onde chamam a atenção para os inconvenientes causados pelo modo como que a passagem vinha sendo feita, enviando nova cópia das chaves de ambos os portões, apelando para que os portões fossem fechados e trancados à passagem.
24. Em finais de Agosto foi enviada uma última carta aos RR. avisando no entanto que a partir do dia 6 de Setembro os portões passariam a ser trancados pelos AA., utilizando para o efeito as mesmas fechaduras para as quais os RR. tinham já mais que uma cópia das chaves;
25. Os autores não colocaram uma vedação a nascente do caminho;
26. O caminho existe no local há mais de 40 anos e sempre serviu de acesso entre a estrada de «Dez Reis» e o prédio dos réus;
27. Nunca tendo os autores visto perigar a sua segurança quando ali não existiam quaisquer portões.
***

III. Nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660º do mesmo Código.
As questões a decidir resumem-se a saber:
- se a colocação dos portões nas extremidades do caminho prejudica o uso da servidão de passagem;
- se, caso não prejudique esse uso, recai sobre os proprietários do prédio dominante a obrigação de fecharem os portões colocados no prédio serviente;
- se aqueles têm o dever de comunicar, por escrito, aos proprietários do prédio serviente a identidade de todas as pessoas que estiverem por eles autorizadas a utilizar a servidão constituída sobre o prédio dos autores como acesso ao seu prédio;
- e se o não fizerem estão ou não sujeitos a uma sanção pecuniária compulsória.
***

VII. Da questão de mérito:

Na sentença recorrida entendeu-se que a mudança das características de servidão “ (…) prejudica os interesses dos proprietários do prédio dominante. E tal prejuízo concretiza-se, desde logo, no incomodo de ter que sair do veiculo para abrir e fechar portões e pelo facto de uma servidão não ser de pessoas mas sim de terrenos/prédios, pelo que não é viável nem juridicamente aceite que só passe na servidão quem for anteriormente autorizado pelos réus e notificado aos autores”.
Em consonância com tal entendimento, decidiu-se julgar parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, condenar os autores/reconvindos a retirarem os portões com chave que colocaram no caminho/servidão que impede o acesso normal ao prédio dos réus/reconvintes.

Insurgem-se os autores contra este pronunciamento decisório, sustentando, em suma, assistir-lhes o direito de tapagem, ficando assegurado o direito de servidão com a entrega aos réus das chaves dos referidos portões.
Vejamos se lhes assiste razão.

Evidencia a factualidade provada que a servidão de passagem que onera o prédio dos autores foi constituída por transacção judicial.
Essa servidão está constituída sobre o prédio dos autores, a todo o cumprimento deste, e com a largura de 3 metros, a favor do prédio dos réus.
Tendo aqueles colocado dois portões nas extremidades dessa servidão, coloca-se desde logo a questão essencial de saber se tal viola o uso da servidão.

Dispõe o art. 1356º do C. Civil, que o proprietário de bens imóveis pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo.
De sua vez, prescreve o art. 1568º, n.º 1, do mesmo diploma legal, que o proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão.
A conciliação destes interesses opostos dos proprietários dos prédios serviente e dominante deve ser analisada em função de cada caso concreto.
Assim, no caso de servidão de passagem, entende-se geralmente que esta não pode tornar-se mais onerosa para o proprietário dominante, mas admite-se que as zonas de entrada ou saída sejam vedadas por cancela ou portão, com entrega das respectivas chaves àquele proprietário, quando for caso disso, desde que o acesso mantenha idêntica facilidade, a qual não será prejudicada pelo simples incómodo da abertura do portão – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, III, 2ª ed. pags. 670 e 671;
A colocação de cancela ou portão não pode, por isso, inviabilizar ou sequer criar dificuldades acrescidas ao proprietário do prédio dominante em aceder, através da dita serventia, ao seu prédio.
Haverá, pois, que atender ao tipo de construção efectivada e ao conteúdo da servidão, conforme se destine a um uso raro ou frequente e por poucas ou muitas pessoas, de modo a poder ou não concluir-se pela existência de maior onerosidade no uso da servidão e consequente prejuízo para o prédio dominante, ao ponto de se dever entender que, tratando-se de passagem para alguns prédios urbanos, não será porventura lícita a sua vedação, por poder causar relevantes embaraços ao trânsito de pessoas e veículos – cfr. Ac. STJ de 19-04-95, relatado pelo Cons. Martins da Costa, in www.dgsi.pt.
Os interesses do proprietário do prédio dominante que contam para o enunciado efeito, são tão-só, os dignos de ponderação, os que, se prendem com a impossibilidade ou a grande dificuldade do uso da servidão, não, consequentemente, a pura comodidade – cfr. Ac. STJ de 8-06-2006, relatado pelo Cons. Pereira da Silva, in www.dgsi.pt.

Postos estes considerando, apreciemos concretamente a situação dos autos.
Do provado deriva que o prédio dominante se encontra descrito como um prédio rústico, inexistindo qualquer elemento factual que permita concluir que os réus habitam em qualquer construção nele edificada (nesta matéria apenas se sabe que os autores indicaram como morada dos réus a Estrada Nacional n.º 120, 28, Bensafrim, e que foi nesse local que estes foram citados) ou pela sua potencialidade edificativa (enquanto utilidade futura – vide art. 1544º, do CC).
Ora, destinando-se a servidão a permitir o acesso a um prédio rústico, a passagem de veículos e pessoas será, tendencialmente, mais esporádica, quando comparada com o que normalmente ocorre com um prédio urbano, e, primacialmente, visará permitir o acesso em período diurno.
Significa isto que durante a noite o prédio dominante não será normalmente demandado por pessoas e veículos.
Por outro lado, apesar do caminho ter cerca de 90 metros de cumprimento, não se apurou que quem chega ao portão não tenha qualquer possibilidade de chamar pelos réus, caso aquele se encontre fechado à chave (vide resposta negativa ao quesito 26º).
Ora, enquanto factos constitutivos do direito dos réus, competia a estes provar que o fecho dos portões à chave dificultava o uso da servidão (art. 342º, n.º 1, do C. Civil).
Nesta sede competia-lhes alegar e provar factos atinentes às utilidades susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante (ainda que futuras ou eventuais), o uso e frequência de utilização da serventia.
Embora aceitemos um acréscimo de incomodidade de acesso ao seu prédio através da abertura e fecho à chave dos portões, a verdade é que, a escassa matéria de facto alegada e provada relativamente a este aspecto da questão, não aponta para a existência de uma dificuldade no uso da servidão.

É certo que os autores também não provaram que a construção do muro e portões visasse salvaguardar a sua intimidade e a protecção de pessoas e bens, tendo, ao invés, se provado que os autores nunca viram perigar a sua segurança quando no local não existiam portões.
Seja como for, é indubitável que assiste aos autores o direito de vedarem e taparem o seu prédio, não fluindo do provado que ao exercerem esse direito tenham actuado de forma abusiva, pois que se não provou que a colocação dos portões com chave se tenha destinado única e simplesmente a criar um conflito com os réus e que o tivessem feito para dificultar o acesso dos réus (vide resposta negativa ao quesito 17º e parcialmente negativa ao quesito 18º).

Assim, e em conclusão, entende-se que os réus/reconvintes não demonstraram que a colocação dos portões com chave constitua um estorvo ao uso da servidão de passagem.
Procede, pois, neste ponto a apelação, impondo-se a revogação da decisão recorrida e a absolvição dos autores do pedido de retirada dos aludidos portões com chave que colocaram nas extremidades da servidão.
*
Na apelação os autores peticionaram ainda a revogação da sentença recorrida e a condenação dos réus nos pedidos formulados nas als. a), b) e d) da p.i.
Esses pedidos traduzem-se na condenação dos réus:
a. a comunicarem, por escrito, aos autores a identidade de todas as pessoas que estiverem por eles autorizadas a utilizar a servidão constituída sobre o prédio dos autores como acesso ao seu prédio, e bem assim a que titulo tais pessoas utilizam a servidão;
b. a deixarem e a assegurarem que fiquem trancados e fechados os portões existentes no prédio dos autores, sempre que utilizem por eles próprios e terceiros por eles autorizados, a servidão de passagem;
d. a pagarem uma sanção pecuniária de €200,00 sempre que alguém que detenha cópia das chaves e cuja identidade não tenha sido previamente comunicada aos autores utilize a servidão para aceder ao seu prédio.

Relativamente ao pedido formulado sob a alínea b), face à consideração da licitude da colocação dos portões com chaves e ao facto de se ter provado que os réus e quem utiliza a servidão para aceder ao prédio destes deixam os portões abertos à sua passagem, é manifesta a sua procedência, na medida em que assiste aos proprietários do prédio serviente o direito de tapagem do seu prédio, devendo os proprietários do prédio dominante respeitar esse direito e fazê-lo respeitar pelos terceiros por eles autorizados a aceder ao seu prédio.
Procede, pois, nesta parte a apelação.

Quanto às demais pretensões [pedidos formulados sob as alíneas a) e d)]:
Dizem os apelantes nas suas alegações que, face à sua idade (71 e 80 anos em 2003), têm legitimidade suficiente para colocar alguns obstáculos (ainda que psicológicos) à entrada de terceiros não autorizados na sua propriedade, apesar de não se ter provado uma situação de perigo concreto para a sua segurança.
Contra tal entendimento insurgem-se os apelados, alegando que todos os que querem ter acesso ao prédio dominante utilizam a servidão e não se pode saber antecipadamente quem vai ter acesso ao mesmo, sendo que o deferimento da pretensão dos autores constituiria uma ilegítima intromissão na sua vida privada.
A nosso ver, assiste razão a estes.
Efectivamente:
Tendo sido imposta aos réus a obrigação de fecharem os portões à sua passagem, é manifesto que quem acede legitimamente ao prédio são pessoas a quem os mesmos facultam a entrada, quer através da abertura dos portões, quer facultando antecipadamente uma chave destes.
Ora, para além de não ser, na prática, viável facultar uma lista com a identificação de todas as pessoas que se deslocam ou eventualmente irão deslocar ao prédio dos réus, nomeadamente para contactar estes, tal pretensão dos autores constituiria uma intromissão ilegítima na esfera de privacidade dos réus (arts. 80º do CC e 26º da CRP), pois que dessa forma teriam acesso a informações sobre a vida destes, no que toca às pessoas (ou parte delas) que com eles privam.
Ademais, desse conhecimento não adviria qualquer vantagem para os autores, na medida em que estes não poderiam limitar o acesso de qualquer dessas pessoas, desde que o mesmo fosse autorizado pelos réus.
Assim, ao não informarem os autores da identidade das pessoas que acedem ao seu prédio, não violaram, pois, os réus os deveres impostos pela boa fé, nem o direito de propriedade dos autores.
Improcede, assim, neste ponto a apelação.

Uma nota final:
Apesar de nas suas alegações terem aludido ao pedido de condenação dos réus numa sanção pecuniária compulsória por cada vez que seja violada a obrigação imposta aos réus de fecharem os portões, nas conclusões e pedido final formulada no recurso não se aludiram a tal (mas sim aos pedidos formulados na p.i. sob as alíneas a), b) e d), razão pela qual esta Relação não poderá apreciar tal pretensão.
*
VIII. Pelo exposto, delibera-se:
1. Julgar a apelação parcialmente procedente revogando-se, em parte, a sentença recorrida, e, em consequência:
- julga-se improcedente o pedido de condenação dos autores/reconvindos na retirada dos portões com chave em causa nos autos, absolvendo-se estes do mesmo;
- condenam-se os réus a deixarem e a assegurarem que fiquem trancados e fechados os aludidos portões existentes no prédio dos autores, sempre que utilizem por eles próprios e terceiros por eles autorizados, a servidão de passagem;
2. No demais, mantém-se a sentença recorrida;
3. Custas devidas em 1ª instância: as da acção ficam a cargo dos autores e réus, na proporção de 8/9 e 1/9, respectivamente, sendo as da reconvenção pelos réus;
4. Custas devidas nesta Relação pelos apelantes e pelos apelados, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente;
5. Notifique.

Évora, 9 de Julho de 2009


--------------------------------------
(Manuel Marques - Relator)

------------------------------------(dispensei o visto)
(Pires Robalo - 1º Adjunto)

-------------------------------------(dispensei o visto)
(Jaime Pestana - 2º Adjunto)