FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
LEGITIMIDADE
INDEMNIZAÇÃO CIVIL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
RESSARCIBILIDADE
Sumário


1. As Câmaras Municipais não se podem considerar ofendidas ou especialmente ofendidas quando alguém comete uma infracção sobre matéria integrada na sua competência.

2. Do disposto nos arts. 483.º, 495.º, n.º2 e 496.º, n.º2, todos do Código Civil, resulta a regra de que a ressarcibilidade dos danos está reservada aos danos directos sofridos pela vítima da conduta do lesante, salvo as excepções fixadas no n.º 2 do art. 495.º referido, aplicável quer em caso de morte da vítima quer em caso de simples lesão corporal não mortal, e salvo o caso de morte da vítima, segundo o previsto na n.º2 do art. 496.º mencionado.

3. Só tem direito à indemnização por danos não patrimoniais o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com violação de disposição legal, não o terceiro que só reflexa ou indirectamente seja prejudicado. Apenas excepcionalmente a indemnização pode competir também ou caber a terceiros. Assim sucede nos casos versados no art. 496.º do CC (lesão corporal ou lesão que provoca a morte da vítima).

Texto Integral


Acordam, precedendo conferência, na Secção Criminal desta Relação de Évora:

I - Relatório
Nos autos de processo comum... do 3.º Juízo Criminal da Comarca de Setúbal, mediante acusação do Ministério Público, foram submetidos a julgamento, por tribunal singular, os arguidos V.P., J.C., T.P., M.C., H.L. e M.O., melhor identificados nos autos, sendo imputada aos 4 primeiros arguidos a prática, em co-autoria material, de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.256.º n.º1, alin. b) e n.º3 do C. Penal, com referência ao art. 255.º, alin. a) do mesmo Código, e pelos dois últimos arguidos de um crime de falsificação de documento, p. e p. nos mesmos termos.

Por acórdão desta Relação de Évora, proferido em 25 de Fevereiro de 2003, foi decidido alterar a qualificação jurídica aos factos objecto acusação, entendendo-se que aos arguidos apenas poderia ser imputada a prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º n.º1, alin. b) e n.º3 do Código Penal.

Por ter falecido o arguido M.O., foi declarado extinto, quanto a ele, o procedimento criminal.


A Câmara Municipal do … formulou contra os referidos arguidos pedido de indemnização civil impetrando a condenação solidária dos demandados no pagamento de uma indemnização a seu favor, por danos não patrimoniais ou morais, no montante de €4500,00, como melhor consta de fls.503 a 506.

Efectuado o julgamento, por sentença proferida em 28 de Outubro de 2004, o tribunal decidiu nos seguintes termos:

1 — Condenar o arguido V.P., pela prática, em co-autoria material, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 256.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3, e 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 4 €, perfazendo o montante de 800 €, subsidiariamente 133 (cento e trinta e três) dias de prisão.

2 — Condenar o arguido J.C., pela prática, em co-autoria material, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 256.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3, e 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 5 €, perfazendo o montante de 1.000 €, subsidiariamente 133 (cento e trinta e três) dias de prisão.

3 — Condenar a arguida T.P., pela prática, em co-autoria material, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 256.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3, e 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 3 €, perfazendo o montante de 600 €, subsidiariamente 133 (cento e trinta e três) dias de prisão.

4 — Condenar a arguida M.C., pela prática, em co-autoria material, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 256.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3, e 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 3 €, perfazendo o montante de 600 €, subsidiariamente 133 (cento e trinta e três) dias de prisão.

5 — Condenar o arguido H.L., pela prática, em co-autoria material, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 256.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3, e 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 3 €, perfazendo o montante de 600 €, subsidiariamente 133 (cento e trinta e três) dias de prisão.

6 — Condenar os arguidos V.P., J.C., T.P., M.C. e H.L., a pagar à Câmara Municipal do …, solidariamente, indemnização por danos não patrimoniais no montante de 4.500 € (quatro mil e quinhentos euros).

7 — Declarar extinta a instância quanto a M.O., no que respeita ao pedido de indemnização civil deduzido pela Câmara Municipal do …, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos dos artigos 276.º, n.º 3 e 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil.

Inconformados, os arguidos-demandados vieram interpor recurso da sentença, limitando, contudo, a sua dissidência, à condenação cível, cuja revogação pedem.

Extraíram da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“ 1.ª - O presente recurso circunscreve-se à parte da douta sentença que condenou os arguidos a indemnizar a Câmara Municipal do …;

2.ª - Os crimes de falsificação de documentos pelos quais os arguidos foram condenados lesaram, é certo, a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório e, eventualmente, os interesses dos outros comproprietários do prédio rústico do qual foram desanexados os ditos lotes através do processo que se iniciou nas escrituras pública;

3.ª - A Câmara Municipal do …não sofreu qualquer dano, uma vez que não ficou demonstrado que os atrasos verificados no processo de reconversão urbanística da AUGI FF-57 tenham tido alguma relação com os factos em causa, porquanto as largas dezenas de AUGI existentes no concelho encontram-se, na sua grande maioria, em fases processuais análogas à da AUGI FF-57;

4.ª - Por outro lado, a AUGI em causa é da "iniciativa dos particulares", não da Câmara Municipal do …, pelo que, só estes, poderiam ser lesados;

5.ª - A Câmara Municipal do … não tem o mínimo de fundamento para o pedido que formulou, invocando prejuízos relativos ao "significativo atraso no recebimento das rendas provenientes das taxas com a emissão dos alvarás do loteamento ou de licença de construção e com a emissão das licenças de utilização para cada edificação...", porquanto, a colher esse raciocínio, teria a C.M…. fundamento legal para agir contra todos os munícipes que, sendo proprietários de terrenos urbanizáveis, os não loteassem, ou donos de lotes de terreno para construção, neles não contruíssem ou, levado o raciocínio mais longe, proprietários de casas com valor patrimonial baixo, as não reconstruíssem de novo para, assim a receita municipal ser maior;

6.ª - Isto é, a colher a fundamentação da C.M….., todos aqueles que, com os seus actos ou omissões, pudessem "atrasar" a concretização das expectativas de receitas futuras da C.M…. deveriam ser judicialmente accionados, o que implicaria o emergir de muitas dezenas de milhares de processos;

7.ª - É absurda a fundamentação do pedido cível da Câmara, por outro lado, uma vez que as "taxas" a que diz ter direito destinam-se a pagar serviços prestados em troca (é essa a natureza jurídica das taxas: paga-se um serviço que é prestado), pelo que, enquanto os mesmos não estiverem concluídos pela própria Câmara, não faz sentido alegar que a mesma tem direito a auferi-las;

8.ª - A Câmara Municipal não determinou, nem o poderia fazer, aliás, por se ter limitado a construir uma ficção, como calculou os seus prejuízos em € 4.500,00;

9.ª - A sentença, obviamente, também enferma desse vício;

10.ª - A Câmara Municipal, por não ter mantido uma qualquer relação material controvertida com os arguidos, uma vez que nenhum deles beliscou um seu direito subjectivo ou interesse legalmente protegido, não tem qualquer direito a ser indemnizada por estes.”

O recurso, não obstante ter sido interposto em 8 de Novembro de 2004, apenas veio a ser admitido por despacho de 21de Junho de 2005 (fls.668 e 711). E tal despacho, incompreensivelmente, só em 11 de Julho de 2008 foi notificado aos demais sujeitos processuais (cf. fls.712 a 714).

Contra motivou apenas o Município do … nos termos constantes de fls.721 a 724, sustentando que deve ser mantida a decisão recorrida, tendo referido, em sede de conclusões o seguinte:

1.ª - Os recorrentes “atacam” a condenação no pedido de indemnização civil com base num errado pressuposto.

2.ª - Na realidade, no presente recurso são apenas questionados os danos patrimoniais causados ao ora recorrente,

3.ª - O Município ora recorrido não pediu a condenação dos ora recorrentes no ressarcimento de danos patrimoniais.

4.ª - Verifica-se, assim, que improcede absolutamente toda a argumentação e fundamentação ao presente recurso.

5.ª - A condenação pelo Tribunal a quo assentou no reconhecimento dos danos não patrimoniais sofridos pelo Município ora recorrido com a conduta dos recorrentes, cujo ressarcimento foi pedido nos autos.

6.ª - O pedido de condenação solidária dos recorrentes no pagamento da quantia de € 4,500 (quatro mil e quinhentos euros) assentou nos danos não patrimoniais invocados e que resultaram provados, tratando-se de um montante justo e adequado ao seu ressarcimento.”

Os autos foram remetidos a esta instância apenas em 17 de Fevereiro, p.p, e, continuados com vista à Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta, esta, não emitindo parecer sobre o fundo da questão, por entender que este é de natureza cível, é do entendimento que os recorrentes deveriam ser notificados para darem cabal cumprimento ao disposto no n.º2 do art. 412.º do CPP, sob pena de rejeição.

Foi cumprido o disposto no art. 417.º n.º2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta por parte dos recorrentes.

Foi, de seguida, formulado convite aos recorrentes para completarem as conclusões do recurso com as indicações exigidas pelo n.º2 do art. 412.º do CPP, vindo estes a requerer o aditamento das seguintes conclusões:

- O CPP, no seu art. 74.º(Legitimidade e poderes processuais) refere expressamente que “o pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime”;

- Ora, a verdade é que a Câmara Municipal do …, desde logo, não consiste numa pessoa juridicamente relevante (art. 68.º n.º1 do CPP), uma vez que não é uma pessoa singular, nem colectiva (art. CC);

- De facto, a pessoa colectiva representada pela CM…é o municipio do …, não a Câmara Municipal em si mesma, que não passa de um mero órgão do município, tal como a assembleia municipal, entre outros;

- Assim, o lesado a existir é o município representado pela Câmara, não esta;

- Não deveriam, pois, os arguidos ser condenados a indemnizar uma pessoa colectiva inexistente – a Câmara Municipal do….;

- Violou, portanto, a douta sentença o disposto no art. 68.º n.º1 do CPP;

- Por outro lado, a verdade é que o município do …, que não foi parte do processo ora em causa, como atrás se referiu, não sofreu quaisquer danos, patrimoniais ou morais, uma vez que dos factos provados tal não resulta.”

Termina pedindo a revogação da sentença recorrida, com as consequências legais.
Foi cumprido o disposto no n.º5 do art. 417.º do CPP, vindo o Município do …a responder no sentido da rejeição do recurso, de harmonia com o disposto no n.º3 do art. 417.º do CPP, alegando que o aperfeiçoamento das conclusões continuar a desrespeitar o n.º2 do art. 412.º do mesmo Código, ou, se assim não se entender, deve ser-lhe negado provimento e reconhecer-se o Município do … como o titular do direito ao pagamento da obrigação de indemnização fixada nos autos, com as legais consequências, tendo formulado as seguintes conclusões:

1.ª - Os recorrentes não deram cumprimento ao que lhes fora ordenado, isto é, "darem cabal cumprimento ao preceituado no n.º 2 do art. 412° do CPP, sob pena de rejeição do recurso que interpuseram."

2.ª - No requerimento ora apresentado, os recorrentes vêm acrescentar 7 pontos que traduzem matéria nova, não contemplada pela motivação do recurso, pelo que é insusceptível de constar das respectivas conclusões, as quais devem sumariar os fundamentos do recurso.

3.ª - A motivação do presente recurso continua a desrespeitar o disposto nas alíneas do n.° 2 do art. 412° do CPP.

4.ª - O putativo aperfeiçoamento das conclusões do recurso a que se responde, vem violar o n.º1 do mesmo preceito legal, pois ao invés de resumir os fundamentos da motivação do recurso, vem carrear matéria nova e alheia em relação ao alegado.

5.ª - O pedido de indemnização civil formulado nos autos tem, naturalmente, como sujeito a pessoa colectiva de direito público - Município do Seixal.”

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir:

II – Fundamentação
Na 1.ª instância foram dados como provados e não provados, os seguintes factos:
Factos Provados:

1. No dia 8 de Julho de 1999, no Segundo Cartório Notarial de Setúbal, os arguidos outorgaram duas escrituras de justificação notarial relativas aos lotes 548 e 549, respectivamente, sitos na Rua …, Redondos, Fernão Ferro, Seixal e compostos por 302,5 m2 de terreno para construção urbana, cada.

2. Nas referidas escrituras, os arguidos V.P., J.C., T.P. e M.C. declararam que os mencionados prédios não se encontravam descritos na competente Conservatória do Registo Predial do Seixal, encontrando-se inscritos na matriz predial urbana da freguesia de Arrentela, em nome dos justificantes maridos sob os artigos 8855 e 8856, respectivamente.

3. Declararam, ainda, que os indicados prédios lhes vieram à posse por compra verbal, antes de 1971, a um J.D., sem que tenham titulado formalmente a compra então acordada, tendo desde essa data entrado na posse do indicado prédio com animus possidendi.

4. Que desde essa data têm possuído e mantido sem violência e sem oposição, ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, em nome próprio e com aproveitamento de todas as utilidades, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, quer usufruindo como tal o imóvel, quer suportando os respectivos encargos, conduzindo à aquisição do imóvel por usucapião.

5. H.L. e M.O. declararam que confirmavam as declarações prestadas pelos restantes arguidos por corresponderem inteiramente à verdade.

6. Porém, apesar de advertidos da responsabilidade criminal em que incorriam, os arguidos prestaram e confirmaram declarações que não tinham correspondência com a verdade.

7. Com efeito, os referidos lotes 548 e 549 eram parte integrante do prédio rústico, sito no Redondo, freguesia de Arrentela, composto de terreno de cultura arvense e mato, com a área total de 110.837 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o n.º 28791, a fls. 64 do lv B-79 e em 19 de Março de 1996, essas parcelas de terreno tinham sido registadas em nome de “Predial…. – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.” por compra a A.D. e mulher, P.D. e descritas sob o n.º 28791, G-137/80843, do livro B-79.

8. Por esse motivo, “Predial… – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.” era comproprietária de 605/110.837 avos indivisos do aludido prédio descrito sob o n.º 28791, do livro B-79, freguesia de Arrentela.

9. E, em 20 de Janeiro de 1999, foi registada a aquisição a favor dos arguidos V.P. e J.C., por compra a J.F. e mulher M.F. e J.D. e mulher M.D., do aludido direito a 605/110.837 avos indivisos, no prédio descrito sob o n.º 28791, 82110, a fls. 64, do livro B-79.

10. Em poder das referidas escrituras de justificação notarial obtidas da forma descrita, em 22 de Setembro de 1999, através das apresentações 47/990922 e 48/990922, os arguidos V.P., T.P., J.C. e M.C., registaram na Conservatória do Registo Predial do Seixal, a aquisição a seu favor por usucapião, dos lotes 548 e 549, sito na Rua …, Redondos, Fernão Ferro, Seixal, compostos por 302,5 m2 de terreno urbano para construção, cada.

11. Com as descritas condutas, visaram os arguidos transformar as aludidas parcelas de terreno rústico e indiviso num terreno urbano apto para construção.

12. Os arguidos V.P., T.P., J.C., M.C. e H.L. previram e quiseram agir do modo acima descrito, actuando de comum acordo e em conjugação de esforços, com o propósito concretizado de fazerem constar da escritura de justificação notarial factos que sabiam não corresponder à verdade, molestando a fé pública, a credibilidade e a confiança que são depositadas nas escrituras públicas.

13. Os arguidos previram e quiseram agir do modo acima descrito, actuando de comum acordo e em conjugação de esforços, com o propósito concretizado de fazerem constar do registo predial facto que sabiam não corresponder à verdade, molestando a fé pública, a credibilidade e a confiança que são depositadas no registo predial.

14. Os arguidos sabiam que tais condutas lhes estavam vedadas por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições ainda assim não se inibiram de as realizar.

15. Os arguidos V.P. e T.P., eram sócios da sociedade “Predial… – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.”.

16. Para financiar a construção de quatro moradias nos dois lotes de terreno em causa nos autos, os arguidos V. e J. solicitaram à Caixa Geral de Depósitos um empréstimo no montante de 50.000.000$00 (actualmente, 249.398,95 €), instituição que os informou de que apenas lhes concederia o referido financiamento se os lotes onde as mesmas estavam a ser construídas se encontrassem descritos na conservatória respectiva com a área representada em metros quadrados.

17. Como os lotes em causa se encontravam descritos na Conservatória do Registo Predial do Seixal em avos, fazendo parte de um prédio rústico e indiviso e tendo o arguido V. sido informado de que através de uma escritura de usucapião conseguiriam transformar aqueles lotes integrados no prédio mãe em dois prédios urbanos aptos para construção, dirigiu-se ao arguido J. e informou-o de que aquela seria a forma de obter o empréstimo junto da Caixa Geral de Depósitos.

18. O arguido J. concordou com a realização da referida escritura de usucapião, tendo ambos informado as suas respectivas mulheres, as arguidas T. e M., da necessidade de praticar tal acto, tendo estas manifestado também a sua concordância.

19. Os arguidos solicitaram, ainda, a ajuda do arguido H.L. para os acompanhar na outorga da referida escritura, este na qualidade de testemunha.

20. Assim, os arguidos V.P., T.P., J.C., M.C. e H.L. agiram do modo supra descrito em 1. a 6., com o propósito concretizado de alcançar a verificação do requisito imposto pela Caixa Geral de Depósitos para conceder aos arguidos V.P. e J.C. o financiamento que estes pretendiam.

21. Como consequência das condutas dos arguidos supra descritas, passou a existir uma duplicação de inscrições dos mesmos dois lotes em diferentes descrições prediais, nomeadamente na descrição do prédio indiviso descrito sob o n.º 28791 e nas descrições com os números 1278 e 1279, nos quais passaram a constar os arguidos V., J., T. e M., como titulares inscritos.

22. A conduta dos arguidos implicou uma violação do regime legal dos loteamentos por ter consubstanciado desanexações ilegais e não tituladas de terrenos pertencentes a um prédio rústico, sem a necessária licença camarária e a inadvertida e ilegal conversão das respectivas áreas de avos para metros quadrados.

23. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 28.791, identificado em 7., constitui uma Área Urbana de Génese Ilegal (AUGI FF-57).

24. Os factos praticados pelos arguidos, gerando a conversão dos avos em metros quadrados prejudicaram o normal andamento do procedimento de legalização da A.U.G.I. e a consequente emissão do título de reconversão, sem o qual não é possível emitir as licenças de utilização definitivas para cada edificação.

25. O referido em 24. conduz ao significativo atraso no recebimento das rendas provenientes das taxas com a emissão do alvará de loteamento para a A.U.G.I. em apreço, com a emissão dos alvarás de licença de construção e com a emissão das licenças de utilização para cada edificação, a par das taxas de reforço e ligação às infra-estruturas urbanísticas, as quais não foram recebidas pela Câmara Municipal do ….

26. O referido em 24. conduz também à deterioração da imagem, da reputação e do bom nome da Câmara Municipal do …, os quais ficaram prejudicados e fortemente afectados perante todos os munícipes, em especial com os envolvidos no processo de reconversão da A.U.G.I. que anseiam a legalização e resolução dos seus problemas.

27. O problema das A.U.G.I. afecta em larga escala o Município do…, pelo que tem sido um dos objectivos principais do executivo municipal legalizar e resolver estas situações, a fim de corresponder às fortes expectativas dos munícipes, criadas pela Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro.

28. O procedimento dos arguidos acima descrito veio consubstanciar mais um foco de problemas e dificuldades no processo de reconversão e legalização da A.U.G.I. onde se inserem os terrenos em causa, contribuindo para atrasar o seu andamento e causando prejuízos à Câmara Municipal do ….

29. Para além disso, a visibilidade de tal conduta suscita nos demais interessados sérias dúvidas quanto ao procedimento de reconversão, atenta a forma expedita de que os arguidos lançaram mão, colocando assim em grave crise as atribuições municipais e o exercício das competências legalmente previstas, ao serviço do interesse público.

30. O arguido V.P. é vendedor imobiliário, auferindo um rendimento mensal em média de 1.000 €.

31. O arguido V.P. reside em casa própria, o seu agregado familiar é composto por duas pessoas, sendo ele o responsável pelo sustento da casa.

32. A arguida T.P. é doméstica, vive em casa própria, sendo o seu agregado familiar composto por si própria e pelo arguido V.P., seu marido.

33. O arguido J.C. é construtor civil, tendo auferido no ano de 2003 um montante de cerca de 30.000 €.

34. O arguido J.C. vive em casa própria e o seu agregado familiar é composto por duas pessoas, sendo ele o responsável pelo sustento da casa.

35. Presentemente, o arguido J.C. encontra-se a pagar somente os juros de um empréstimo que contraiu para o exercício da sua actividade profissional, no montante global de 125.000 €.

36. A arguida M.C. é doméstica, vive em casa própria, sendo o seu agregado familiar composto por si própria e pelo arguido J.C., seu marido.

37. Os arguidos V.P., J.C., T.P. e M.C., têm como habilitações literárias, o 4.º ano de escolaridade.

38. Os arguidos V.P., T.P., J.C., M.C. e H.L. não têm antecedentes criminais.

39. Os arguidos V.P, T.P., J.C. e M.C. diligenciaram e promoveram o cancelamento das descrições dos referidos lotes criadas, em metros quadrados, junto da Conservatória do Registo Predial do … bem como pela anulação das escrituras de justificação outorgadas no Segundo Cartório Notarial de … com a intenção de repor a situação existente antes da prática dos factos acima descritos e em causa nestes autos.

40. Os arguidos V.P., J.C., T.P. e M.C. admitiram os factos e revelaram arrependimento.

FACTOS NÃO PROVADOS:

1. Os factos praticados pelos arguidos, gerando a conversão dos avos em metros quadrados continuam a prejudicar o normal andamento do procedimento de legalização da A.U.G.I. e a consequente emissão do título de reconversão, sem o qual não será possível emitir as licenças de utilização definitivas para cada edificação.”
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O tribunal “a quo” fundamentou o julgado quanto à matéria de facto nos seguintes termos:

“O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações parcialmente confessórias dos arguidos V.P., J.C., T.P. e M.C., conjugadas com as regras da razoabilidade e da experiência comum.

Fundaram também a convicção do Tribunal os depoimentos das testemunhas:

- M.T.C. pessoa que à data dos factos e até há cerca de dois anos, exercia as funções de consultora do pelouro do urbanismo da Câmara Municipal do …e que, por isso, conhece o prédio que constitui a Área Urbana de Génese Ilegal referida nos factos provados, conhecendo o modo como se desenrolam os processos de reconversão daquele tipo de áreas e sabendo concretamente como decorreu o processo de reconversão da Área Urbana de Génese Ilegal em causa nos autos até há cerca de dois anos; conhece as práticas utilizadas pelos comproprietários do tipo de prédios em causa para tentarem ultrapassar as dificuldades suscitadas pelo facto de serem áreas de construção ilegal em processo de reconversão, bem como quais as consequências que essas práticas têm tido nos referidos processos e relativamente ao prosseguimento pela Câmara Municipal do …das suas respectivas atribuições nesta área; depôs de uma forma credível e consistente, revelando conhecimento directo de todos os factos que relatou. E

- P.S., chefe de secção na Câmara Municipal do …, pessoa que, em virtude das suas funções, conhece a Área Urbana de Génese Ilegal em causa nos autos, bem como todas as vicissitudes do seu respectivo processo de reconversão, conhece as práticas utilizadas por muitos dos comproprietários daquele tipo de prédios, bem como as consequências que tais práticas têm nos processos de reconversão das Áreas Urbanas de Génese Ilegal respectivas; conhece também o impacto que tais práticas tiveram nos processos de reconversão em curso junto da Câmara Municipal do …., bem como todo o empenho da mesma na conclusão dos mesmos; depôs de uma forma credível e consistente, revelando conhecimento directo de todos os factos que relatou.

Foram tidos em conta pelo Tribunal os documentos constantes de fls. 15 a 320, 336 a 340, 344 a 349, 350 a 354, 355 a 359, 360 a 362.

Quanto às condições pessoais dos arguidos V.P., J.C., T.P. e M.C., o Tribunal formou a sua convicção através das declarações prestadas por cada um deles, tendo os documentos de fls. 554 a 558 determinado a convicção do tribunal no que respeita aos antecedentes criminais.”

Como é amplamente sabido, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões e por elas limitado - veja-se o Ac. do S.T.J. de 19/4/94, C.J., Ano II, Tomo II, pg. 189 e ainda, entre muitos outros, os Ac. do S.T.J. de 29/2/96, proc. n.º 46740, de 21/4/97, proc. n.º 220/97, de 2/10/97, proc. n.º 686/97 e de 27/5/98, proc. n.º 423/98, no C.P.P. Anotado de Simas Santos e Leal Henriques. 2ª Ed., pag. 808, 795 e 797, respectivamente - isto sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença prevenidos no art. 410 n.º2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” - Ac. do Plenário das secções do STJ de 19.10.95, in D.R. I-A Série de 28.12.95.

Das conclusões do recurso, tanto quanto se extrai das mesmas, impõe-se conhecer:

(a) – Se a demandante é parte legítima;

(b) - Se tem ou não direito à indemnização que lhe foi arbitrada.

Como questão prévia, impõe-se conhecer se o recurso deve ou não ser rejeitado, como pede o Município do …

Vejamos:

À primeira vista, seriamos levados a concluir que o aditamento que foi feito às conclusões do recurso, na sequência de convite formulado por este tribunal, constituiria um alargamento do seu âmbito.

Porém, da análise da motivação do recurso verifica-se que as conclusões jurídicas, ora apresentadas, encontram eco naquela.

Com efeito, ao longo da motivação do recurso, os recorrentes põem em causa a legitimidade processual da Câmara Municipal do …, ainda que com reporte ao art. 26.º do CPC – cf. item 58.º da motivação.

É certo que se trata de uma questão nova, pois não foi suscitada, nem conhecida “ex officio” na 1.ª instância, o que não impede, contudo, o seu conhecimento por este tribunal, visto que se trata de um pressuposto processual de conhecimento oficioso.

Por isso que o recurso não é de rejeitar.

Liminarmente dir-se-á que a sentença não enferma de qualquer nulidade e da sua leitura não se detecta a existência dos vícios prevenidos no n.º 2 do art. 410.º do CPP, pelo que se considera fixada a matéria de facto, tal como o tribunal recorrido a considerou.

Apreciando o pedido de indemnização cível, foi exarado na decisão revidenda o seguinte:

“Veio a Câmara Municipal do…deduzir pedido de indemnização civil contra V.P., J.C., T.P., M.C., H.L. e M.O..

M.O. faleceu, tendo sido declarado extinto o procedimento criminal quanto ao mesmo. Ora, o artigo 71.º, do Código de Processo Penal consagra o chamado princípio da adesão, segundo o qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo.

Estabelece-se ali um regime de adesão obrigatória, remetendo, por sua vez, o artigo 129.º do Código Penal a regulação da indemnização por perdas e danos emergentes do crime para a lei civil, ou seja, para o artigo 483.º do Código Civil.

Tal remissão apenas respeita à regulação da indemnização de perdas e danos emergentes do crime. Com efeito, a indemnização civil que interessa ao direito penal e ao processo penal só pode consistir, como se refere expressamente naquele artigo 129.º, na indemnização de perdas e danos emergentes de crime [1] .

O pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem como causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal.

Ora, tendo o procedimento criminal sido declarado extinto quanto a M.O., por morte deste, não pode deixar de concluir-se pela extinção da instância quanto ao mesmo no que se refere ao pedido de indemnização civil, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos dos artigos 276.º, n.º 3 e 287.º, alínea e), do Código de Processo Civil.

Assim, passemos a analisar os fundamentos do pedido de indemnização civil em causa quanto aos arguidos V.P., J.C., T.P., M.C. e H.L..

Estipula o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Consagra este preceito legal os vários pressupostos da obrigação de indemnizar imposta ao lesante. Assim, é necessário que haja um facto voluntário do agente, que esse facto seja ilícito, que haja um nexo de imputação do facto ao lesante, que à violação do direito subjectivo sobrevenha um dano e que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima [2] .

O facto surge como uma acção ou omissão anti-jurídica, revelando-se nos presentes autos na prestação por parte dos arguidos das declarações falsas constantes dos pontos 2., 3., 4. e 5. da factualidade provada, através das quais conseguiram obter o registo referido no ponto 10. da factualidade provada.

Tal acção levada a cabo pelos arguidos preenche o primeiro pressuposto da responsabilidade civil por factos ilícitos, uma vez que se trata de um evento dominável ou controlável pela vontade.

O segundo pressuposto traduz-se na ilicitude, podendo esta revestir duas formas: a violação de um direito de outrem, mais precisamente a violação de direitos subjectivos, nomeadamente direitos de personalidade e direitos sobre as coisas, e a violação de disposição legal que protege interesses alheios.

Ora, de acordo com artigo 371.º do Código Civil, os documentos autênticos têm força probatória plena quanto aos factos que dele constarem.

Por outro lado, a Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 165/99, de 14 de Setembro, estabelece o regime excepcional para a reconversão urbanística das áreas urbanas de génese ilegal.

Tal processo de reconversão pode ser organizado quer como operação de loteamento da iniciativa dos proprietários ou comproprietários das referidas áreas, quer como operação de loteamento ou mediante plano de pormenor da iniciativa da respectiva câmara municipal (artigo 4.º da referida Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 165/99, de 14 de Setembro).

Em qualquer dos casos, é à câmara municipal respectiva que compete tramitar o referido processo de reconversão das referidas áreas urbanas de génese ilegal (cfr. artigos 17.º e seguintes da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 165/99, de 14 de Setembro).

Ora, da factualidade provada, nomeadamente dos pontos 1. a 5., 7. a 17. e 21., resulta clara a violação do direito da colectividade à segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, sendo certo que, face ao que resultou, ainda, provado sob os pontos 22., 23., 24., 25., 26., 27., 28. e 29., verifica-se terem os arguidos violado também com as suas condutas, os direitos subjectivos de cada um dos comproprietários da Área Urbana de Génese Ilegal em que se integram os lotes de terreno em causa a verem reconvertida aquela área e, consequentemente, legalizadas as suas construções, bem como o direito subjectivo da Câmara Municipal do …a conseguir prosseguir as suas atribuições no que respeita àquela matéria.

O requisito seguinte da responsabilidade civil extra-contratual é o nexo de imputação do facto ao lesante, ou seja, a culpa. Para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o seu autor tenha agido com culpa, que a sua conduta mereça a reprovação ou censura do direito, sendo certo que a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo [3] .

Para que o facto ilícito gere responsabilidade exige, assim, a lei que o mesmo esteja ligado ao seu agente, de maneira que possa afirmar-se, não só que foi obra sua, mas também que ele podia e devia ter agido diversamente.

Como foi acima demonstrado, todos os arguidos agiram com dolo directo, encontrando-se, pois, preenchido quanto a eles mais este pressuposto da responsabilidade civil extra-contratual.

Finalmente, para que haja obrigação de indemnizar é ainda essencial que haja dano, ou seja, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém.

Importa aqui apreciar os danos alegados pela Câmara Municipal do …

Vem a Câmara Municipal do…pedir a condenação solidária dos arguidos no pagamento do montante de 4.500 €, a título de danos não patrimoniais sofridos em virtude dos factos dos autos.

Ficou provado nos presentes autos que, em virtude da prestação pelos arguidos das declarações falsas já referidas nas escrituras de justificação referidas em 1. dos factos provados, passou a existir uma duplicação de inscrições dos mesmos dois lotes em causa nos autos em diferentes descrições prediais, nomeadamente na descrição do prédio indiviso descrito sob o n.º 28791 e nas descrições com os números 1278 e 1279, nos quais passaram a constar os arguidos V., J, T. e M., como titulares inscritos (cfr. ponto 21. da factualidade provada).

Ficou ainda provado que tal conduta dos arguidos implicou uma violação do regime legal dos loteamentos por ter consubstanciado desanexações ilegais e não tituladas de terrenos pertencentes a um prédio rústico, sem a necessária licença camarária e a inadvertida e ilegal conversão das respectivas áreas de avos para metros quadrados (cfr. ponto 23. da factualidade provada).

Tais factos, gerando a conversão dos avos em metros quadrados prejudicaram o normal andamento do procedimento de legalização da A.U.G.I. e a consequente emissão do título de reconversão, sem o qual não é possível emitir as licenças de utilização definitivas para cada edificação (cfr. ponto 24. da factualidade provada).

O que conduz ao significativo atraso no recebimento das rendas provenientes das taxas com a emissão do alvará de loteamento para a A.U.G.I. em apreço, com a emissão dos alvarás de licença de construção e com a emissão das licenças de utilização para cada edificação, a par das taxas de reforço e ligação às infra-estruturas urbanísticas, as quais não foram recebidas pela Câmara Municipal do.., gerando também a deterioração da imagem, da reputação e do bom nome da Câmara Municipal do …, os quais ficaram prejudicados e fortemente afectados perante todos os munícipes, em especial com os envolvidos no processo de reconversão da A.U.G.I. que anseiam a legalização e resolução dos seus problemas (cfr. pontos 25. e 26. da factualidade provada).

Afectando o problema das A.U.G.I. em larga escala o Município do …, tem sido um dos objectivos principais do executivo municipal legalizar e resolver estas situações, a fim de corresponder às fortes expectativas dos munícipes, criadas pela Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro (cfr. ponto 27. da factualidade provada), tendo o procedimento dos arguidos acima descrito consubstanciado mais um foco de problemas e dificuldades no processo de reconversão e legalização da A.U.G.I. onde se inserem os terrenos em causa, contribuindo para atrasar o seu andamento e causando prejuízos à Câmara Municipal do … (cfr. ponto 28. da factualidade provada).

Por fim, a visibilidade do tipo de conduta assumida pelos arguidos suscita nos demais interessados sérias dúvidas quanto ao procedimento de reconversão, atenta a forma expedita de que os arguidos lançaram mão, colocando assim em grave crise as atribuições municipais e o exercício das competências legalmente previstas, ao serviço do interesse público.

Dispõe o artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. Ora, face à matéria provada nos presentes autos, dúvidas não restam de que a Câmara Municipal do …. sofreu danos que não podem deixar de considerar-se merecedores da tutela do direito.

Tendo em conta todos os factos provados já referidos, o Tribunal entende ser razoável, adequado e proporcional, aos danos causados pelos arguidos, o montante peticionado no pedido de indemnização civil, fixando nesse montante os danos não patrimoniais em causa.

Também o último requisito da responsabilidade civil extra-contratual - o nexo de causalidade entre o facto e os danos - se encontra preenchido. Com efeito, todos os danos tiveram origem na falsidade consignada pelos arguidos nas duas escrituras de justificação referidas no ponto 1. da factualidade provada, sem a qual não teriam ocorrido.

Assim sendo, consideram-se preenchidos os requisitos do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, tendo a Câmara Municipal do …, direito a ser indemnizada por aqueles, da forma supra descrita.”

Liminarmente dir-se-á que – apesar da sentença se referir à Câmara Municipal do …, a pessoa jurídica é o Município de que a Câmara é um simples órgão, o órgão executivo colegial, mas não é menos certo que se trata do seu órgão representativo, designadamente, em termos judiciários, sendo a sua face mais visível [cf. art.56.º n.º1 e 68.º n.º1, alin. a) da Lei n.º 169/99, de 18/9].

Por isso, a designação “Câmara Municipal” é utilizada muitíssimas vezes para identificar a pessoa colectiva Município, como aconteceu no caso.

Foi, aliás, assim, que o próprio Município do … o entendeu, apresentando-se, como tal, a contra-alegar no presente recurso.

A questão que se coloca é se o Município em causa pode considerar-se lesado, nos termos e para os efeitos prevenidos no art.74.º do CPP.

Nessa apreciação, o tribunal não deve fazer um pré-juízo sobre o mérito da pretensão indemnizatória deduzida, sem embargo de conhecer se tal pretensão emerge dos factos que sustentam a imputação criminal.

Não duvidamos que o Município do …, que na sua petição ressarcitória fez derivar a indemnização reclamada da prática do crime de falsificação, é parte legítima, uma vez que a legitimidade processual tem como pressuposto a relação jurídica invocada pelo demandante.

Se é detentor do direito a que se arrogou através do seu órgão executivo, e que o tribunal recorrido lhe reconheceu, é questão que se prende com o mérito da causa.

No caso, o tribunal recorrido reconheceu à Câmara Municipal do … o direito à indemnização por danos não patrimoniais, fazendo derivar esse direito da violação pelos arguidos do regime legal dos loteamentos, por ter consubstanciado desanexações ilegais e não tituladas de terrenos pertencentes a um prédio rústico, sem a necessária licença camarária e a inadvertida e ilegal conversão das respectivas áreas de avos para metros quadrados, através de duas escrituras de justificação notarial que prejudicaram o normal andamento do procedimento de legalização da A.U.G.I. e a consequente emissão do título de reconversão, sem o qual não era possível emitir as licenças de utilização definitivas para cada edificação, gerando também a deterioração da imagem, da reputação e do bom nome da Câmara Municipal do…, os quais ficaram prejudicados e fortemente afectados perante todos os munícipes, em especial com os envolvidos no processo de reconversão da A.U.G.I. que anseiam a legalização e resolução dos seus problemas.

Vejamos:

Os prédios que sem a competente licença de loteamento tivessem sido objecto de operações físicas de parcelamento destinadas à construção até 31DEZ84 foram considerados AUGI e sujeitos a um regime excepcional de reconversão urbanística pela Lei 91/95, de 2 de Setembro.

Essa lei, depois de definir o que sejam AUGI (art. 1º, nºs 2 e 3) e de estabelecer o dever de as autarquias as identificarem e delimitarem concretamente (nº 4 do mesmo artigo), sujeita-as a um dever de reconversão urbanística (art. 3.º), por parte dos seus proprietários ou da Câmara Municipal (artigos 4.º, 18.º e 31.º).

Para cumprimento desse dever de reconversão regula-se a forma de administração das AUGI’s através de assembleias de proprietários e comissões de administração, às quais incumbe organizar e dirigir os trâmites do processo de reconversão, incluindo o projecto de acordo da divisão de coisa comum.

Institui-se, ainda, um regime especial de divisão de coisa comum (art. 36.º e seguintes) que admite a divisão judicial, exigindo-se, no entanto (art. 41º) que a petição inicial seja especialmente instruída com o título de reconversão.

Do regime legal que sumariamente se acaba de enunciar resulta, desde logo, que a definição de AUGI resulta directamente do diploma em causa, não tendo a delimitação a efectuar pelas Câmaras Municipais efeitos constitutivos mas antes meramente declarativos. A AUGI constitui-se e fica sujeita ao correspondente regime legal pelo preenchimento da previsão legal e não por acto administrativo posterior.

Esse regime é um regime excepcional de reconversão urbanística tendo em vista salvaguardar relevantes interesses resultantes da manutenção de situações de facto, ligados à posse de imóveis de habitação; e como tal limitado no tempo (cf. art. 57.º).

Tal regime foi, entretanto, sujeito a alterações pela Lei 64/2003, 23 de Agosto, que, designadamente, introduziu um n.º 2 no art. 2.º prescrevendo que “o direito de exigir a divisão só pode ser exercido após a emissão do respectivo título de reconversão”.

Será o Município do …verdadeiramente lesado pelo crime imputado aos arguidos?

No caso, está em causa uma alegada ofensa ao órgão executivo do Município.

Liminarmente dir-se-á que as Câmaras Municipais não se podem considerar ofendidas ou especialmente ofendidas quando alguém comete uma infracção sobre matéria integrada na sua competência.

Como referem Leal Henriques e Simas Santos, in CPP Anotado, I Volume, pag.404 e 405, “ofendido é só aquela pessoa que é titular do interesse que a norma incriminadora visa proteger; lesado é toda a pessoa, ofendido ou não que sofreu um dano ocasionado pelo crime”.

O bem jurídico tutelado pela norma que prevê e pune a falsificação de documento é o valor dos documentos enquanto meio de prova. Nas palavras de Helena Moniz, “o bem jurídico do crime de falsificação de documentos é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, página 680).

E a segurança e credibilidade dos documentos enquanto meio de prova é um valor que diz respeito a toda a comunidade, ao Estado, portanto. A falsificação de documentos é, pois, um crime contra um bem jurídico que não é individual, mas universal, da colectividade.

Sobre isto diz a mesma autora: “quando se põe o problema do bem jurídico colocado em perigo de lesão pelo crime de falsificação de documentos, logo verificamos que, no fundo, será a sociedade (no seu todo) que mais ficará afectada por este tipo legal de crime, pois é a sociedade que deposita uma certa confiança no documento, pelo que será um interesse colectivo que se pretende proteger com a criminalização desta conduta. (...). O crime de falsificação de documentos (...) tem em vista proteger aquilo que poderíamos designar por um bem jurídico-criminal de carácter supra-individual, dado que, em primeira linha, pretende-se proteger toda a colectividade” (O Crime de Falsificação de Documentos, Coimbra Editora, 1999, páginas 52 e 273).

O crime de falsificação de documento não visa, pois, a protecção de interesses patrimoniais, e são interesses dessa ordem os que os particulares podem ver lesados ou postos em perigo de lesão com a infracção. A protecção de tais interesses cabe aos crimes contra o património, nomeadamente o de burla, tantas vezes associado ao de falsificação de documento. Porém, aquele que é atingido nos seus interesses patrimoniais ou não patrimoniais por um crime de falsificação não fica sem protecção. Pode sempre, como lesado, deduzir pedido de indemnização.

Lesado para este efeito será toda aquela pessoa (singular ou colectiva) que tenha sofrido, por efeito do crime, danos no seu património material ou moral e que de acordo com a lei civil mereçam a tutela do direito. É uma questão que não pode ser confundida com a legitimidade para a constituição de assistente, pois a noção de lesado é mais ampla e compreensiva do que a de assistente.

Contrariamente ao que já se tem defendido (por exemplo, no acórdão da RL de 10/2/2000, publicado na CJ, 2000, I, 154), o facto de o crime de falsificação de documento se poder bastar, em sede de dolo, com a intenção de o agente causar prejuízo a pessoa diferente do Estado não significa que a incriminação vise proteger o interesse dos particulares. O alcance da formulação da norma – art. 256.º, nº 1 – nessa parte é apenas o de definir o ponto a partir do qual se justifica a intervenção do direito penal.

O acto de falsificar um documento com a intenção de causar prejuízo a um particular é relevante para efeitos de incriminação não porque lese ou crie perigo de lesão de interesses desse particular, mas porque essa é uma das formas de pôr em causa um bem que é de toda a comunidade – a segurança e a credibilidade dos documentos como meio de prova. Esse valor colectivo é atingido tanto quando o acto de falsificação do documento visa prejudicar o Estado como quando com esse acto se visa causar prejuízo a um particular.

A referência no art. 256.º, n.º 1, a outra pessoa para além do Estado significa, pois, que a falsificação de documento com intenção de causar prejuízo a um particular, por lesar um interesse da colectividade de modo que não é diferente do que se verifica quando a intenção é a de prejudicar o Estado, também justifica a intervenção do direito penal. O mesmo acontece quando o agente, através da narração de facto falso juridicamente relevante visa apenas obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo.

Não obstante, a lei reconhece aos lesados [titulares reflexos da protecção normativa] o direito a serem indemnizados pelos danos sofridos, desde que «emergentes do crime». Por tal razão, a lei processual estabelece uma dicotomia entre ofendido [criminal] e lesado [civil], sendo certo que estas duas qualidades podem subsistir em simultâneo no mesmo sujeito ou não.

Ora, no caso em apreço, não vemos, com o devido respeito, como imputar os danos não patrimoniais (deterioração da imagem, da reputação e do bom nome da Câmara Municipal do …) à prática do crime perpetrado pelos recorrentes.

Só seria possível a condenação se os factos que constituem objecto do processo na sua vertente estritamente penal forem simultaneamente constitutivos da causa de pedir do pedido de indemnização.

Não pode efectivamente a condenação ter por base factos diferentes desse núcleo essencial não só à existência do ilícito criminal invocado, mas também à verificação da única responsabilidade civil que, por força do princípio da adesão, pode estar em causa no processo penal, ou seja a responsabilidade civil fundada na prática de um crime (art. 71.º do CPP).

No caso subjudice, a demandante faz derivar os danos não patrimoniais objecto do pedido da violação pelos demandados recorrentes do regime legal dos loteamentos por nas escrituras de justificação notarial que os arguidos efectuaram terem consubstanciado desanexações ilegais e não tituladas de terrenos pertencentes a um prédio rústico, sem a necessária licença camarária e a inadvertida e ilegal conversão das respectivas áreas de avos para metros quadrados, o que teria prejudicado o normal andamento do processo de legalização da AUGI e a deterioração da imagem, da reputação e do bom nome da Câmara Municipal do …, factos que não derivam directa e necessariamente da prática do crime em causa.

Para poder haver aqui condenação em indemnização civil era necessário que estivessem presentes todos os pressupostos referidos no art. 483.º, n.º1 do Código Civil: facto ilícito, o dano, a culpa sob a forma de dolo ou negligência do autor do facto, e nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Não se pode dizer que da falsificação, em si mesma considerada, haja resultado a violação de um direito subjectivo do Município do … ou do seu órgão executivo, a Câmara Municipal. Qual direito subjectivo?

Estando excluídos das pessoas colectivas quaisquer direitos que sejam inseparáveis da personalidade humana (a vida, a liberdade, etc.) têm de se lhes reconhecer, por força do art. 160.º, n.º 1, do C. Civil ou por efeito de disposição legal específica, direitos especiais de personalidade que se ajustem à sua particular natureza e às especiais características de cada uma, ao seu círculo de actividades, às suas relações e interesses dignos de tutela jurídica (a identidade pessoal, o bom nome) direitos estes merecedores quer de tutela penal, quer cível, e que lhes permite exigir indemnização civil, v.g. por danos não patrimoniais, sempre que estejam em causa bens juscivilisticamente tutelados (cf. art. 484.º do CC).

Não estamos aqui perante um crime do art. 187.º do Código Penal – ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva – ou de um crime de difamação em que a Câmara Municipal em causa tenha sido visada.

O Município do … é um terceiro na relação jurídica subjacente às escrituras de justificação notarial que constitui objecto do crime por que os arguidos foram condenados.

Mais: Do disposto nos arts. 483.º, 495.º, n.º2 e 496.º, n.º2, todos do Código Civil, resulta a regra de que a ressarcibilidade dos danos está reservada aos danos directos sofridos pela vítima da conduta do lesante, salvo as excepções fixadas no n.º 2 do art. 495.º referido, aplicável quer em caso de morte da vítima quer em caso de simples lesão corporal não mortal, e salvo o caso de morte da vítima, segundo o previsto na n.º2 do art. 496.º mencionado.

Destas disposições resulta, em nosso entender, que apenas nessas situações excepcionais ali previstas, a lei permite o ressarcimento destes danos de terceiros, sendo a regra a da não ressarcibilidade destes danos de terceiros que decorrem indirecta ou reflexamente dos danos causados à vítima directa.

Por conseguinte, só tem direito à indemnização por danos não patrimoniais o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com violação de disposição legal, não o terceiro que só reflexa ou indirectamente seja prejudicado. Apenas excepcionalmente a indemnização pode competir também ou caber a terceiros. Assim sucede nos casos versados no art. 496.º do CC (lesão corporal ou lesão que provoca a morte da vítima).

Por outro lado, o facto ilícito e culposo terá de ser, em concreto, “conditio sine qua non” do dano mas, também, em abstracto, causa normal e adequada da sua verificação, ainda que indirecta ou mediatamente.

Não obstante ser ilícita a conduta dos arguidos/demandados, faltará sempre o nexo da causalidade adequada entre essa conduta e o dano alegado pelo demandante, pois, em abstracto, a outorga das escrituras de justificação notarial onde se fez constar falsamente factos juridicamente relevantes não é causa normal e adequada da verificação dos danos não patrimoniais invocados.

É, assim, por demais evidente que, faltando pelo menos um dos pressupostos exigidos pelo n.º1 do art. 483.º do CC, os arguidos/demandados não podiam ser condenados em indemnização com base em factos ilícitos estranhos à sua responsabilização criminal.

Assim, sem necessidade de mais considerações, impõe-se revogar a sentença recorrida na parte em que condenou os demandados no pagamento de uma indemnização à Câmara Municipal do... fundada em danos não patrimoniais.

III – Dispositivo.

Nestes termos, acordam os juízes desta secção criminal, em julgar procedente o recurso interposto pelos demandados V.P., J.C., T.P., M.C. e H.L., melhor identificados supra, e, em consequência, absolvem-se os mesmos do pedido de indemnização civil contra eles formulado pela Câmara Municipal do …, nessa parte revogando a sentença sindicada.

Custas pelo Município do … (art.523.º do CPP e 446.º do CPC).

(Processado por computador e revisto pelo relator)

Évora, 2009-10-15

Fernando Ribeiro Cardoso (relator)

Gilberto Cunha




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[1] Cfr., neste sentido, assento n.º 7/99, DR n.º 179, I-série A, de 3/08/1999, pág. 5019.
[2] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 471.
[3] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, 7ª ed., vol.I, pág. 554.