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FALSIDADE DE TESTEMUNHO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
Sumário
1. O crime de falsidade de testemunho que o denunciante atribui aos denunciados, assume natureza pública, sendo pois crime público, porque destinado a proteger um bem jurídico supra individual de interesse comunitário, fazendo parte das funções soberanas do Estado. Tal crime tutela directa e imediatamente o interesse do Estado e só indirectamente a norma incriminadora protege interesses particulares.
2. Para efeitos de constituição como assistente, não pode ser considerado “ofendido” qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto imediato do crime. Não basta, portanto, uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois não se integra no âmbito do conceito de ofendido, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, como é o caso do denunciante relativamente ao mencionado crime de falsidade de testemunho.
3. No crime de falsidade de testemunho o denunciante não tem legitimidade, em termos processuais penais, para ser admitido como assistente, por o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime aqui em causa ser o próprio Estado.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
RELATÓRIO.
Decisão recorrida.
No final do inquérito que teve início com a denúncia apresentada por N. contra J. e P., atribuindo-lhes a prática do crime de falsidade de testemunho, pp. pelo art.360º, nºs 1 e 3 do Código Penal, o Ministério Público, nos termos do disposto no art.277º, nº2 do CPP, determinou o arquivamento dos autos, por entender não estar suficientemente indiciado a prática do aludido crime.
Na sequência da notificação que lhe foi feita do despacho de arquivamento, veio o denunciante N., requerer a sua constituição como assistente, e, bem assim, a abertura da instrução, imputando a ambos os denunciados, a prática do crime de falsidade de testemunho, pp. pelo art.360º, nº1 e 3 do C. Penal.
Por despacho do Exmº Juiz de Instrução proferido em 4-2-2009 foi decidido não admitir por falta de legitimidade o denunciante a intervir como assistente e consequentemente rejeitar por inadmissibilidade legal o requerimento para abertura da instrução.
Recurso.
Inconformada com essa decisão dela recorreu o denunciante pugnando pela sua revogação e substituição por outra que admita a recorrente a intervir como assistente e que, consequentemente receba o requerimento de abertura da instrução, rematando a motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
A) Nos termos do artigo 68°, n°1-al.a) do CPP, podem constituir-se assistentes no processo penal, «além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos (...)».
B) É hoje jurisprudência pacífica que os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou directamente ofendidas e que, por isso, se podem constituir acusadores.
C) O vocábulo "especialmente" usado pela Lei significa, pois, de modo especial, num sentido de "particular" e não "exclusivo", adoptando aquela o conceito estrito, imediato ou típico de ofendido.
D) A legitimidade de ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa e, em especial, interpretar o tipo incriminador em causa em ordem a determinar, caso a caso se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública do crime ou não pública do crime.
E) O crime de falsidade de depoimento é um crime contra a realização da justiça, de actividade, mas em que o prejuízo de terceiro condiciona a moldura penal abstracta e a possibilidade de dispensa de pena, através da retratação.
F) Assim, se, num caso concreto, o agente com a falsidade de depoimento causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, esta poderá constituir-se assistente» (Ac. STJ de 12/7/2005 in www.dgsi.pt no mesmo sentido: Ac RL de 14/12/2005 e Ac RL de 23/1/2007, in www.dgsi.pt).
G) Ora, não restam quaisquer dúvidas, no caso em apreço, que os arguidos, com a falsidade do seu depoimento, causaram prejuízos (graves) aos interesses particulares do recorrente, na medida em que o réu foi absolvido na acção cível de indemnizar o recorrente dos danos que lhe causou, em virtude da falsidade do depoimento dos arguidos.
H) E podendo o recorrente constituir-se assistente, pode o mesmo requerer a abertura da instrução (artigo 287°, n°1-al.b) do CPP).
l) Decidindo, como decidiu, violou o Ex.mº Juiz, designadamente, o disposto nos artigos 68° e 287°, n°1 - al. b) e n°3 do CPP.
Contra-motivou o Ministério Público no tribunal recorrido pugnando pela improcedência do recurso com a consequente manutenção da decisão sob censura.
O Exmº Senhor Juiz “ a quo” manteve o despacho impugnado.
Nesta Relação a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta secundando a argumentação expendida pelo Ministério Público na 1ª Instância, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso e confirmado o despacho recorrido.
Observado o disposto no nº2 do art.417º do CPP não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO.
Objecto do recurso. Questão a examinar.
Sintetizando as conclusões que o recorrente extraiu da correspondente motivação e sendo estas, como é sobejamente sabido, que delimitam o objecto do recurso, a questão a examinar que delas emerge e que reclama solução consiste em saber se o denunciante tem legitimidade para se constituir assistente relativamente ao crime de falsidade de testemunho, pp. pelo art.360º, nºs 1 e 3 do Código Penal e nessa qualidade poder intervir nos autos, nomeadamente requerendo a abertura da instrução.
Vejamos.
Inexistindo lei especial que atribua ao denunciante e ora recorrente legitimidade para relativamente ao mencionado crime se constituir assistente em processo penal, tal faculdade e sendo o crime em causa de natureza publica, a legitimidade para ele se constituir assistente no tocante ao dito crimes haverá que ser apreciada de acordo com o critério que dimana da alínea a), do nº1, do artº68º, do CPP que confere esse direito aos ofendidos, considerando como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Na esteira do entendimento que temos vindo a perfilhar sobre esta matéria, desde já avançamos, que ao contrário do que preconiza o recorrente, não obstante o seu esforço argumentativo, e reconhecendo também que não é pacifica a solução da questão examinanda, sendo disso exemplo a jurisprudência invocada pelo recorrente em defesa da sua tese e a abundante jurisprudência citada no despacho sob censura e na contra-motivação do Ministério Público abonatória da posição por ambos sustentada, salvo o devido e merecido respeito pela opinião contrária, alinhamos com os que defendem que a nossa lei acolhe um conceito estrito, imediato de ofendido, abrangendo apenas os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma incriminadora (cfr. F. Dias, Direito Processual Penal, 1974, pag.506 e Beleza dos Santos, RLJ 57º, pag.3).
O mesmo conceito estrito de ofendido encontra-se plasmado no art.113º, nº1do C. Penal.
Assim, para efeito de constituição como assistente, não pode ser considerado “ofendido” qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto imediato do crime.
Não basta, portanto, uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois não se integra no âmbito do conceito de ofendido, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, como é o caso do denunciante relativamente ao mencionado crime de falsidade de testemunho.
Como é sublinhado no despacho recorrido, citando o Prof. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, 1995, Vol. I, pags.194 e segs. «para ser considerado ofendido para efeitos de admissão e constituição como assistente, não bastava ter sofrido um prejuízo com o crime, sendo ainda necessário que esse crime atingisse directamente, especialmente, particularmente, aquele que pretendia constituir-se assistente. Assim, não era ofendido para o referido efeito de intervenção como assistente no processo qualquer pessoa que tivesse sido prejudicada com a prática do crime, mas apenas o titular do interesse que constitui o objecto imediato da infracção. Nem todos os crimes têm, por isso, «ofendido» particular. Só o tem aquele cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular, pelo que se torna necessário auscultar o interesse que a lei quis proteger com a incriminação».
Como a este propósito assevera Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 15ª edição, pag.191, também citado no despacho sob censura «não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o objecto mediato é que pode ter por titular um particular.
Nem todos os crimes têm, por isso, ofendido particular. Só o têm aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular», dando como exemplo de não poder intervir no processo como assistente, “ o processualmente lesado por um falso testemunho, por isso que a incriminação protege só o interesse da boa administração da justiça”.
Assim, de jure constituto só se considera ofendido, para os efeitos do art. 68º, nº 1, al. a), o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime e, por isso, nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular.”
Salvo o devido respeito e melhor opinião a posição advogada pelo recorrente, é merecedora de reflexão e ponderação mas em termos de jure constituendo.
Naturalmente que é pela análise e exame da norma incriminadora que se vê qual o interesse que a lei quis proteger ao tipificar determinado comportamento humano como criminoso, como é referido na anotação de Leal Henriques e Simas Santos, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 1996, pág.318, os quais adiantam ainda que “definido o interesse há que identificar o titular desse interesse.”
Deste modo, a questão passa por averiguar da natureza individual ou supra-individual do bem jurídico que é tutelado pela incriminação que estiver em causa, não sendo todavia de arredar à partida que ambas – concorrencialmente - se possam ter por verificadas perante uma concreta norma incriminadora.
Assim como o conceito de ofendido não se identifica com o de lesado, também aquele surge desligado da natureza particular, semi-pública ou pública da incriminação.
O crime de falsidade de testemunho que o denunciante atribui aos denunciados, assume natureza pública, sendo pois crime público, porque destinado a proteger um bem jurídico supra individual de interesse comunitário, fazendo parte das funções soberanas do Estado. Tal crime tutelam directa e imediatamente o interesse do Estado e só indirectamente a norma incriminadora protege interesses particulares.
Ao nível da sua inserção sistemática, o crime de falsidade de testemunho, pp. pelo art. 360º do Cód. Penal, encontra-se no título V do Código Penal, dedicado aos crimes contra o Estado, neste, no seu capítulo III, dedicado aos crimes contra a realização da justiça.
Acerca do bem jurídico protegido, Medina Seiça, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 462, refere que “o crime de falso testemunho constitui um crime de perigo abstracto (…). Deste modo, não é necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade (…). O fundamento do ilícito é a própria declaração falsa, independentemente da consideração da sua efectiva influência na decisão”.
Como é referido com acerto no despacho recorrido, no crime de falsidade de testemunho, o interesse directa e imediatamente protegido é um interesse público, o interesse do Estado na realização ou administração da justiça.
Nos crimes contra o Estado, ninguém se poderá constituir assistente, uma vez que o interesse protegido pela incriminação é, a qualquer luz, exclusivamente público (Maia Gonçalves, in Código Processo Penal, anotação ao art.68º).
Assim, como o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora tem natureza supra-individual e ali não se encontra um interesse especialmente protegido de natureza particular que legitime a constituição como assistente.
Não se nega que os particulares não possam ser (reflexamente) atingidos e prejudicados, pelos comportamentos que preenchem a aludida norma incriminadora, mas tal não basta para que possam integrar o conceito de “ofendido” adoptado pela lei processual penal para efeitos de atribuição de legitimidade para a constituição como assistente, na concepção por nós também adoptada e que atrás caracterizámos.
Assim, um particular, como é o caso do requerente e denunciante, não é o titular dos interesses especialmente protegidos com aquela incriminação.
O recorrente, apesar de eventualmente se encontrar lesado, e por isso com legitimidade para reclamar em sede própria a correspondente indemnização, não tem legitimidade, em termos processuais penais, para ser admitido como assistente, por o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime aqui em causa ser o próprio Estado.
Como dissemos, o objecto imediato da tutela jurídica da norma incriminadora não é, assim, um interesse ou direito de que o recorrente seja titular, pelo que ele carece de legitimidade para se constituir assistente nos autos supra mencionados.
Nesta conformidade, não nos merece reparo a conclusão extraída na decisão recorrida de que ao requerente não assiste legitimidade para, no caso, se constituir e intervir na qualidade de assistente, e consequentemente, assim, para impulsionar o exercício da acção penal através da abertura da instrução, quanto ao procedimento pelo crime de falsidade de testemunho que imputou aos denunciados no respectivo requerimento para abertura da instrução.
Obviamente que não tendo o denunciante (não assistente) legitimidade para requerer a instrução [art.287º, nº1, al.b) do CPP], faltando esse pressuposto processual ou essa condição de procedibilidade, a instrução não é admissível, nos termos do disposto no nº3 do citado art.287º do referido diploma adjectivo, o que acarreta a rejeição limiar do requerimento por aquele apresentado para abertura da instrução, pelo que não nos merece censura a douta decisão recorrida, que consequentemente mantemos na íntegra.
Termos em que, sem mais considerações por supérfluas, se impõe negar provimento e confirmar a decisão impugnada.
DECISÃO.
Nestes termos e com tais fundamentos negamos provimento ao recurso, confirmando o douto despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC’s