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ARRENDAMENTO COMERCIAL
ACÇÃO DE DESPEJO
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
Sumário
I – A locação de estabelecimento é um negócio jurídico em que o objecto do negócio é o próprio estabelecimento comercial e não alguma coisa de substancialmente distinto.
II - Na locação do estabelecimento, para além do carácter temporário da cedência, não há locação do imóvel, nem transmissão do arrendamento, pois o cedente, sendo o arrendatário, mantém a titularidade do direito.
III - A locação do estabelecimento não está dependente de autorização do senhorio, nem se vê que exista qualquer obrigatoriedade de comunicação, pois o cedente continua a ser o arrendatário, tendo apenas transferido para outrem, por tempo limitado, a exploração do estabelecimento.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA * “A” instaurou, no tribunal da comarca de… uma acção de despejo contra “B”, viúva, “C”, casada segundo o regime da comunhão de adquiridos, “D”, casada segundo o regime da comunhão de adquiridos e “E”, casada segundo o regime da comunhão de adquiridos, pedindo que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento comercial relativo ao prédio sito na Rua …, n° …, r/chão, freguesia de …, …, e as rés condenadas a entregar o imóvel livre e desimpedido de pessoas e bens, sendo ainda as rés condenadas solidariamente no pagamento de montante não inferior a 600,00 euros por cada mês que decorra desde Setembro de 2006, até efectiva entrega do bem, quantia acrescida de juros de mora à taxa legal, a qual ascende, até ao presente, ao montante de 7.200,00 euros.
Alegou, no essencial, que é usufrutuário do prédio urbano sito na Rua …, nºs 56 e 56-A, freguesia de …, concelho de … tendo a antepossuidora do mesmo prédio celebrado um contrato de arrendamento comercial, relativo ao r/chão, com um senhor barbeiro de nome “F”, sendo o arrendatário substituído por “G”, nos termos do contrato de arrendamento celebrado no dia 1 de Abril de 1981.
Por escritura pública celebrada em 23 de Dezembro de 1997, a ré “B” e o marido cederam a exploração do locado a “H”, pelo prazo de um ano, renovável, aí funcionando agora uma barbearia.
Por carta enviada a 18 de Setembro de 2006, a ré “B” comunicou que o arrendatário “G” falecera a 23 de Junho de 2006, deixando as rés como herdeiras.
O autor considerou terminado o arrendamento, por morte do arrendatário, nos termos do artigo 58° da Lei 6/2006, e solicitou a entrega do imóvel, recusando-se a receber as rendas oferecidas pela ré “B”.
Acresce que não foi comunicado ao autor a cessão de exploração, obrigação que cabia ao locatário, nos termos do artigo 10380 al. g) do Código Civil, o que também constitui fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.
Após a cessação do contrato, com a comunicação da morte do arrendatário, a ré “B” continuou a receber renda da cessionária e, não tendo entregue o imóvel, impediu o autor de o arrendar, desde 18 de Setembro de 2006, sendo o valor do local, para efeitos de novo arrendamento, de 600,00 euros por mês, pelo menos.
As rés, na contestação, excepcionaram a caducidade, de acordo com o disposto no artigo 10850 n° 1 do Código Civil, e invocaram que o falecido arrendatário comunicou ao autor a cessão de exploração do estabelecimento, embora a tal não estivesse obrigado, porquanto a cessão da exploração não se insere em qualquer das hipóteses previstas na alínea g) do artigo 10380 do CC.
Para além disso, a ré “B” era casada com “G”, segundo o regime da comunhão geral de bens, pelo que o arrendamento não findou com a morte deste, uma vez que comunicou ao autor que não renunciava ao arrendamento.
Impugnaram as rés, de igual modo, o direito do autor ao recebimento de indemnização, por não terem praticado qualquer facto ilícito, tendo ainda impugnado o valor peticionado.
O autor respondeu e, em seguida, foi elaborado despacho saneador a julgar, para além do mais, improcedente a invocada excepção de caducidade.
Procedeu-se, ainda, à selecção da matéria de facto relevante.
Realizado julgamento, foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção, declarando-se a resolução do contrato de arrendamento apenas com fundamento na falta de comunicação ao autor da cessão de exploração do estabelecimento comercial, conforme o disposto no artigo 1038° al. g) do Código Civil, condenando-se as rés a entregar o locado livre e devoluto.
Consequentemente, foram as rés absolvidas dos demais pedidos.
Inconformadas, as rés apelaram, tendo alegado e formulado conclusões no sentido da revogação da sentença, julgando-se a acção inteiramente improcedente, dado que a eficácia da cessão da exploração do estabelecimento não está dependente de comunicação ao senhorio.
O autor não contra-alegou.
Os Exmºs Desembargadores Adjuntos tiveram visto nos autos.
São os seguintes os factos dados como provados pela 1ª instância:
1. O autor é usufrutuário de um prédio sito na Rua …, com os nºs de polícia 56 e 56-A, freguesia de …, concelho de …, descrito na CRP com o n° 1597 e inscrito sob o artigo 1537 na matriz predial urbana.
2. A antepossuidora do prédio, “I”, celebrou contrato de arrendamento comercial com um senhor barbeiro de nome “F” do rés-do-chão do referido prédio, com a sociedade “J”, sendo a arrendatária substituída por “G”, nos termos do contrato celebrado no dia 1-04-81.
3. Em 16-09-82, “G”, e a primeira ré, “K” e “L”, como sócios da “J” dissolveram a sociedade.
4. Nessa escritura, foi declarado que a sociedade dissolvida possui como activo ... um estabelecimento comercial de barbearia, instalado no rés-do-chão com os números de polícia 56 e 56-A, na Rua …, freguesia de …, desta cidade, inscrito na matriz sob o artigo 1537.
5. Na referida escritura, foi declarado que o senhorio é o autor e que a renda paga em Setembro de 1982 é de 1.500$00.
6. O estabelecimento foi adjudicado a “G”.
7. A renda mensal actual é de 30,15 euros.
8. Por escritura, no dia 23-12-1997, a primeira ré e seu marido, celebraram escritura de cessão de exploração do local arrendado a favor de “H”, com início a 01-01-98 e celebrada pelo prazo de um ano, renovável por interesse das partes.
9. O preço da cessão foi de 1.278.988$00 pago em duodécimos mensais de 105.749$00.
10. No local funciona actualmente um estabelecimento de barbearia.
11. Por carta de 13-11-2006, a primeira ré apresentou ao autor, declaração fiscal sua e do seu marido relativa ao ano de 2005, argumentando que explorava o estabelecimento comercial.
12. Por carta datada de 18-09-2006, a 1ª ré comunicou ao autor que o arrendatário, “G”, faleceu no dia 23-06-2006, deixando como herdeiras as rés.
13. A primeira ré não exercia com o marido actividade de barbearia.
14. Nunca trabalhou naquele estabelecimento.
15. O valor do estabelecimento como arrendamento é de 500,00 euros mensais.
16. Em 24-12-1997, “G” enviou uma carta registada ao autor informando-o da cessão de exploração do estabelecimento de barbearia, desconhecendo-se se a carta foi recebida pelo autor.
Esta factualidade, que não foi atacada em sede de recurso, tem-se como definitivamente assente, dado que não há motivo para a alterar, nos termos do artigo 712° do Código de Processo Civil.
Por outro lado, como é sabido, o objecto do recurso mostra-se delimitado pelas conclusões das alegações das apelantes (artigos 684° n° 3 e 690° n° 1 do CPC).
Doutro passo, tendo a sentença recorrida determinado a resolução do contrato, unicamente, com fundamento na falta de comunicação, ao senhorio, da cessão da exploração do estabelecimento comercial, no prazo consignado na alínea g) do artigo 1038° do Código Civil, transitou em julgado no segmento em que absolveu as rés dos demais pedidos e fundamentos invocados pelo autor, dado ter sido julgado deserto o recurso subordinado interposto pelo autor, por falta de alegações.
Assim sendo, a questão central que se coloca consiste em saber se a falta de comunicação ao senhorio da cessão de exploração do estabelecimento, v.g. no prazo indicado na al. g) do artigo 1038° do Código Civil, constitui fundamento para a resolução do contrato de arrendamento comercial, nos termos da al. f) do artigo 64° do RAU.
De notar, ainda, que à situação em apreço não são aplicáveis as disposições do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Na verdade, ao dispor o artigo 26° n° 1 deste diploma que os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Dec. Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, passam a ser submetidos ao NRAU, tal não significa que a apreciação dos factos ocorridos na vigência da lei antiga seja feita à luz da lei nova, porquanto, se os factos ocorreram no domínio da lei antiga, produzindo os seus efeitos, é-lhes aplicável a lei que então vigorava.
O que está conforme ao n° 2 do artigo 12° do Código Civil: ainda que seja atribuída eficácia retroactiva à nova lei, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
No caso dos autos, tendo a cessão de exploração do estabelecimento ocorrido em 23 de Dezembro de 1997 (cf. 8. supra e doe. de fls. 34 a 36), são aplicáveis as normas vigentes ao tempo.
Vejamos, então:
De acordo com o apurado, “G”, já falecido, e sua mulher “B”, ré nos autos, celebraram, em 23 de Dezembro de 1997, no 2° cartório notarial de …, um contrato que apelidaram de "cessão de exploração" (fls. 34 a 36), através do qual cederam a exploração, a “H”, de um estabelecimento de barbearia instalado em parte do r/chão do prédio urbano, anteriormente identificado, pelo prazo de um ano, renovável, mediante a retribuição de 1.268.988$00, paga em duodécimos mensais (fls. 34 a 36).
Ainda ficou estipulado que ficam a cargo da cessionária "a liquidação das contribuições, electricidade, água, gás, multas e demais factos que lhe sejam imputados pelo exercício da sua actividade naquele local".
Com esta configuração, não oferece dúvida a qualificação de tal contrato como sendo de "locação do estabelecimento" ou "cessão de exploração do estabelecimento", contrato atípico regulado pela convenção das partes, no âmbito do princípio da autonomia privada da liberdade contratual.
Supletivamente pelas disposições dos contratos afins e pelas regras gerais dos contratos.
Não lhe sendo aplicáveis, no entanto, as disposições relativas ao contrato de arrendamento, afastadas expressamente pelo nº 1 do artigo 111 ° do RAU, segundo a qual "não é havido como arrendamento de prédio urbano ou rústico o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com a fruição do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado".
A locação de estabelecimento é, assim, um negócio jurídico sui generis em que o objecto do negócio é o próprio estabelecimento comercial e não alguma coisa de substancialmente distinto (cf. Orlando Carvalho, RLJ, ano 1100, pg. 104).
O estabelecimento é uma unidade económica baseada num complexo (universalidade) teleologicamente organizado para determinado prosseguimento. Inclui matérias-primas, mercadorias, máquinas, marcas, créditos, nome, clientela, etc.
Para Orlando de Carvalho, o estabelecimento comercial, enquanto possível objecto de negócios, é uma organização concreta de factores produtivos como valor de posição no mercado (Dtº das Coisas, pg. 196, e RLJ, 1150, pg. 167).
Nas palavras de Ferrer Correia, estabelecimento comercial vem a significar o mesmo que o complexo da organização comercial do comerciante, o seu negócio em movimento ou apto para entrar em movimento (Estudos Jurídicos II, pág. 255).
O estabelecimento não está nas próprias coisas, está na organização delas para os fins da produção: é uma unidade de fim (cf. ob. cit., pg. 263).
Ainda de acordo com Ferrer Correia, o estabelecimento deve ser entendido como uma verdadeira unidade jurídica objectiva, como algo de distinto da mera pluralidade das partes componentes (cf. Lições Dtº Com. 1973, I vol, pg. 230).
Por isso, seguindo Antunes Varela, o que há de característico nos contratos de locação de estabelecimento não é a cedência da fruição do imóvel, nem a do gozo do mobiliário ou do recheio que nele se encontra, mas a cedência temporária do estabelecimento como um todo, como uma universalidade, como uma unidade económica mais ou menos complexa (RLJ, ano 100°, pg.270).
Deste modo, na locação do estabelecimento, para além do carácter temporário da cedência, não há locação do imóvel, nem transmissão do arrendamento, pois o cedente, sendo o arrendatário, mantém a titularidade do direito.
Como se salienta no acórdão do STJ, de 2 de Março de 2004 (relator Pinto Monteiro), a cessão importa somente uma mudança de sujeito no que respeita à exploração do estabelecimento, que continua a ser o mesmo, mantendo o arrendamento existente. O arrendatário permanece com os mesmos vínculos, direitos e obrigações. O senhorio em nada vê alterada a sua posição relativamente ao locatário.
Contrariamente ao que sucede no trespasse, como se sabe, pois aqui há não só uma transmissão definitiva da titularidade do estabelecimento, como uma transmissão da posição do arrendatário.
No caso de trespasse do estabelecimento, o senhorio do prédio arrendado goza do direito de preferência (art. 116° n° 1 do RAU), pelo que o arrendatário sempre terá que lhe comunicar a sua pretensão de trespasse, de modo a que possa ser exercido o respectivo direito de preferência.
Mas a locação do estabelecimento não está dependente de autorização do senhorio, nem se vê que exista qualquer obrigatoriedade de comunicação, pois o cedente, conforme já se viu, continua a ser o arrendatário, tendo apenas transferido para outrem, por tempo limitado, a exploração do estabelecimento.
Na verdade, considerando-se o estabelecimento como uma unidade jurídica (para além de unidade económica) e a locação do estabelecimento como uma transmissão pro tempore da empresa, não se encontra qualquer fundamento para interpretar extensivamente a norma da al. g) do art. 1038° do Código Civil, de modo a impor ao arrendatário o dever de comunicar ao senhorio a locação do estabelecimento.
Pelo exposto, julgando procedente a apelação, acorda-se em revogar a sentença recorrida, na parte impugnada, absolvendo-se as rés do pedido de resolução do contrato de arrendamento.
Custas a cargo do apelado.
Évora, 24.02.2010