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CONTRA-ORDENAÇÕES
DESPACHO INTERLOCUTÓRIO
INADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Sumário
1. No âmbito do processo contra-ordenacional apenas é admissível recurso para a Relação das decisões enumeradas taxativamente no art. 73.º do RGCO.
2. É irrecorrível o despacho judicial que indeferiu a inquirição da autoridade administrativa que havia aplicado a coima sob impugnação.
3. A limitação do direito ao recurso (para o Tribunal da Relação) das decisões judiciais proferidas no processo de contra-ordenação colhe a sua justificação na natureza do ilícito de mera ordenação social e das sanções que lhe correspondem (coimas): enquanto os bens jurídicos cuja tutela é confiada ao direito penal assumem um mínimo ético, as condutas integradoras daquele ilícito, apesar de socialmente intoleráveis, são axiologicamente neutras e as coimas têm carácter meramente económico-administrativo.
Texto Integral
I. Inconformado com despacho do M.mo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Moura, proferido no âmbito do processo de contra-ordenação n.° 226/08.9TBMRA, que indeferiu a requerida inquirição da autoridade administrativa que lhe aplicou a coima de 500 euros (pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 34.°, n.º 2, al. b), do DL n.º 78/2004, de 3ABR, na redacção introduzida pelo DL n.° 126/2006, de 3JUL) e não se pronunciou sobre a inquirição dos autuantes, também por ele requerida, dele interpôs recurso o arguido J.G.
Considerando que tal despacho é irrecorrível, no que concerne à inquirição da autoridade administrativa que aplicou a referida coima, o M.mo Juiz não admitiu o recurso e - considerando que, "por manifesto lapso", não se pronunciara sobre a inquirição dos autuantes, reputada relevante - determinou que se procedesse à inquirição destes, na audiência de discussão e julgamento.
De novo inconformado, reclamou o arguido, nos termos do art° 405° do CPP.
Mantido o despacho reclamado, cumpre decidir.
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II.1. Para concluir pela irrecorribilidade de tal despacho louvou-se o M.mo Juiz na seguinte fundamentação:
"O indeferimento da inquirição da testemunha foi-o nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 72°, na 2 RGCO, por se ter entendido não ser pertinente a inquirição da testemunha pois que a mesma não pode depor sobre os factos mas apenas e só sobre a decisão que proferiu à qual o tribunal tem acesso.
O artigo 73° RGCO define, em relação ás contra-ordenações, que decisões são recorríveis.
Compulsado o respectivo teor, não se nos afigura recorrível o despacho em crise por se tratar de despacho interlocutório, o qual, nos termos da norma citada não é passível de recurso.
Assim, e por inadmissibilidade legal se rejeita o recurso interposto a fls. 73 e ss. Desentranhe e devolva ao apresentante."
Contra este entendimento insurge-se, porém, o arguido, repousando o seu inconformismo na seguinte argumentação:
"l - Refere o despacho recorrido que o recurso interlocutório do despacho de fls. 63 não é admissível, face ao art° 73° do RGCOC.
2 - E tem toda a razão tal asserção.
3 - Só que, e conforme se pode ver do seu intróito, tal recurso não foi interposto ao abrigo do citado art° 73° mas sim dos art°s 399° e ss do CPP 'ex vi' do art° 41 ° do RGCOC, pois que
4- Destes despachos interlocutórios tem-se entendido, na análise ao art° 73° n° 2 que: ”No n° 2, a expressão para além dos casos enunciados no número anterior refere-se apenas às decisões finais previstas nesse número, não resultando daí a irrecorribilidade dos despachos judiciais não previstos neste artigo. Assim, aos despachos judiciais, proferidos do decorrer do processo, aplica-se o disposto nos artigos 399°, 400°, n° l a) e b} e 401°, n° l a), b), d) e n° 2, todos do Código de Processo Penal, (António Beça Pereira in RGCOC, Almedina, anotações ao art° 73º).
5 - E que, ao não ser assim, se um despacho interlocutório enviesasse todo o processo e conduzisse a uma denegação de justiça (como é o caso de impedir a prova) não fosse passível de recurso, tal se configuraria como ilegal e até inconstitucional, por impedir-se através do não recurso uma defesa condigna dos arguidos, pelo que o art° 73° do RGCOC versa apenas sobre a sentença, mas não pode impedir os recursos interlocutórios face ao art° 41° do mesmo regime que remete todo o restante para o CPP (como é o caso da presente reclamação, que aqui também tem a sua base legal; regime de prova; audiência etc. etc.).
6- E, de qualquer forma, o recurso foi tacitamente admitido, já que se decidiram no despacho recorrido as conclusões l ° (ouvirem-se os autuantes) e 5° (invocar-se a base legal), já que a 'correcção' do despacho não é possível face ao art° 414° n.° 4 do CPP pois que tal norma não se aplica aos recursos não admitidos, pelo que o presente despacho, e nesta parte, se configura também como ilegal e nulo, pois não é a sede própria para se repararem erros de despacho recorrido mas tão-só e unicamente para decidir-se e fundamentar-se da admissibilidade ou não do recurso interposto (até porquê a reparação do despacho recorrido e não admitido, neste ora reclamado, não admite técnica e legalmente o contraditório, pois não se concorda com a aplicação única e exclusiva do art° 72° do RGCOC para os fins probatórios do arguido, o que, por si só, implicaria novo recurso que (já o sabemos pela 1.ª instância), não será também admissível.
7 - Ou seja: o recurso é admissível sob pena da interpretação restritiva dada ao art° 73° do RGCOC, no sentido de exclusividade de recurso, conjugada com a aplicação do art° 41° do RGCOC aos recursos interlocutórios, aplicando-se o CPP, as tornar inconstitucionais, por violação dos art°s 20° n° l e 5 e 32° n° l da CRP”.
11.2. Vejamos qual das posições deve prevalecer.
Liminarmente, porém, importa recortar o âmbito da reclamação prevista no art.° 405.° do CPP, já que o Reclamante assaca ao despacho reclamado (com o fundamento de que "não é a sede própria para se repararem erros de despacho recorrido") o vício da nulidade, questão esta que se prende com a da hipotética nulidade do despacho recorrido, por omissão de pronúncia sobre a inquirição dos autuantes.
Tais questões (nulidade do despacho recorrido e sanação no despacho reclamado ao ser ordenada a inquirição dos autuantes na audiência de julgamento) extravasam o âmbito da reclamação a que alude o cit. art.° 405°, nos termos do qual o recorrente apenas pode reclamar do despacho que não admitir ou que retiver o recurso.
Aliás, o recurso não é o meio adequado para reagir contra o despacho posto em crise, na parte relativa à arguida nulidade.
E a questão da admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso coloca-se relativamente a decisões. De harmonia com o brocardo quod capita tot sententiae, na sentença há tantas decisões distintas quantos forem os capítulos ou partes que ela contiver. A solução dada pelo tribunal a cada uma das questões submetidas à sua apreciação (ou conhecidas oficiosamente) constitui um capítulo diferente ou uma parte distinta da decisão.
A questão que reclama solução consiste, pois, em saber se o despacho recorrido, exarado a fls. 258/259, na parte em que indefere a requerida inquirição da autoridade administrativa, admite ou não recurso.
Assim circunscrita a questão a decidir, vejamos qual a resposta a dar-lhe.
11.3. De harmonia com o disposto no art.º 41. °, n.º l, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (RGCOC), aprovado pelo DL n° 433/82, de 270UT, "sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal".
Por força desta remissão global, os preceitos reguladores do processo criminal, devidamente adaptados, são genericamente erigidos em normas integradoras do processo contra-ordenacional, o que significa que as normas do processo penal (devidamente adaptadas) só não são aplicadas quando do RGCOC ou de legislação especial ou da CRP (que, em matéria de processo criminal, apenas consente certas limitações de direitos fundamentais) resulte o afastamento de tais normas.
Ora, o art.° 73° do RGCOC especifica quais as "decisões judiciais que admitem recurso" (epígrafe do artigo). Trata-se de uma enumeração exaustiva.
E, não havendo lacuna de regulamentação, vedado está apelar à aplicação do disposto nos artigos 399. °, 400.°, n.º l, a) e b) e 401.°, n.º l, a), b), d) e n° 2, todos do CPP, ao processo contra-ordenacional, cuja aplicação é afastada pelo cit. art.º 73.°
Com efeito, n.º l daquele artigo apenas permite que se recorra de decisões finais proferidas no processo contra-ordenacional - e só de decisões finais que conheçam do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa.
O n.° 2 refere-se, também exclusivamente, a decisões finais [poderá a Relação (...) aceitar o recurso da sentença], o que vale por dizer que aquele n.° 2 alarga a possibilidade de recurso das decisões finais à hipótese nele prevista: "quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência."
Contrariamente, pois, ao que defende o Reclamante, a expressão "para além dos casos enunciados no número anterior" significa que das decisões finais - e só das decisões finais, repete-se - pode ainda, excepcionalmente, ser interposto recurso (pelo arguido ou pelo MP°) "quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência", devendo, neste caso, o requerimento a solicitar à Relação que receba o recurso acompanhar este, antecedendo-o (art° 74°, n.° 2 do RGCOC).
Ao invés do que sucede no processo penal, em que - por exigência do princípio constitucional das garantias de defesa, com assento no art.° 32.°, n.° l, da Lei Fundamental - vigora o princípio geral da admissibilidade de recurso das sentenças e dos despachos judiciais, sempre que a irrecorribilidade não esteja prevista na lei (art.° 399.° do CPP), no processo contra-ordenacional a regra é a da irrecorribilidade das decisões judiciais.
E o que decorre da disciplina dos recursos estabelecida no RGCO, maxime dos art.º73.º,n.ºs l e 2 e 63.º, n.º2.
Questão que se situa em área estranha á da presente reclamação é a de saber se o despacho recorrido pode ser impugnado no recurso que, eventualmente, vier a ser interposto da sentença.
A limitação do direito ao recurso (para o Tribunal da Relação) das decisões judiciais proferidas no processo de contra-ordenação colhe a sua justificação na natureza do ilícito de mera ordenação social e das sanções que lhe correspondem (coimas): enquanto os bens jurídicos cuja tutela é confiada ao direito penal assumem um mínimo ético, as condutas integradoras daquele ilícito, apesar de socialmente intoleráveis, são axiologicamente neutras e as coimas têm carácter meramente económico-administrativo.
A admissibilidade de recurso de decisões interlocutórias no processo contra- ordenacional, não sendo imposta constitucionalmente, estaria mesmo em oposição com a natureza daquele tipo de processo onde impera a celeridade e menor formalismo.
Aliás, se nem todas as decisões finais são recorríveis, por maioria de razão se impõe a conclusão da inadmissibilidade de recurso dos despachos interlocutórios [1]
Assim, não estando contemplado no catálogo das decisões recorríveis, com assento no cit. art.° 73.°, é irrecorrível o despacho posto em crise.
Neste sentido decidi, entre outros, nos despachos proferidos em 15SET04, 130UT04 e 3NOV04, no âmbito das Reclamações n°s 1976/04, 2296/04 e 2473/04, respectivamente.
Diga-se, por último, que, o princípio constitucional contido no art.º 20. °, n.º l, da Lei Fundamental "imperativamente" apenas garante um grau de jurisdição, o que, no regime do processo contra-ordenacional está, desde logo, assegurado pela norma do art.º 59.° da respectiva lei quadro, que garante a impugnação judicial das decisões da autoridade administrativa perante o juiz da comarca em cuja área territorial tiver sido praticada a infracção. [2]
O art.º 32. °, n.º l, da CRP respeita apenas ao processo criminal, stricto sensu. Por sua vez, o n.º 10 do mesmo artigo garante ao arguido os "direitos de audiência e defesa", nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios.
Aliás, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, com o aplauso da doutrina, tem repetidamente afirmado que o princípio do direito ao recurso das decisões dos tribunais, por forma a que haja um duplo grau de jurisdição, consagrado no art.º 32. °, n.º l da Lei Fundamental, não é absoluto, mesmo em matéria penal.
Como pode ler-se no Ac. do TC, n.º 31/87, de 28JAN87 [3] , há-de admitir-se que "essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido".
E as normas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não consagram, em matéria de acesso à justiça, direitos e princípios que não estejam já contidos nos art.º 20°, n° l e 13.° da CRP (cfr. Acs. do TC, n°s 163/90, 210/92, 346/92, 275/94, 403/94 e 739/98 e Carlos Lopes do Rego, Acesso ao Direito e aos Tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, p. 83).
Conclui-se, pois que só as decisões finais são recorríveis (art.° 73.°, n.ºs l e 2). A única excepção que esta regra consente encontra-se no n.° 2 do art.° 63.°
Assim, não sendo final, a decisão em posta em crise é irrecorrível.
III. Face ao exposto, indefere-se a reclamação.
Custas pelo Reclamante.
Évora, 28 de Setembro de 2009.
(Elaborado e integralmente revisto pelo signatário)
(Manuel Cipriano Nabais)
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[1] - Cfr. Manuel Simas Santos/Jorge Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, pp. 400 e ss, e António Oliveira Mendes/ José dos Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, pp. 186-188 [2] - Ac. n.° 34/93, do TC, de 12MAI93, in BMJ, 427-147 [3] - In DR, II série, de 9FEV87 e BMJ, 363-191)