PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
INÍCIO DA EXECUÇÃO
Sumário


1. O cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir só se inicia, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia em que se verificou a entrega do título de condução no Tribunal a quo, à ordem do processo.

Texto Integral


Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


I – RELATÓRIO:

A 22/06/09 foi proferido despacho, nestes autos, com o seguinte teor:

«C. foi condenado em 10 de Abril de 2008 na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 e na pena acessória de conduzir veículos motorizados pelo período de 9 meses pela pratica, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 69º, n.º 1, al. a) e 291º, n.º 1 do Código Penal.

O condenado informou nos autos que não tinha a sua carta de condução na sua posse por se encontrar apreendida pela ANSR, tendo esta entidade remetido a carta de condução aos autos em 9 de Março de 2009 (fls. 71 e 96).

Foi o Tribunal informado que foi emitido, em 12 de Agosto de 2007 uma guia de substituição válida até 3 de Setembro de 2007, a qual se encontra apreendida nos termos do artigo 173º do Código da Estrada (fls. 108 e 109).

O Ministério Público promoveu que o período de proibição de conduzir seja calculado com início na data do trânsito em julgado da sentença, ou seja, em 22 de Setembro de 2008.

Cumpre apreciar e decidir:

O artigo 69º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 59/207, de 4 de Setembro, dispõe que:

“1- É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º;

b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou

c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

2- A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria.

3- No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.

4- A secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à Direcção-Geral de Viação no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, bem como participa ao Ministério Público as situações de incumprimento do disposto no número anterior.

5- Tratando-se de título de condução emitido em país estrangeiro com valor internacional, a apreensão pode ser substituída por anotação naquele título, pela Direcção-Geral de Viação, da proibição decretada. Se não for viável a anotação, a secretaria, por intermédio da Direcção-Geral de Viação, comunica a decisão ao organismo competente do país que tiver emitido o título.

6- Não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

7- Cessa o disposto no n.º 1 quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação da cassação ou da interdição da concessão do título de condução, nos termos dos artigos 101.º e 102º”.

Por sua vez, o artigo 500º do Código de Processo Penal estabelece que: “1- A decisão que decretar a proibição de conduzir veículos motorizados é comunicada à Direcção-Geral de Viação.

2- No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.

3- Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.

4- A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.

5- O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável à licença de condução emitida em país estrangeiro.

6- No caso previsto no número anterior, a secretaria do tribunal envia a licença à Direcção-Geral de Viação, a fim de nela ser anotada a proibição. Se não for viável a apreensão, a secretaria, por intermédio da Direcção-Geral de Viação, comunica a decisão ao organismo competente do país que tiver emitido a licença.”.

A questão de saber quando se inicia o cumprimento da pena acessória em causa deu origem a duas posições jurídicas divergentes: inicia-se com o trânsito em julgado da decisão independentemente da entrega da carta e/ou licença de condução ou inicia-se apenas a partir da entrega destas.

Ora, não obstante resultar do artigo 69, n.º 2 do Código Penal que “a proibição “produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão”, não pode ver-se nesta expressão a intenção de fazer iniciar o cumprimento da pena com o trânsito em julgado da decisão. Tal decorre do facto da lei dizer ainda que, “no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condutor entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela o título de condução, se o mesmo se não encontrar já apreendido no processo” - art. 69, n.º 3 do Código Penal” [1] concluindo-se que a referência ao trânsito em julgado apenas tem o significado de deixar claro que, enquanto tal não ocorrer, não se inicia o cumprimento da pena, sendo necessário para que se inicie o cumprimento da pena acessória a entrega efectiva da carta e/ou licença de condução.

Por outro lado, o artigo 160º, n.º 1 do Código da Estrada estabelecer que “os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir”, o que reforça a ideia de que não faria sentido, atenta a necessidade de coerência no ordenamento jurídico, que o cumprimento da sanção acessória por um ilícito de mera ordenação fosse mais gravosamente tutelada do que a correspondente pena acessória no âmbito dos ilícitos penais.

Importa ainda referir que, “ao fazer depender o inicio da execução da medida da entrega da carta de condução, ou da sua apreensão, se ponha de algum modo na dependência de tal facto não só o “quando” da execução mas o “se” dessa mesma execução com óbvias dificuldades práticas nas situações em que o condenado se procura eximir à efectiva apreensão do título de condução, sempre se dirá que se trata de um risco que é comum à execução de qualquer reacção criminal imposta por decisão condenatória. Pelo contrário, o cumprimento sem a efectiva apreensão do título de condução, legitima na prática formalmente o condutor condenado que continue a conduzir. Para além de resultar grandemente dificultada a efectiva implementação prática da sanção imposta, agravar-se-ia seriamente o risco de cumprimento meramente formal da sanção imposta, o que se revela contrário ao efectivo cumprimento da proibição de conduzir pretendido pelo legislador, conforme resulta do nº 6 do art. 69º do Código Penal, para além do desprestígio para as decisões dos tribunais que daí poderia resultar Nesta parte, seguimos de perto a argumentação expendida no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-10-2006, supra referido” [2].

Finalmente, há que referir que outra conclusão não se pode retirar da conjugação do artigo 69º do Código Penal com o disposto no artigo 500º do Código de Processo Penal, o qual, em consonância com o n.º 3 do citado artigo 69º do Código Penal estabelece um prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão condenatória para que o condenado proceda à entrega do titulo de condução, dispondo por sua vez o nº 4 do citado artigo 500º do Código de Processo Penal que a secretaria do Tribunal retém o título de condução durante o tempo que durar a proibição, sendo feita uma correspondência entre o tempo de retenção da carta e/ou e o tempo de proibição de conduzir.

Em face do exposto, entende-se que o período de inibição de conduzir só se inicia com a entrega efectiva da carta e/ou licença de condução pelo condenado, sendo certo que nestes autos a carta de condução do condenado, que estava apreendida por outras razões, só foi remetida ao Tribunal em 9 de Março de 2009, razão pela qual o período da pena acessória só termina em 9 de Dezembro de 2009 [3].

Notifique e comunique à ANSR.

Em 10 de Dezembro de 2009 remeta a carta de condução e guia de substituição às entidades que as remeteram aos autos».
***
Inconformado, o Ministério Público recorreu, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

«Nos presentes autos, C. foi condenado, por decisão datada de 10 de Abril de 2008, transitada em julgado em 22 de Setembro de 2008, na pena de 110 dias de multa, à razão diária de 7€, bem como na sanção acessória de proibição de condução, pelo período de 9 (nove) meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

2ª Entretanto, o título de habilitação legal do arguido encontra-se apreendido à ordem dos presentes autos desde 11 de Março de 2009.

3ª Analisados os argumentos esgrimidos acerca desta matéria jurídica, salvo melhor opinião, entendemos que a tese que melhor se concilia com a unidade do sistema jurídico, segundo o disposto no art. 9º do Código Civil, é aquela que pugna pelo entendimento de que a execução da pena acessória de inibição de conduzir se inicia com o trânsito em julgado da decisão que a aplicou.

4ª Efectivamente, o entendimento resultante do argumento histórico acerca do disposto no nº 2 do art. 69º do Código Penal, segundo o qual apenas foi intenção do legislador que ficasse claro que a sanção acessória apenas se tornaria eficaz com o trânsito em julgado, não se afigura como acertada e isenta de dúvidas perante as regras gerais de eficácia e estabilidade das decisões judiciais.

5ª No que respeita ao argumento aduzido pela Mmª Juiz a quo, no sentido que não faria sentido que o cumprimento da sanção acessória por um ilícito de mera ordenação social fosse mais gravosamente tutelada, não se afigura, salvo melhor opinião, como verdadeira, pois a eficácia da decisão que a aplicou se encontra assegurada pelo ilícito penal de violação de proibições consagrado no art. 335º do Código Penal.

6ª Afigura-se, salvo melhor opinião, que o cumprimento da sanção acessória aplicada nos presentes autos se extinguirá, pelo seu cumprimento, em 22 de Junho de 2009, e que a Mmª Juiz a quo, ao decidir pela forma acima mencionada, violou o disposto no nº 2 do art. 69º do Código Penal.

Em suma,

A decisão ora em crise deverá ser revogada e alterada por outra que decida pelo início do cumprimento da sanção acessória ao dia do trânsito em julgado da decisão proferida nos presentes autos, pela circunstância de a decisão em causa, ora em crise, violar o disposto no nº 2 do art. 69º do Código Penal».
***
O arguido não contra-alegou.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

II- Questões a decidir:

Conforme resulta do artº 412º/1, do CPP – na redacção dada pelo DL nº 303/2007, de 24/8, aplicável aos autos – a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pelas conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Deste dispositivo se retira, unanimemente, que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso [4], exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso [5].

A questão colocada pelo recorrente é apenas saber qual o momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo da inibição de conduzir.

III- Fundamentos de facto:

Há que considerar assente, por força dos documentos autênticos juntos aos autos, que:

1- C. foi condenado, em 10 de Abril de 2008, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 e na pena acessória de conduzir veículos motorizados pelo período de 9 meses, pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 69º, n.º 1, al. a) e 291º, n.º 1 do Código Penal.

2- A referida sentença transitou em julgado a 22/09/2008.

3- O condenado informou nos autos que não tinha a sua carta de condução na sua posse por se encontrar apreendida pela ANSR.

4- A ANSR entregou a carta de condução do arguido, à ordem destes autos, em 9 de Março de 2009, para cumprimento da sanção de inibição de conduzir.

IV- Fundamentos de direito:

Em causa neste recurso está tão-somente saber qual o momento a partir do qual se fixa o início da contagem do prazo durante o qual o arguido teria que cumpri a pena acessória de inibição de conduzir.

A questão coloca-se porque quando do trânsito em julgado da sentença que fixou essa inibição, o arguido tinha a carta de condução já apreendida à ordem da ANSR. Essa apreensão só deixou de vigorar a partir do momento em que aquela ANSR remeteu a carta de condução do arguido a juízo, à ordem deste processo, para que o arguido cumprisse a medida.

A questão tem sido jurisprudencialmente debatida, nos termos que o Ac. RC, de 05/12/1007, tirado no proc. 178/06.OGTCBR, resume de forma que subscrevemos inteiramente, razão pela qual a transcrevemos:

Há «duas correntes jurisprudenciais opostas.

Uma, minoritária - Acórdãos da Relação do Porto, de 1 de Abril de 2002 e de 8 de Outubro de 2003, in www.dgsi.pt , nº. de processo: 0340506; Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 1º volume, 1995, pag. 542; LATAS, António João Casebre, in "A pena acessória de proibição de conduzir", SubJudice, n .I 17, Janeiro/Marco 2000, Maio de 2001, pág. 95; "Condução em estado de embriaguez, Aspectos Processuais e Substantivos”, Pedro Soares Albergaria e Pedro Mendes Lima, estudo em www.verbojuridico.net., sustenta como o despacho recorrido, que o período de proibição de conduzir se inicia com o trânsito em julgado da decisão que aplicou essa pena acessória, independentemente da entrega do documento que habilita ao exercício da condução.

Os defensores desta tese argumentam, em síntese:

1. Com base no elemento literal (textual ou gramatical) afirmam que o nº 2 do art. 69º do Código Penal não deixa margem para dúvidas ao estatuir que “a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão”;

2. Embora constasse do anteprojecto de 1987 de Revisão do Código Penal, a regra do desconto no período de cumprimento da proibição do prazo "(...) decorrido entre a data do trânsito da condenação e a entrega da licença (...)", tal não passou para o texto final, tendo sido eliminada logo pela Comissão de Revisão que introduziu a redacção actualmente consagrada no artº 69° n.º 2, do Código Penal, após o Conselheiro Manso Preto ter proposto que ficasse claro que a medida se tornava eficaz com o trânsito em julgado da decisão “Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Ministério da Justiça, 1993, pág. 75;

3. A apreensão da carta tem natureza meramente cautelar, de controlo de execução da pena, não sendo essencial ao cumprimento da pena acessória, a entrega do título de condução;

4. Face à possibilidade de poder ser aplicada a pena acessória de proibição de condução a quem não seja titular de documento que legalmente habilite à condução e de, nestes casos, não se poder manifestamente exigir a entrega de um título de que o condenado não é portador, uma interpretação sistematicamente coerente, exige tratamento igual quer o agente seja ou não titular de documento que o habilite a conduzir.

5. Ao elevar a entrega ou apreensão do título à de condição de execução da pena resultam inconvenientes tão sérios como a insustentável incerteza da execução da pena não apenas no seu "quando", mas até no seu "se", nos casos em que o condenado se furta à entrega ou à apreensão do título ou quando genuinamente o não possa entregar.

Outra tese, sufragada pela maioria da doutrina e jurisprudência - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VoI. III, 2.ª Ed. Verbo, 2000, 426; Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 94 e 177; Ac. da R.P de 13.12.2006, www.dgsi.pt; Ac. da R.L de 24.01.2007, Processo: 7836/2006-3 em www.dgsi.pt; Ac. da RC de 18.10.2006, proc.1224/04.7GBAGD-A.C1 em www.dgsi.pt; Ac. da RC de 01.03.2007, Processo: 239/04.0GTAVR-A.C1 em www.dgsi.pt, todos estes citados pelo Ministério Público nas suas doutas alegações e, ainda, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-01-2007, Processo: 9999/2006-3, no mesmo site; Ac. da Rel. de Guimarães, de 8 de Julho de 2002, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII, Tomo IV, pág. 282; Ac. da Rel. de Coimbra, de 26 de Março de 2003, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, Tomo lI, pág. 41; Ac. da Relação do Porto de 14-06-2006 e de 7-12-2005 in www.dgsi.pt; Acórdãos da Relação de Évora de 10-11-2005 e 29-03-2005 in www.dgsi.pt, e de 20-12-2005 in CJ ANO XXX, T 5, págs. 282), da Relação de Guimarães de 10-03-2003 in CJ XXVIII, T.2, pgs. 285 - sustenta que o período de proibição de conduzir se inicia com a entrega do documento que habilita ao exercício da condução, desde que o agente seja titular desse documento.

Vejamos porquê:

Ao contrário do que numa leitura desacompanhada parece resultar da letra do nº 2 do art. 69º do Código Penal, aquele dispositivo apenas pretendeu esclarecer que a proibição apenas se torna exequível a partir do trânsito em julgado da decisão (e foi com esse sentido que se escolheu a expressão dúbia “produz efeito”).

Foi esse o propósito do legislador, como resulta da discussão que teve lugar na Comissão de Revisão “Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Ministério da Justiça, 1993, pág. 75. Efectivamente, no Anteprojecto constava um nº 4 al. b) que estipulava que “não conta para o prazo da proibição o tempo (…) que tenha decorrido entre a data do trânsito da condenação e a entrega da licença…”. Na discussão deste artigo o Conselheiro Manso Preto propôs que ficasse claro no texto que a medida se torna eficaz com o trânsito em julgado da decisão ao que o Professor Figueiredo Dias retorquiu que tal ideia resulta já da alínea b) do nº 4. Dessa discussão resultou a alteração da redacção de molde a recolher a menção expressa à produção de efeitos após o trânsito em julgado. Da forma como a questão é colocada no seio da Comissão e da expressão utilizada pelo Conselheiro Manso Preto (tornar eficaz), por confronto com a redacção do nº 4 al. b) do Anteprojecto decorre que a preocupação da Comissão era apenas a de deixar bem claro que a pena acessória não era cumprida entre a prolação da sentença e o seu trânsito em julgado, certamente sensibilizados por alguma prática judiciária na época. De outra forma, não faria sentido a resposta do Prof. Figueiredo Dias constante das ditas actas.

Também a Proposta de Lei 92/VI referia a expressão no tempo futuro: “a proibição produzirá efeito…” “Reforma do Código Penal – Trabalhos Preparatórios”, Volume I, Comissão de Assuntos Constitucionais, direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, 1995, pg. 27.

Historicamente, nesta parte o art. 69º nº 2 do Código Penal regulamenta matéria antes prevista no art.º 4°, nº 3, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril (regime sancionatório da condução sob a influência do álcool) em que se condiciona a contagem do período de inibição de conduzir à entrega ou apreensão da carta e não há notícia de que o legislador quisesse mudar o sistema vigente nessa parte. Assim, a tradição jurídica portuguesa é a de subordinação da contagem do período de inibição de conduzir à entrega ou apreensão da carta.

Por outro lado, estatuindo o art. 160º nº 1 do Código da Estrada à semelhança do que já acontecia com o artigo 166º nº 1 do Código da Estrada na redacção anterior decorrente do DL 265-A/2001 de 28/9, com as alterações da Lei nº 20/2002 de 21/8, que “os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir” não faria sentido ­- no ordenamento jurídico Português que se pretende coerente - o cumprimento da sanção acessória por um ilícito de mera ordenação fosse mais gravosamente tutelada do que a correspondente pena acessória no âmbito dos ilícitos penais.

Embora ao fazer depender o inicio da execução da medida da entrega da carta de condução, ou da sua apreensão, se ponha de algum modo na dependência de tal facto não só o “quando” da execução mas o “se” dessa mesma execução com óbvias dificuldades práticas nas situações em que o condenado se procura eximir à efectiva apreensão do título de condução, sempre se dirá que se trata de um risco que é comum à execução de qualquer reacção criminal imposta por decisão condenatória.

Pelo contrário, o cumprimento sem a efectiva apreensão do título de condução, legitima na prática formalmente o condutor condenado que continue a conduzir. Para além de resultar grandemente dificultada a efectiva implementação prática da sanção imposta, agravar-se-ia seriamente o risco de cumprimento meramente formal da sanção imposta, o que se revela contrário ao efectivo cumprimento da proibição de conduzir pretendido pelo legislador, conforme resulta do nº 6 do art. 69º do Código Penal, para além do desprestígio para as decisões dos tribunais que daí poderia resultar Nesta parte, seguimos de perto a argumentação expendida no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-10-2006, supra referido.

A interpretação sistemática da norma em causa também tem de ser efectuada com o seu confronto e conjugação com as normas processuais pertinentes, tendo em conta a unidade do sistema jurídico.

Desta forma haverá de considerar-se o preceituado no art. 500º do Código de Processo Penal que, em plena consonância com o nº 3 do art. 69º do Código Penal estabelece um prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão condenatória, para que o condenado proceda à entrega do titulo de condução, dispondo por sua vez o nº 4 do referido normativo que a licença fica retida na secretaria do tribunal durante o tempo que durar a proibição. É assim feita uma correspondência entre o tempo de retenção da licença e o tempo de proibição de conduzir, quando, a proceder a tese da decisão recorrida se imporia que estivesse previsto um desconto do tempo que decorresse entre o trânsito e a efectiva apreensão. Seguimos de perto a argumentação expendida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-10-2006, supra referido.

Não se justifica também enfatizar a entrega ou apreensão do título de condução como “ condição de execução da pena” quando é sabido que em muitas outras situações de decisões condenatórias a sua exequibilidade está dependente da prática ou verificação de facto posterior. É verdade que o artigo 467º nº 1 do Código de Processo Penal estabelece como princípio geral o de que as decisões condenatórias que impõem reacções criminais têm execução imediata. Porém, exequibilidade ou execução enquanto actividade judiciária direccionada a promover a efectiva realização da sanção aplicada, não é o mesmo que cumprimento ou execução enquanto actividade que visa materializar aquela execução - Manuel António Lopes da Rocha in “Execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade” – Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 476.

Também não faz sentido argumentar com o diferente tratamento no caso do agente não ser titular de qualquer documento que o habilite a conduzir porque não se pode tratar de maneira igual o que é diferente. É objectivamente impossível fazer depender a efectiva execução de uma sanção da entrega de algo inexistente, quando o fim pretendido pela norma se obtém, nessas situações, fazendo coincidir o início do período de proibição de conduzir com o trânsito em julgado da decisão, embora com uma manifesta diminuição das garantias de real cumprimento, fruto de circunstâncias factuais diversas.

Por fim, importa referir que a justa interpretação, temperada pelo princípio da actualidade “muito embora ressalvando sempre, nos termos apropriados, os limites e as indicações do texto e do sistema, (…) deixa entretanto à iniciativa do julgador a margem precisa para a habilitar, até certo ponto bastante elevado, a ir derivando da lei as soluções pedidas pela consciência jurídica nos vários tempos e circunstâncias” “Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, Manuel A. Domingues Andrade, 4ª ed, Coimbra, 1987, pg. 95. E, confrontados com fenómenos tão graves de sinistralidade automóvel, não pode sofrer contestação, que a interpretação aqui sustentada é a que melhor se adequa às actuais necessidades de prevenção e tutela dos valores relacionados com a segurança rodoviária e com a necessidade de aumentar as garantias dum efectivo cumprimento da pena acessória».

A tese sufragada, supra transcrita, é, quanto a nós também, a que se ajusta quer à unidade do sistema, quer à necessidade de garantir que o cumprimento da pena acessória se processe efectivamente, apenas assim se exercendo o jus puniendi.

O entendimento contrário levaria a que, em situações como a presente, o condenado em várias inibições de conduzir apenas cumprisse parte, ou mesmo nada, das inibições decretadas após a primeira, desde que o trânsito em julgado da respectiva sentença ocorresse no decurso desse cumprimento. Não é isso que se pretende. As penas acessórias são de cumulação material e não jurídica. Logo, cada uma delas executa-se por si e, se necessário, umas em sucessão das outras. Entendemos, tal como aliás já foi entendido nesta Relação, nos acórdãos citados na decisão recorrida, que o «primeiro segmento normativo ínsito no n.º 2 do dispositivo 69.º do Código Penal quer tão-só significar que o condenado não pode ser impedido de conduzir antes de transitar em julgado a sentença impositiva da sanção acessória de referente proibição, aliás de acordo com o princípio geral prevenido no art.º 467.º/1, do CPP, de que a exequibilidade de qualquer sentença penal condenatória depende do respectivo trânsito em julgado» [6].

Ou seja, o termo inicial do efectivo cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir pressupõe, sempre e cumulativamente, «a realização da condição suspensiva do prévio desapossamento do título pessoal de condução ao arguido – ou pela anterior efectivação da sua apreensão, (como medida cautelar/probatória, nos termos do art.º 178.º, ou coactiva, em conformidade com o estatuído no preceito 199.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP]) ou pela sua posterior/obrigatória entrega pelo próprio titular, no prazo de 10 (dez) dias, ou, em caso de atinente omissão, pela correspondente apreensão, por ordem do tribunal –, e da sua efectiva liberdade de movimentação» [7].

Face ao exposto, conclui-se que o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir só se inicia, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia em que se verificou a entrega do título de condução no Tribunal a quo, à ordem deste processo.

Deverá pois improceder o recurso interposto.

IV - Decisão:

Acorda-se, pois, em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Isento de custas

Texto processado e integralmente revisto pela relatora.

Évora, 04/02/2010

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(Maria da Graça dos Santos Silva)

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(António Alves Duarte)




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[1] Ac. RE de 10-11-2005, que tem como Relator Fernando Ribeiro Cardoso, com texto integral disponível em www.dgsi.pt.
[2] Ac. RP de 05-12-2007, que tem como Relator Simões Raposo, com texto integral disponível em www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, Lisboa, 2ª edição, 2000, p. 426 e, na jurisprudência, v.g. Ac. RC de 19-01-2007, que tem como Relator Inácio Monteiro, Ac. RC de 05-12-2007, que tem como Relator Simões Raposo, Ac. RP de 10-01-2007, que tem como Relatora Maria Elsa Marques, Ac. RP de 19-07-2006, que tem como Relator Augusto de Carvalho, Ac. RP de 13-12-2006, que tem como Relator Guerra Banha, Ac. RE de 10-11-2005, que tem como Relator Fernando Ribeiro Cardoso, Ac. RE de 29-03-2005, que tem como Relator Rui Maurício, todos com texto integral disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271.
[5] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.
[6] Ac. no proc. 239/04.0GTAVR-A.C1, de 01/02/2007.
[7] Ac. RE. Supra citado.