Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Sumário
I – Resultando claramente dos autos que os conhecimentos que a testemunha possa ter em relação à matéria factual em causa nos autos (particularmente aos quesitos da base instrutória aos quais foi indicada pelas rés, que a arrolaram) lhe advieram apenas da inspecção tributária que realizou à contabilidade do autor, é manifesta a existência do dever de sigilo profissional - e daí a legitimidade da escusa a depor.
II – Com a junção aos autos do relatório elaborado pela testemunha cujo levantamento do sigilo profissional se pede, o fiscalizado está, tacitamente, a renunciar à tutela do sigilo profissional da testemunha.
III – O sigilo profissional deverá ser levantado quando estiver em causa a impossibilidade do réu provar a sua inculpabilidade.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
“A” intentou acção declarativa ordinária contra “B” e “C”, pedindo a condenação solidária das rés no pagamento da quantia já liquidada de € 108.602,06, a título de danos patrimoniais, da quantia de € 25.000,000 a título de danos não patrimoniais, quantias essas acrescidas de juros de mora, à taxa legal para as operações tributárias, desde Fevereiro de 2004 até efectivo e integral pagamento, e ainda de todas as demais quantias cujo pagamento venha a ser exigido em resultado da Inspecção Tributária levada a efeito pelos Serviços de Inspecção Tributária relativa aos exercícios fiscais do autor dos anos de 1999, 2000 e 2001, a liquidar em execução de sentença.
Alegou para tanto e em resumo que, enquanto empresário em nome individual enquadrado no regime fiscal de contabilidade organizada, celebrou com a 1ª ré (enquanto técnica oficial de contas) um contrato de prestação de serviços de contabilidade, contrato esse que se estendeu à 2a ré (sociedade da qual a 1ª ré é sócia e gerente e nela exerce as funções de técnica oficial de contas), à qual passou a fazer os pagamentos pelos serviços de contabilidade prestados, que foi a ré que recebeu, tratou e lançou contabilisticamente toda a documentação entregue pelo autor, limitando-se este a passar e entregar os cheques nos valores indicados pela 1ª ré, designadamente a título de IVA e IRS, sendo esta quem calculava e procedia às deduções de IVA.
Mais alegou que em 31.01.2003 foi sujeito a uma inspecção fiscal, ao IRS e ao IVA, relativamente aos anos de 1999 a 2001, inspecção essa na qual foram detectadas várias irregularidades contabilísticas, da responsabilidade da ré, do que resultou ser o autor notificado para pagar diversas quantias relativas a IRS e a IVA em falta e bem assim aos respectivos juros compensatórios.
Mais alegou ainda que, em resultado disso, os prejuízos já contabilizados e reclamados ao autor ascendem ao valor peticionado e que a ré, por ter agido culposamente, por acção ou por omissão, é responsável pelo seu pagamento, e bem assim pelo pagamento dos danos de natureza não patrimonial causados ao autor.
As rés contestaram por impugnação, defendendo que a culpa e subsequente responsabilidade pelo pagamento de impostos e coimas apenas ao autor pode ser imputada, pedindo a sua absolvição do pedido.
Proferido despacho saneador e elaborados os factos assentes e a base instrutória foi designada e teve lugar a audiência de julgamento, para a qual foi arrolada, pelas rés, para além do mais, a testemunha, “D”, inspector tributário.
No decorrer da audiência, após a identificação da testemunha, veio o douto mandatário do autor tomar posição no sentido de a testemunha ter o dever legal de se escusar a depor, nos termos do art. 618°, n° 3 do CPC, em virtude de a mesma, indicada a toda a matéria da base instrutória, ter declarado que o conhecimento que tem dos factos decorre exclusivamente do facto de ter procedido à inspecção tributária à contabilidade do autor, estando assim sujeita ao segredo profissional regulado pelo DL 24/1984 de 16.01, para garantia da confidencialidade dos dados relativos à situação tributária dos contribuintes.
Por sua vez, a douta mandatária das rés tomou posição no sentido de que, tendo sido junto aos autos o relatório da inspecção tributária elaborado pela testemunha em causa, e tendo a mesma sido arrolada para responder aos quesitos 37° a 44°, 48° e 54°, não é de aplicar a obrigação constante do art. 618°, n° 3 do CPC.
Na sequência do incidente suscitado, pela testemunha foi declarado não pretender prestar declarações, uma vez que as mesmas podem colidir com o sigilo profissional a que está obrigado.
Seguidamente, por considerar que do depoimento da testemunha pode resultar objectivamente quer a violação do dever profissional quer a violação dos limites, relativamente à matéria de facto a que é indicada e por considerar como legítima a recusa a depor, foi pelo Senhor Juiz "a quo" determinada a remessa do incidente, para decisão, a esta Relação.
Recebidos os autos nesta Relação, foi solicitado parecer sobre a dispensa ou não do sigilo profissional invocado pela testemunha (nos termos do disposto no n° 4 do art. 135° do CPPenal, conjugado com o art., 519°, n° 4 do CPC), tendo a Direcção Geral dos Impostos vindo a juntar aos autos parecer, no qual se tomou posição, em resumo e no essencial, no sentido de que, sendo a dispensa do sigilo profissional da competência do titular a quem os dados pelo segredo profissional dizem respeito, ao invocar como fundamento da acção as relações profissionais com a ré, juntando à petição inicial cópia do relatório da inspecção que lhe foi dirigida, parece ter o autor renunciado tacitamente à tutela do sigilo fiscal, nos termos do art. 64º, n° 2, al. a) da LGT
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
Deduzida que foi pela testemunha em causa, escusa a depor, nos termos do disposto no n° 3 do art. 618° do CPC, enquanto funcionário público da administração fiscal, com fundamento na possibilidade de violação do segredo profissional (segredo fiscal) - na sequência da posição assumida pelo douto mandatário do autor - importa tomar posição sobre a legitimidade da escusa e da quebra ou dispensa do dever de sigilo invocado, nos termos do disposto no n° 4 do art. 519° do CPC (ex vi do disposto no citado n° 3 do art. 618° do mesmo diploma).
Para o efeito, haveremos de ter em consideração, para além dos elementos constantes do relatório supra, que, nos quesitos da base instrutória em questão (aos quais a testemunha foi indicada pela partes - rés - que arrolaram), se pergunta o seguinte:
37°: Apesar de convidado pelos serviços de inspecção tributária, no âmbito da acção inspectiva, o autor não quis proceder voluntariamente às correcções nas declarações apresentadas?
38º: E apresentar as facturas de aquisições intercomunitárias?
39°: As rés disponibilizaram-se a proceder às referidas correcções assim que o autor lhes facultasse os documentos?
40°: O autor não autorizou que se procedesse às correcções meramente técnicas, nem que se procedesse a substituições de declarações de IVA.?
41°: O autor não quis requerer a dedução facultativa do IVA.?
42°: E em relação ao I.R.S. não demonstrou que os documentos foram emitidos por tipografias autorizadas?
43°: O referido em 42° originou a imputação de valores a acrescerem aos rendimentos do autor em sede de I.R.S?
44°: as correcções efectuadas tanto em sede de I.V.A como de I.R.S. foram meramente aritméticas?
48°: Perante a acção fiscalizadora da administração fiscal o autor confrontado com os valores do sistema informático forneceu outro valor ao inventário?
54°: O autor nunca fez entrega de ticket para contabilização?
Nos termos do disposto no n° 3 do art. 135° do C. Processo Penal (aplicável ex vi do disposto no já acima citado n° 4 do art. 519° do CPC) "o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado ... pode decidir pela prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade... e a necessidade de protecção de bens jurídicos"
Importa assim verificar, in casu, se, por um lado, é legítima a escusa a depor e, por outro, se se justifica a quebra do sigilo em face do princípio da prevalência do interesse predominante (ac. da RL de 30.04.2009, em que é relatora Maria José Mouro, in www.dgsi.pt).
Nos termos do disposto no art. 64°, n° 1 da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL 398/98 de 17.12, "os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado ".
Assim, resultando claramente dos autos que os conhecimentos que a testemunha em causa possa ter em relação à matéria factual em causa nos autos (particularmente aos quesitos da base instrutória aos quais foi indicada pelas rés, que a arrolaram) lhe advieram apenas da inspecção tributária que realizou à contabilidade do autor, afigura-se-nos manifesta a existência do dever de sigilo profissional- e daí a legitimidade da escusa a depor.
Posto isto, importa verificar da justificação para a quebra daquele dever de sigilo.
Nos termos das als. a) e d) - ora com interesse - do n° 2 do citado art. 64° da Lei Geral Tributária tal dever de sigilo cessa em caso "de autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária" e ainda em caso de "colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e Código de Processo Pena!", ou seja, nos termos gerais, com fundamente nas disposições de tais diplomas já acima citadas.
E desde já se diga que se nos afigura de todo pertinente a posição assumida no parecer emitido pela Direcção Geral dos Impostos, ou seja, no sentido de se poder concluir pela existência de autorização tácita do autor, enquanto causa de cessação do dever de sigilo da testemunha, nos termos da referida al. a) n° 2 do art. 64° da LGT.
Conforme resulta claramente da petição inicial e do relatório supra, o autor veio invocar como fundamento do pedido de indemnização que formulou contra as rés, os prejuízos que teve ou tem de suportar decorrentes dos erros cometidos por estas na elaboração da sua contabilidade - erros esses que foram detectados no âmbito da inspecção tributária a que foi sujeito, inspecção essa feita pela testemunha ora em causa e cujo relatório até foi junto aos autos com a petição inicial.
Ora ao trazer assim a público (via alegação e junção do relatório da inspecção) os factos de que a testemunha teve conhecimento por força das suas funções (de inspector tributário) o autor acabou por prescindir claramente do sigilo inerente a tal conhecimento.
E, assim sendo, conforme bem se salienta no dito parecer "ao fazer invocar como fundamento da acção as relações profissionais com a ré e juntar à petição inicial cópia do relatório da inspecção que lhe foi dirigido, parece o autor da acção ter renunciado à tutela do sigilo profissional, renúncia que é susceptível de ser considerada como podendo ter lugar tacitamente, nos termos do art. 64º, n° 2, al. a) da L. G. T, que não distingue as formas porque se pode efectivar a autorização da revelação dos factos compreendidos no direito dos contribuintes ao sigilo fiscal".
Por outro lado, independentemente de tal aspecto (da autorização tácita da revelação da sua situação tributária, por parte do autor), afigura-se-nos como justificada a quebra do sigilo (fiscal) em face do princípio da prevalência do interesse predominante.
Em ordem a assegurar a realização dos direitos de cada um, incumbe ao tribunal realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, nos termos do disposto no art. 265° do CPC, sendo que o princípio da prevalência do interesse dominante só pode ser chamado à colação quando em causa estão interesses em concreto conflituantes (vide ac. R.L de 15.02.2007, em que é relator Folque Magalhães, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, o dever de sigilo profissional da testemunha em causa tem subjacente o interesse do autor no sigilo relativo à sua situação tributária, interesse esse que conflitua claramente com o interesse das rés em se poderem defender de factos relativos a matéria abrangida por essa mesma situação tributária.
Ora, se o autor vem pedir a condenação das rés no pagamento de determinada indemnização, com fundamento em irregularidades que, segundo ele, são da responsabilidade (culpa) das rés, relativas ao tratamento da sua contabilidade, que foram detectadas em inspecção tributária, pela testemunha em causa - socorrendo-se para o feito do respectivo relatório de inspecção - jamais faria sentido que as rés se não pudessem defender e provar a ausência dessa culpa com base no depoimento da pessoa que detectou tais irregularidades.
Assim, afigura-se-nos manifesto que, no caso dos autos, o interesse na realização da justiça e na tutela do direito à produção de prova (no que se refere à inquirição da testemunha em causa, aos quesitos indicados pelas rés, que a arrolaram) se deve sobrepor claramente ao interesse do autor relativo ao segredo fiscal.
Aliás, não podemos deixar de considerar como imprescindível para a descoberta da verdade o depoimento da testemunha em causa, uma vez que, tendo sido ela (que efectuou a inspecção tributária) a detectar as irregularidades fiscais (no tratamento da contabilidade do autor), será ela a pessoa mais adequada para esclarecer qual a razão de ser ou origem de tais irregularidades.
Em face de todo o exposto, havermos de concluir no sentido de se mostrar inteiramente justificada a quebra do segredo profissional, no que se refere à prestação de depoimento por parte da testemunha em causa aos quesitos da base instrutória a que foi indicada.
Termos em que se acorda em levantar o sigilo profissional a que a testemunha em causa (“D”) estava sujeita, tendo lugar a prestação do seu depoimento (aos quesitos propostos) com quebra desse mesmo sigilo profissional.