INTERESSE EM AGIR
RECURSO
CO-ARGUIDO
Sumário


1. Carece de interesse em agir, para efeitos de recurso, o arguido, pronunciado, que pretende impugnar a decisão de não pronúncia de co-arguido, já que esta decisão não tem qualquer repercussão na respectiva esfera de interesses.
2. O princípio da cindibilidade do recurso, previsto, designadamente, no artigo 403.º n.º 2 alínea d), do Código de Processo Penal, nada tem a ver com as regras da recorribilidade das decisões, definidas no artigo 399.º, do mesmo Código.

Texto Integral


I. Encerrado o debate instrutório, realizado no âmbito do Proc. n.º 679/08.5TALGS, a correr termos no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão –JIC – foi proferida decisão instrutória que:
a) Não pronunciou a arguida A pela prática, em co-autoria, de um crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.os 180.º e 183.º, ambos do Cód. Penal;
b) Pronunciou o arguido B “nos precisos termos de facto e de direito que constam da acusação particular”, que o MP acompanhou – na qual se imputa ao Arguido a prática de dois crimes de difamação agravados, p. e p. pelos art.os 180.º e 183.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal – “eivada das referências aí realizadas quanto à intervenção da co-arguida A, face ao terminado de decidir quanto a esta, artigos 307.º-1 e 308.º-2, do Código de Processo Penal.”
Inconformado, interpôs recurso o arguido B, recurso esse que não foi admitido.
De novo inconformado, reclamou o Arguido, nos termos do art. 405º do CPP, pugnando pela admissão do recurso.
Cumpre decidir.

II. Para não admitir o recurso louvou-se o M.mo Juiz na seguinte fundamentação:
“Não admito o recurso na justa e precisa medida em que a decisão instrutória pronunciou o arguido nos precisos termos de facto e de direito constantes da acusação particular que, por sua vez, mereceu inteira adesão por parte do Ministério Público.
Entendo, de facto, que nas situações em que o Ministério Público acusa pelos mesmos factos constantes na acusação particular e a decisão instrutória, por sua vez, é de pronúncia nos mesmos termos, ex vi artigos 307. °, n.º 1 e 308.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, tal decisão é irrecorrível ao abrigo do disposto no artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, com efeito, se refere também à acusação do Ministério Público proferida ao abrigo do disposto no artigo 285.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, como aqui sucedeu.”

Contra este entendimento insurge-se, porém, o Recorrente, repousando o seu inconformismo na seguinte síntese conclusiva:
“I- O Arguido recorreu de uma decisão recorrível, na medida em que apresentou recurso da decisão de não pronúncia da Arguida, pelo que não se trata de uma decisão instrutória que confirma os factos constantes da acusação ou seja, não está abrangida pela irrecorribilidade, prevista no artigo 310.º n.º 1 do CPP.
II- O artigo 310.º do Código de Processo Penal, refere que é irrecorrível o despacho de pronúncia que pronunciar o arguido ou arguidos, assim como também é irrecorrível o despacho de pronúncia que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
III- Mas assim já não é quando o despacho de pronuncia, não pronuncia o arguido ou algum dos arguidos quando se verifique a comparticipação, como alias é o caso,
IV- Esta é a disciplina imposta desde sempre pela doutrina e jurisprudência já desde a lei 43/86 de 26 de Setembro, lei de autorização legislativa na sequência da orientação da Comissão encarregada de elaborar o projecto do Código de Processo Penal, bem como na presente revisão feita pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, que veio introduzir a irrecorribilidade do despacho quando este aprecia as nulidades ou questões incidentais.
Sendo ainda de referir a disciplina imposta pelo Ac. RC de 9 de Maio de 1990; CJ, XV, tomo 3, 67. Que dispõe exactamente a mesma orientação que a doutrina sobre esta matéria assim se referiu e consagrou.
V- Concluindo-se assim que quanto ao despacho de pronúncia referente ao arguido ora recorrente o mesmo é irrecorrível mas quanto ao despacho de não pronúncia quanto ao outro arguido o mesmo é recorrível.
VI- Mas esqueceu o douto tribunal da disciplina consagrada nos termos do artigo 403.º do CPP que dispõe sobre a delimitação do objecto do recurso, no caso presente o recurso interposto da decisão de não pronúncia de um dos arguidos, nos termos da alínea d) do n.º 2 deste artigo 403.º do CPP.
VII- Pelo que a decisão que foi objecto de recurso foi a decisão de não pronuncia respeitante à arguida Maria Teresa Costa Alexandra Pais.
VIII- Motivo pelo qual se considera que não deveria ter sido proferido despacho de não admissibilidade do presente recurso”.

II.1. Vejamos qual das posições em conflito deve prevalecer.
Não questiona o Reclamante a irrecorribilidade do “despacho de pronúncia referente ao arguido ora recorrente”.
Na verdade, “a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º [é o caso vertente], é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.” É o que estatui o art.º 310.º, n.º 1 do CPP.
O que o Reclamante sustenta, isso sim, é que “o despacho de não pronúncia quanto ao outro arguido […] é recorrível.”
Antecipando a resposta à questão que reclama solução, dir-se-á que a reclamação está votada ao insucesso, por manifesta falta de legitimidade e de interesse em agir do Arguido/Reclamante para recorrer.
Com efeito, o art. 401º, n.º 1, do CPP confere legitimidade para recorrer:
a) Ao Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;
b) Ao arguido e ao assistente, de decisões contra eles proferidas;
c) Às partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) Àqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão.
O art.º 401.º, n.º 1, al. b) confere, pois, legitimidade ao arguido e ao assistente para recorrer de decisões contra eles proferidas.
Para o efeito que aqui importa considerar, pode definir-se a legitimidade como “uma posição (geralmente, de um sujeito do processo) relativamente a determinada decisão proferida em processo penal, que permite à aludida pessoa ou entidade impugnar tal decisão através de recurso.”
Para além dos recursos para fixação de jurisprudência (art. 437.º, n.º 1 do CPP) e de revisão, relativamente a sentenças condenatórias [art. 450º, n.º 1, al. c), do mesmo Cód], o arguido pode recorrer de decisões contra ele proferidas [art.º 401.º, n.º 1, al. b), cit.]. O direito de recurso das decisões que lhe forem desfavoráveis inscreve-se também no estatuto do arguido [art. 61º, n.º 1, al. h) do CPP].
Como escreve Germano Marques da Silva, “decisões proferidas contra o arguido são aquelas que lhe imponham uma pena e ainda as proferidas contra o que tiver requerido.”
Ora, como resulta do supra-exposto, a decisão recorrida, ou seja, a decisão de não pronúncia da arguida Maria Teresa Pais, não foi proferida contra o Arguido/Recorrente.
Na verdade, para ele, é absolutamente irrelevante que arguida Maria Teresa Pais não tenha sido pronunciada. Do facto de a decisão instrutória, na parte em que não pronunciou a arguida Maria Teresa Pais, ter sido favorável a esta Arguida, não resulta que tenha sido proferida contra o arguido Hernâni Carvalho. O ora reclamante responde pelos factos que lhe são imputados no despacho de pronúncia e não pelos factos pelos quais a arguida Maria Teresa Pais não foi pronunciada.
Conclui-se, pois, que não lhe sendo desfavorável a decisão recorrida, o Arguido/Reclamante carece de legitimidade para dela recorrer.

II.2. Para se poder recorrer não basta ter legitimidade: além deste requisito, exige-se ainda que o recorrente tenha interesse em agir, como resulta do n.º 2 do cit. art. 401º.
Ora, além de não ter legitimidade, o Arguido carece também de interesse em agir.
O interesse em agir ou interesse processual pode definir-se genericamente como o interesse em recorrer à arma judiciária – o processo – para realizar um direito carecido de tutela judicial. Este requisito consiste, pois, no interesse, já não no objecto do processo (legitimidade), mas no próprio processo em si.
Enquanto a legitimidade é subjectiva e, por razões dialécticas, valorada a priori, o interesse em agir é objectivo e terá de verificar-se em concreto.
O interesse em agir ou, para usar a sugestiva terminologia mais corrente na Alemanha, necessidade de tutela jurídica, postula um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante ou, tratando-se de recurso, para o recorrente.
Relativamente ao arguido, sublinha Germano Marques da Silva que “o seu interesse no recurso se afere apenas por visar uma decisão que lhe seja mais favorável, independentemente das posições que tenha assumido no decurso do processo.
[...] Basta, pois, que através do recurso o arguido vise obter uma decisão concretamente mais vantajosa que aquela de que recorre para que o seu interesse deva ser considerado como subsistente, salvo no que se refere à condenação em indemnização cível.”
Ora, a decisão recorrida (ou seja, repete-se, a decisão instrutória, na parte em não pronuncia a arguida A) não tem qualquer repercussão na esfera de interesses do Reclamante. Seria absolutamente indiferente para o Arguido/Recorrente que aquela Arguida viesse ou não a ser pronunciada, na sequência do recurso interposto. Daí que nenhuma utilidade prática tenha para ele o recurso interposto. O mesmo é dizer que não tem interesse em agir uma vez que este se identifica com aquela utilidade prática. Por outras palavras: não tendo o Arguido qualquer direito a realizar carecido de tutela judicial, vedado lhe está lançar mão do recurso.

II.3. Argumenta o Reclamante que “esqueceu o douto tribunal da disciplina consagrada nos termos do artigo 403.º do CPP que dispõe sobre a delimitação do objecto do recurso, no caso presente o recurso interposto da decisão de não pronuncia de um dos arguidos, nos termos da alínea d) do n.º 2 deste artigo 403.º do CPP.”
Salvo o devido respeito, o argumento em nada favorece a sua tese, aliás douta.
Efectivamente, o cit. art.º 403.º, n.º1, acolhe o princípio da cindibilidade do recurso, reafirmado nos art.os 410.º, n.º 1, e 412.º, n.º 2, segundo o qual é admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da não recorrida por forma a tornar possível uma apreciação e decisão autónomas. O n.º 1do art.º 403.º permite, pois, que o recorrente limite o recurso a uma parte da decisão, sempre que seja possível apreciar autonomamente a parte de que recorre. No n.º 2 do mesmo artigo enumeram-se exemplificativamente os casos em que a parte da decisão é autónoma, para efeito de limitação do recurso a uma parte da decisão. Assim, nos termos da al. d) daquele n.º 2, pelo Reclamante invocada, é nomeadamente autónoma, para esse efeito, a parte da decisão que se referir, em caso de comparticipação criminosa, a cada um dos arguidos, sem prejuízo do disposto no art.º 402.º, n.º 2, als. a) e c).
O princípio da cindibilidade do recurso nada, porém, tem a ver com a recorribilidade das decisões. Admissibilidade da limitação do recurso (art.º 403.º) e admissibilidade de recurso (art.º 399.º, que consagra o princípio geral da recorribilidade das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei) são realidades distintas.
Por outro lado, a al. d) do nº 2 do cit. art.º 403.º refere-se ao caso de existência de comparticipação criminosa. Ora, o que o Reclamante pretende com o recurso, é criar um caso de comparticipação criminosa.
Diga-se, por último, que, salvo sempre o devido respeito, não prima pela pertinência a chamada à colação do Ac. RC, de 9 de Maio de 1990, in CJ, ano XV, tomo 3, 67.
Com efeito, a questão que naquele aresto se discute é a de saber se, havendo num processo vários arguidos acusados pelo MP, se apenas alguns deles requereram a abertura da instrução, encerrada esta fase, o juiz de instrução deverá verificar se os autos contêm indícios suficientes, só em relação aos que requereram a instrução ou em relação a todos os arguidos.
Tanto basta para, sem necessidade de mais amplas considerações, se concluir pela improcedência da reclamação.

III. Face ao exposto, indefere-se a reclamação.
Custas pelo Reclamante.
Évora, 2 de Março de 2010.

(Manuel Cipriano Nabais – Presidente do Tribunal da Relação de Évora)