CHEQUE
CHEQUE DE GARANTIA
REVOGAÇÃO
Sumário


I - Um cheque revogado não deixa de ser título executivo, desde que se demonstre a irrelevância da revogação.

II – A revogação de um cheque consiste numa instrução unilateral do sacador ao banco sacado para que não pague tal cheque.
Juridicamente, a revogação do cheque é, pois, subsumível a revogação do mandato.

III - A data constitui um elemento essencial do cheque, a ponto de a falta da sua indicação determinar a sua ineficácia enquanto cheque.
Mas uma coisa é o cheque sem data e outra, diversa, é o cheque emitido com data por preencher; neste caso, o cheque entregue sem indicação de data só é válido se, posteriormente, vier a ser completado nos termos dos acordos realizados até à data da apresentação a pagamento.

IV – Um cheque de garantia destina-se a ser datado e apresentado a pagamento, após se verificar que o sacador não cumpriu a obrigação a que se encontrava vinculado.
Logo, é irrelevante o facto de a data aposta no cheque não ter sido escrita pelo punho do respectivo sacador.

V – No domínio das relações mediatas, o portador de um cheque só deixa de ser considerado portador legítimo – logo obrigado a restituí-lo - se o tiver adquirido de má-fé ou se, ao adquiri-lo, tenha cometido falta grave.

VI - A revogação do cheque é uma instrução de não pagamento, contrariando a ordem de pagamento ínsita no cheque; é uma contra-ordem dirigida pelo sacador ao banco sacado visando o não cumprimento por este da ordem de pagamento consubstanciada em determinado cheque.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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RELATÓRIO
No Tribunal Judicial de …,foi proposta por “A” acção executiva ordinária contra “B”, servindo de título executivo um cheque emitido por este, sacado sobre a “C”, com a data de 03-03-1998, no montante de Esc. 17.000.000$00, para ser pago a “D” e cujo pagamento foi recusado com o fundamento de cheque extraviado.
O executado “B” opôs-se à execução, alegando a ineficácia do cheque como título executivo por haver sido emitido sem data e a data nele aposta não haver sido escrita por si, o pagamento da importância titulada pelo cheque - que fora emitido para garantia de pagamento de um empréstimo - e a recusa de devolução do cheque depois de paga essa dívida com o pretexto de que se havia extraviado, o que motivou a respectiva comunicação ao banco sacado.
O exequente contestou os embargos deduzidos e, em prosseguimento da acção, veio a realizar-se a audiência de julgamento, finda a qual foram decididas as questões de facto levadas à Base Instrutória, sem reclamação ou reparo.
Seguidamente, foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e declarou extinta a execução.

Fundamentalmente, considerou a 1ª instância que a circulação do cheque deixou de ser lícita, a partir do momento em que, paga a dívida com ele garantida, o cheque não foi devolvido ao respectivo sacador com a alegação de que o extraviara.
Todavia, o exequente-embargado não se conformou com tal decisão e apelou para esta Relação, pugnando pela revogação da sentença e improcedência dos embargos.
O executado-embargado contra-alegou em defesa da sentença recorrida.
Os autos foram remetidos a esta Relação e aqui, após o exame preliminar, foram corridos os vistos legais.
Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.

FUNDAMENTOS DE FACTO
Na 1ª instância, foram considerados provados os seguintes factos:
1 - O embargante “B” assinou o cheque n° … sacado sobre a C”, no montante de Esc. 17.000.000$00, apresentado como título executivo nos autos de execução com o n° …, o que estes embargos se mostram apensos [Cfr doc junto aos mencionados autos a fls 55 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (A dos factos assentes)].
2 - Este cheque foi entregue pelo embargante a “D” (B dos factos assentes).
3 - Apresentado a pagamento, foi o cheque devolvido pela Câmara de Compensação do Banco de Portugal com a menção aposta no verso de "extraviado" (C dos factos assentes).
4 - O embargante é sócio da “E”, com sede em … - cfr. Certidão de matrícula junta aos autos a fls. 25 a 32 cujo teor se dá por integralmente reproduzido (D dos factos assentes).
5 – “D” foi administrador da “F”, com sede em …, até renúncia em 28/05/97, facto levado ao registo apenas em 17/03/98 - cfr certidão de matrícula junta aos autos a fls. 35 a 40 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (E dos factos assentes).
6 - Correu termos no tribunal Judicial da Comarca de … o Proc. n.º …, em que era arguido “D”, acusado pela prática de um crime de abuso de confiança, p. p. no art. 300° n° 1 e 2, al. a), do Cód. Penal de 1982, actualmente p.p. no art. 205º, nº 1 e 4, al. b). do Cód. Penal, o qual tinha por objecto o cheque dos autos, e veio a ser declarado extinto pelo falecimento do arguido - cfr. Docs juntos a fls. 33 a 37 e 46 dos autos principais e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (F dos factos assentes).
7 – “D” faleceu no dia 17 de Janeiro de 2003 - cf, certidão do assento de óbito junta aos autos principais a fls. 40 e cujo teor aqui se dá por integralmente
reproduzido (G dos factos assentes).
8 - O cheque em causa foi endossado e entregue ao embargado, “A”, pelo “D” (1 da base instrutória).
9 - A data aposta no cheque (98/3/3) não foi escrita pelo punho do embargante (3 da base instrutória).
10 - O cheque foi entregue ao “D” sem data (4 da base instrutória) .
11 - Em 28 de Abril de 1994, o referido “D” emprestou ao embargante a quantia de esc. 17.000.000$00 (5 da base instrutória).
12 - Importância esta titulada pelo cheque n° …, de igual valor, sacado sobre o “G” (6 da base Instrutória).
13 _ E que foi depositada na conta da sociedade referida em D) (7 da base instrutória).
14. Destinando-se à aquisição de dois camiões novos para o exercício da referida sociedade (8 da base instrutória).
15. Foi para garantia e pagamento daquela importância que o embargante preencheu e endossou ao referido “D” o cheque dado à execução (9 da base instrutória).
16. O embargante e o “D” acordaram no pagamento do referido empréstimo mediante o aceite de seis letras de câmbio pela sociedade referida em D), e entrega do cheque n° … sacado sobre o “H” , tudo no valor global de esc. 20.400.000$00, conforme documentos juntos aos autos a fls. 11 a 19 ( cujo teor aqui se dá por reproduzido) (10 da base instrut6ria).
17 - Com o pagamento das referidas letras e desconto do cheque, o embargante pagou integralmente. Em 14/03/1995, ao referido “D” o empréstimo por este efectuado (11 da base instrutória).
18 - O “D” ficou então de devolver ao embargante o cheque dos autos (12 da base instrutória).
19 - Aquele foi sempre protelando a entrega do cheque (13 da base Instrutória).
20 - Em 4/09/1995, o referido “D” confidenciou ao embargante que havia extraviado o referido cheque (14 do base Instrutória).
11 - Motivo pelo qual o embargante comunicou à “C” o extravio do cheque (15 da base instrutória) .

A matéria de facto não foi impugnada nem nela se descortina vício lógico justificativo da intervenção da Relação.

FUNDAMENTOS DE DIREITO
Conhecendo de direito, importa, antes de mais, delimitar o objecto do recurso, recordando as conclusões propostas pelo apelante.
São elas as seguintes:
1. Do confronto entre o disposto no artigo 21° e no artigo 22° da Lei Uniforme Sobre Cheques, ressalta ser pressuposto do funcionamento deste último não apenas a má fé, ou seja, o conhecimento do vício anterior, porque também exige a consciência do portador mediato, ao adquirir o cheque por endosso, de com a sua aquisição causava prejuízo ao devedor.
2.Delineados estes princípios, constata-se que o Embargado é legítimo portador do cheque.
3.Dispõe, com efeito, a 2° al do art. 16 LULL: .. Se uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de uma letra, o portador dela, desde que justifique o seu direito pela maneira indicada na alínea precedente [por uma série ininterrupta de endossos, mesmo que o último seja em branco], não é obrigado a restituí-la, salvo se a adquirir de, má fé ou se, adquirindo­-a, cometeu uma falta grave (Cit. ob cit Títulos de Crédito - Letra, Livrança, Cheque, Almedina, pág.91, de Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado).
4.Esta norma, que é extensível à livrança (art. 77 da Lei), que foi reproduzido para o cheque no respectivo Lei Uniforme (art. 21) e deve ainda aplicar-se analogicamente o todos os restantes títulos de crédito, consagra plenamente e sem reservas a regra «posse de boa fé vale título» (Cit. ob. Cit. Títulos de Crédito - Letra, Livrança e Cheque, Almedina, pag. 91, de Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado).
5.Através dela, o portador que adquire a posse ad legitimationem, de um título de crédito, de boa fé, mesmo por uma aquisição a non domino, paralisa, portanto, o direito do anterior adquirente.
Temos então uma circulação anómala, mas eficaz (Cit ob. cit Títulos de Crédito - Letra, Livrança, Cheque, Almedina, pág.91, de Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado).
6. 0 art. 32° respeita ao cheque como título cambiário que subsiste e resiste incólume a quaisquer revogações emanadas do emitente; nem o art. 32° nem a L.U. em geral visam as relações internas entre sacador e sacado; o contrato de cheque envolve um mandato sem representação; esse mandato, desde que há cheques emitidos, só deve ser revogado se houver justa causa (n° 2 do art. 1170° do Cód, Civil); quer haja ou não justa causa, o sacado tem de obedecer às instruções do sacador; o portador não tem quaisquer direitos contra o sacado, quer, no âmbito do direito cambiário quer fora dele; o § único do art. 14° do Dec. n. 13004 está em vigor e contém uma afloração do mesmo princípio de justa causa que o Cód. Civil de 1966 veio consagrar expressamente no referido n° 2 do art.1170. ° (Dr. Filinto Elisio, in O Direito, 110°- 602 e 603 (Cit. ob. Cit do Senhor Juiz Conselheiro Abel Delgado, Anotação ao art. 32° da Lei Uniforme sobre Cheques).
7. A sentença recorrida deve ser substituída por outra que julgue procedente a acção.

Apreciando:
A 1ª instância entendeu que o cheque em questão não se encontrava no domínio das relações imediatas; logo, não era possível ao embargante debater a relação causal à emissão do cheque, sendo, pois, irrelevante a questão de a quantia nele referida já não ser devida por haver sido paga por outro meio.
Entendeu igualmente ser inoponível ao embargante o facto de o cheque haver sido entregue sem data, face ao disposto no art. 22° a LUCH.
Todavia, apreciando a questão da comunicação de extravio do cheque e entendendo que as características da literalidade e da abstracção, pressupondo emissão legal, lícita de um cheque, devem manter-se enquanto a circulação dele for lícita, garantindo tais características aos respectivos portadores contra o sacador, considerou que, a partir do momento em que o cheque não foi devolvido por “D” após haver recebido o pagamento da quantia por ele titulada com a alegação de que se havia extraviado, o cheque passou a assumir carácter ilegal, não podendo vincular o sacador, sendo a sua colocação em circulação, sem conhecimento do sacador, ilícita: "aliás, após o momento em que o embargante comunicou ao banco o extravio, o referido título perdeu as características de título de crédito. Não podendo obter a protecção conferida pela LU'.

Esta posição é insustentável.
Começaremos por referir que o cheque revogado não deixa de poder ser aproveitado como título executivo, desde que se demonstre a irrelevância da revogação.
Com efeito, sendo inquestionável a qualidade de portador legítimo do cheque de “D” - por lhe haver sido endossado pelo embargante para garantia do pagamento de quantia que emprestara (cfr. N° 15 da matéria de facto e resposta ao n° 9 da BI) - apurou-se que o cheque em causa foi por ele [“D”] endossado e entregue ao embargado (cfr. N° 1 da base instrutória).
Por conseguinte, o embargado deve ser considerado portador legítimo do cheque, pois justifica o seu direito pelo endosso que lhe foi feito pelo portador anterior, cuja legitimidade é também indiscutível (art. 19° da LUCH).
O cheque foi, porém, revogado pelo sacador com fundamento em extravio; quer isto dizer que o cumprimento pelo banco sacado da ordem de pagamento incorporada no cheque foi proibido pelo sacador.
A revogação consiste numa "instrução unilateral para não pagamento de um cheque que tenha sido emitido em benefício de (ou endossado a) terceiro. Neste caso, fala-se frequentemente de revogação unilateral, embora sem grande rigor, uma vez que os actos jurídicos devem ser revogados, em regra, por actos de idêntica natureza. E a unilateralidade do acto revogatório do cheque é compatível e consentânea com esta ideia. Assim, sendo a emissão do cheque, objectivamente e numa perspectiva puramente cambiária, um acto unilateral, faz todo o sentido que a revogação, a ser admissível, seja determinada unicamente pelo subscritor do cheque" (Cfr. Cunha, Paulo Olavo, Cheque e Convenção de Cheque, Coimbra: Almedina, 2009, Dissert. Dout., p. 579).
Juridicamente, a revogação do cheque é, pois, subsumível a revogação do mandato (art. 1170° nº 1 CCiv).
Ora, nesta matéria, prescreve a LUCH no seu art. 32° que a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação e que se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.
Sendo o prazo de apresentação de 8 dias para os cheques pagáveis no país onde foram passados (art, 29° LUCH) e tendo o cheque sido entregue a “D” sem data (cfr. Nº 4 da base instrutória), pergunta-se qual o prazo da respectiva apresentação a pagamento.
A data constitui um elemento essencial do cheque, a ponto de a falta da sua indicação determinar a sua ineficácia enquanto cheque (art. 1° nº 5 e art. 2° da LUCH).
Mas uma coisa é o cheque sem data e outra, diversa, é o cheque emitido em branco com data por preencher; neste caso, o cheque entregue sem indicação de data só é válido se posteriormente vier a ser completado nos termos dos acordos realizados.
Por conseguinte, o cheque emitido com data em branco deve ser completado ou preenchido até à data da apresentação a pagamento.
É o caso frequente - e que se verifica também no caso em apreço - dos cheques de garantia: "o cheque de garantia destina-se precisamente a ser datado e apresentado a pagamento, após se verificar que o sacador não cumpriu a obrigação a que se encontrava vinculado" (Cfr. Cunha, Paulo Olavo, ob cit., P: 106).
Logo, é irrelevante o facto de a data aposta no cheque (98/3/3) não ter sido escrita pelo punho do respectivo embargante e subscritor (3 da base instrutória); na verdade, tratando-se de um cheque de garantia e de acordo com o convencionado entre o sacador do cheque e ”D”, seria a este que competia o preenchimento da data.
O certo é que o dito “D” não honrou os compromissos assumidos perante o
subscritor do cheque e, tendo sido reembolsado da importância mutuada, não devolveu o cheque ­que fora ou viria a ser revogado - antes o endossou e entregou a “A”.
Não tendo este logrado obter o pagamento do cheque através do banco sacado, será que o pode obter do respectivo sacador e subscritor? O mesmo é indagar se aqueles factos são oponíveis por este ao actual portador do cheque.
O art. 21 ° da LUCH contém o afloramento de um princípio geral que vai nortear a pesquisa da solução.
Com efeito, segundo ele "quando uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de um cheque, o detentor a cujas mãos ele foi parar - quer se trate de um cheque ao portador, quer se trate de um cheque endossável em relação ao qual o detentor justifique o seu direito pela forma indicada no artigo 19° - não é obrigado a restituí-lo, a não ser que o tenha adquirido de má fé, ou que, adquirindo-o, tenha cometido uma falta grave"
Logo, nos casos mais graves de roubo ou furto de cheque - e quer se trate de um cheque ao portador, quer se trate de um cheque endossável em relação ao qual o detentor justifique o seu direito - o detentor a cujas mãos ele for parar, só deixa de ser considerado portador legítimo - logo, é obrigado a restituí-lo - se o tiver adquirido de má-fé ou se ao adquiri-lo tenha cometido falta grave; em todos os demais casos, não é obrigado a restituí-lo; o que significa que mantém o seu direito cambiário contra os responsáveis. Mas o art. 22° da LUCH é mais claro na enunciação desse princípio geral quando prescreve que "as pessoas accionadas em virtude de um cheque não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador ao adquirir o cheque tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor”.
Logo, o sacador ou subscritor de um cheque - que inequivocamente figura entre as pessoas que podem ser accionadas pelo portador pela falta de pagamento (art. 40° da LUCH) - não pode opor a este as excepções fundadas sobre as relações pessoais dele com o anterior portador e endossante, a menos que demonstre que, ao adquiri-lo, haja procedido conscientemente em detrimento do devedor.
Quer isto dizer que, in casu, não se verificando esta última excepção - que nem sequer alegada foi –“B”, sacador e subscritor do cheque, não pode opor a “A”, portador do cheque, as razões e meios de defesa que poderia invocar contra “D”, designadamente o pagamento da dívida e a recusa por este da devolução do cheque.
O direito cambiário consubstanciado no cheque é autónomo em relação ao negócio subjacente seja à sua emissão, seja ao respectivo endosso e, por conseguinte, a posição de cada portador é independente da dos anteriores subscritor e portador do título; logo, os direitos daquele e destes são independentes entre si (autonomia e abstracção do título).
Isto seguramente no plano das relações mediatas, já que no plano das relações imediatas, ou seja, quando os sujeitos da relação material subjacente coincidem com os sujeitos cambiários, não se justificam aquelas características; logo, nas relações imediatas não há tutela cambiária.
O cheque, no caso dos autos, discute-se entre sujeitos das relações mediaras: com efeito, inexiste qualquer relação negocial entre o subscritor e sacador do cheque e o respectivo portador; o cheque adveio à posse deste em virtude de relações entre ele e o beneficiário inicial do pagamento (“D”) que justificaram o endosso por este a favor daquele.
A autonomia do direito cartular do portador em face dos que o antecederam "significa que cada detentor do título adquire o direito nele incorporado de modo originário relativamente a eventuais vicissitudes que anteriormente tenham ocorrido. A legitimação do portador, e do seu direito, decorre da verificação do cumprimento de aspectos de carácter meramente formal, nomeadamente de que a assinatura de um endossante corresponde ao nome do endossatário anterior e que se verifica existir uma cadeia ininterrupta de endossos ... " (Cfr. Cunha, Paulo Olavo, ob cit, p. 198).

Aqui chegados, cumpre apreciar a relevância da revogação do cheque operada pelo respectivo sacador.
Como se disse, a revogação é uma instrução de não pagamento, contrariando a ordem de pagamento ínsita no cheque; é uma contra-ordem dirigida pelo sacador ao banco sacado visando o não cumprimento por este da ordem de pagamento consubstanciada em determinado cheque; ou seja, para neutralizar a ordem de pagamento consubstanciada no cheque.
Como tal, a revogação opera apenas no âmbito da convenção de cheque estabelecida entre o sacador e o banco, sendo ineficaz perante os beneficiários do cheque, terceiros relativamente a ela.
Como se escreveu no Ac STJ de 20-11-2003 (Cons. Salvador da Costa): "o mandato puro e simples consubstanciado no cheque, a ordem de pagamento nele envolvida, bem como a sua revogação, só respeitam, como é natural, às relações entre o sacador e o sacado.
Não respeitam, pois, a quem foi indicado pelo sacador do cheque como beneficiário da sua ordem de pagamento e que não foi executada pelo sacado por virtude da revogação operada pelo primeiro.
Em consequência, independentemente do motivo da revogação do cheque, ela não afecta, só por si, o direito cambiário do respectivo portador e beneficiário, designadamente a respectiva força executiva' (disponível na INTERNET através de http://www.dgsi.pte consultado em 11-01-2010).
Neste mesmo sentido da irrelevância da revogação relativamente ao direito do portador do cheque, também esta Relação de Évora em acórdão de 12-02-2004 (Des. Maria Laura), também acessível através de http://www.dgsi.pte consultado em 11-01-2004, entendeu que "revogado um cheque e sendo ele apresentado a pagamento no prazo aludido no art. 29° da LUCH, nada impede que o Banco recuse o pagamento. Todavia, ele manterá a sua força executiva'.
No caso em apreço, a revogação do cheque, no âmbito da convenção de cheque entre o Banco e o sacador e a consequente recusa por aquele do pagamento, não afecta os direitos do portador mediato que justifica o seu direito através de endossos regulares contra os demais responsáveis.
A necessidade de protecção da circulação cambiária do cheque e o primado da aparência deste determinam a desvalorização das vicissitudes relacionadas com a convenção de cheque em benefício dos interesses do tráfico cambiário e da confiança de terceiros.
Eis, porque, a nosso ver, a oposição deduzida pelo sacador e subscritor do cheque a execução contra ele movida pelo portador (mediato) deste deveria ter sido julgada improcedente.
Nesta conformidade, procede a apelação.

Em síntese:
I - A revogação de cheque só opera nas relações entre o sacador-subscritor do cheque e o banco sacado;
II - Assim, um cheque revogado não deixa de ser título executivo entre os respectivos subscritor-sacador e portador;
III - Endossado o cheque pelo respectivo primeiro tomador e portador, são inoponíveis ao portador endossatário as excepções fundadas nas relações entre o subscritor do cheque e aquele tomador, a menos que se demonstre que este o adquiriu de má fé ou com falta grave.

ACÓRDÃO
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar procedente a apelação e, revogando a douta sentença recorrida, declarar improcedente a oposição à execução, ordenando o prosseguimento desta.
Custas pelo embargante.
Évora e Tribunal da Relação de Évora, 28.01.2010