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NULIDADE DA SENTENÇA
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
CADUCIDADE DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Sumário
I - O óbito do arrendatário determina a caducidade do contrato de arrendamento para habitação;
II - Tal caducidade, porém, não se verifica se ao arrendatário sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
III - O que pressupõe que entre o arrendatário e o seu cônjuge exista ou aparente existir a comunhão de vida típica da relação conjugal que se manifesta na comunhão de cama, mesa e habitação e na vontade comum de ambos de a manter;
IV - Inexistindo essa comunhão e independentemente da causa da separação dos cônjuges e da sua imputabilidade a um deles (vg, o arrendatário), o arrendamento não se comunica nem se transmite ao cônjuge sobrevivo deste, caducando com o óbito;
V - A causa da separação de facto do casal e a sua imputabilidade a qualquer dos cônjuges não são oponíveis ao senhorio.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA *
RELATÓRIO
No Tribunal de … foi proposta por “A” e marido, “B” e “C”, acção de reivindicação contra “D”, com vista à condenação desta a reconhecer a propriedade dos AA sobre o imóvel sito na Avª António … com o n° … e que faz parte do prédio urbano sito na Rua António …, n° … composto de várias moradas de casa, e a restituí-lo livre e devoluto aos AA.
Segundo os AA, o arrendamento de tal imóvel teria caducado por óbito do inquilino, “E”, não se tendo transmitido à Ré o direito ao arrendamento por esta e aquele, apesar de casados entre si, se encontrarem separados de facto há alguns anos; não obstante, após o óbito, a Ré teria ocupado o imóvel e recusaria a sua entrega aos AA.
Defendeu-se a Ré, alegando, em resumo, não se verificar a caducidade do arrendamento por ter sido forçada a abandonar o locado em virtude da agressão de que foi vítima por parte do arrendatário, seu marido, facto este pelo qual ele veio a ser condenado, logo, só por razões e motivos alheios à sua vontade é que teve de abandonar a casa de morada de família, à qual sempre tencionou voltar logo que pudesse.
Saneado o processo e discriminados os factos assentes dos ainda controvertidos, prosseguiu a acção, vindo a realizar-se audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo a Ré do pedido de restituição por entender que a sua ausência do locado se teria ficado a dever a força maior, impeditiva da caducidade do arrendamento.
Inconformados, apelaram os AA para esta Relação, pugnando pela revogação da sentença, em alegações que sintetizaram nas seguintes conclusões:
1. Dispõe o artigo 659° do CPC no seu nº 1 que a sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
2. Na douta sentença. A Mma Juiz declarou que os ora recorrentes: “A”, “B” e “C” intentaram acção declarativa com forma de processo ordinário contra “D”, pedindo que se declare resolvido o contrato de arrendamento relativo ao prédio sito na Rua Dr. António … com entrada pelo nº … destinado a habitação em …, pela falta de residência permanente, com o consequente despejo".
Mais diz que:
“Alegam para o efeito que: Há 2 anos (reportados à data da PI) que a R não tem no locado residência permanente"
3. Contudo a verdade é que nem os recorrentes intentaram acção de resolução de contrato de arrendamento, como não alegaram como fundamento do pedido a falta de habitação permanente da Ré no locado.
4. Os recorrentes intentaram acção de reivindicação de um prédio urbano sito na Rua Dr. António … n° …, composto de várias moradas de casa, inscrito na matriz sob os art.s 15886° e art.s 15887 da freguesia da …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 9273/19980312 inscrito a seu favor através da inscrição G AP de 1998/05/14, prédio que adquiriram por partilha da herança de seus pais, e vulgarmente conhecido por …
5. Porquanto o contrato de arrendamento celebrado em 23 de Julho de 1963 entre o cabeça de casal da herança de e “E” de 4 divisões do supra identificado prédio urbano sito na Rua Dr. António … - com entrada pelo n° … destinado a habitação caducara com a morte deste em 22 de Maio de 2006.
Pois,
6. A data do falecimento do “E”, este e a Ré, apesar de casados, já não viviam juntos como marido e mulher, há vários anos (factos provados).
7. Logo, o contrato não se transmitiu à recorrida por força do disposto no artigo (artigo 85° nº 1 alínea a) do RAU).
8. E a permanência, sem título daquela no imóvel propriedade dos Recorrentes constitui violação do direito de propriedade destes e fundamento para reivindicar o bem.
9. Ora, na douta sentença absolveu-se a Ré do pedido porquanto se entendeu que, apesar de haver fundamento para a resolução por falta de habitação permanente da Ré, a verdade é que a mesma ocorrera em virtude de facto de força maior e em consequência operava o impedimento de resolução constante da alínea a) do n° 2 do art. 64° do RAU.
10. Assim, a sentença padece de nulidade por se pronunciar sobre factos que não podia conhecer e que não foram alegados por ninguém - a falta de habitação permanente e o impedimento ao direito à resolução - e por ter decidido em objecto diverso do pedido nos termos do disposto no art. 668º nº 1, alínea d) e e) do CPC (a sentença é sobre um pedido de despejo formulado no âmbito de uma acção para resolução do contrato de arrendamento por falta de habitação permanente - que ninguém fez) quando o pedido formulado nos autos é de reconhecimento do direito de propriedade e de reivindicação de um bem imóvel utilizado sem título por terceiros - sendo que sobre este pedido a sentença é totalmente omissa.
11. No douto despacho saneador já o tribunal havia decidido, sem impugnação, qual o objecto da acção.
12. Decisão esta que, não tendo sido impugnada, faz caso julgado formal.
13. Nestes termos e nos mais de direito deve ser decretada a nulidade da sentença e sem consequência revogar-se a mesma e condenar-se a Recorrida a reconhecer que os recorrentes são donos e legítimos proprietários do imóvel sito na Av. António …- com o nº" de polícia … e que faz parte do prédio urbano sito na Rua Dr. António … nº 30, composto de várias moradias de casa, inscrito na matriz sob os artigos 15886 e 15887 da freguesia da …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 9273/19980312 inscrito a favor dos requerentes através da inscrição G AP 54 de 1998/05/14 e a restituí-lo livre e devoluto aos recorrentes com custas e demais dos autos a seu cargo.
14. Ainda que assim não se entenda o que só por mera hipótese se admite sem conceder, a verdade é que na douta sentença fez-se uma errada apreciação da factualidade provada e aplicação do direito.
15. Está provado que à data do óbito do “E”, em 22 de Maio de 2006, a recorrida estava separada de facto, desde 5 de Outubro de 2003, do marido “E” com quem era casada em regime de separação de bens (vide artigo 3, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 dos factos provados e certidão de casamento junta aos autos).
16. No artigo 83º do RAU dispunha-se que o direito ao arrendamento para habitação no âmbito do casamento era incomunicável e caducava por morte do arrendatário.
17. No caso de morte do arrendatário, o contrato de arrendamento só não caducaria se o cônjuge sobrevivo não estivesse separado de facto ou separado de pessoas e bens do arrendatário (art. 85º nº 1-a).
18. Ao senhorio não são oponíveis os fundamentos da separação de facto ou de direito do arrendatário.
19. Nem o senhorio tem que indagar da vida provada de um inquilino para saber se um contrato de arrendamento se transmite ou não ao cônjuge sobrevivo separado do arrendatário.
20. Acresce que à data do óbito do “E” a recorrida tinha residência na Travessa … (artigo 10 dos factos provados) em …
21. Num prédio que era de sua propriedade e do falecido (conforme certidão de teor da Conservatória de Predial de …, documento junto aos autos a fls 152 pela recorrida).
22. O facto da recorrida residir na Travessa … está quesitado sob o artigo 6 e mereceu uma resposta confusa, conclusiva, obscura e contraditória com a factualidade dada como provada e os documentos dos autos.
23. Na verdade, na primeira parte da resposta ao quesito diz-se "Provado apenas que a Ré sempre teve a chave do locado embora aí não pernoitasse ia quase diariamente ao imóvel em causa, antes de o marido falecer, quando o marido não estava fá em casa, altura em que lhe arrumava a casa e lhe lavava a roupa"
24. E na segunda parte da resposta ao quesito afirma-se que "dormia na Travessa …, em …, onde residia na casa do filho mais velho",
25. Ora, a 1ª e a 2a parte da resposta ao quesito contraditórias entre si e estão em oposição às respostas dadas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 4° e 5º.
26. Mais, pese embora a afirmação inserta na 2ª parte da resposta a este quesito - de que a casa era do filho mais velho do casal - a verdade é que como se pode ver da certidão de teor do Registo Predial junta aos autos a fls 152 pela recorrida, esta casa era pertença da recorrida e do marido “E” e não do filho mais velho do casal o qual é “G” nascido em 24 de Abril de 1965, conforme certidão de fls 84 dos autos (pessoa que nem sequer figura na certidão do Registo predial do referido prédio).
27. Pelo que deve ser anulada a resposta dada a este quesito o qual deve ser dado como provado (art. 712° nº 1-al a) e nº 4 do CPC.
28. Aduz-se ainda do facto de que no quesito se perguntar se a requerente ainda vivia na Travessa … e nesta parte da questão nem sequer foi respondida.
29. Embora também seja certo que no locado, a recorrida, apesar de estar na posse do mesmo, não tem consumos de água e luz que indiciem a sua residência no mesmo (vide doc.s de fls 155 a 158 e 169 dos autos).
30. Assim, e nos termos do disposto no art. 86° do RAU, também o facto de residir à data do óbito em casa própria, na mesma localidade do arrendado obsta à transmissão do arrendamento em causa.
31. Assim, não tem a Ré título que justifique a sua permanência no imóvel propriedade dos recorrentes.
32. Os recorrentes através de cartas (documentos juntos aos autos de providência cautelar de restituição provisória de posse apenso aos presentes autos de fls 155 a fls 162), informaram a recorrida que não tinha direito à transmissão do arrendamento.
33. Nestes teremos, deve ser revogada a douta sentença proferida, julgando-se procedente a acção declarando-se que por morte de do “E” o contrato de arrendamento caducou e, nos termos do art. 85º nº 1. al. a) e artigo 86° do RAU, o mesmo não se transmitiu à recorrida e em consequência condenar-se a Recorrida a reconhecer que os Recorrentes são donos e legítimos proprietários do imóvel sito na Av. António … com o n° de polícia … e que faz parte do prédio urbano sito na Rua Dr. António … n° …, composto de várias moradias de casa, inscrito na matriz sob os artigos 15886° e 15887º da freguesia …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 9273/19980312, inscrito a favor dos requerentes através da inscrição GAP 54 de 1998/05/14 e a restituí-lo livre e devoluto aos recorrentes com custas e demais dos autos a seu cargo.
A Ré contra-alegou em defesa da manutenção da sentença.
Remetidos os autos a esta Relação, após o exame preliminar, foram corridos os vistos legais.
Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.
FUNDAMENTOS DE FACTO
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1) Os AA. são donos e legítimos proprietários de um prédio urbano sito na Rua Dr. António … nº …, composto de várias moradas de casa, inscrito na matriz sob os artigos 15886° e artigos 15887" da .freguesia …, Concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 9273/19980312 inscrito a seu favor através da inscrição G AP 54 de 1998/05/14, prédio que adquiram por partilha da herança de seus pais e vulgarmente conhecido por …
2) Em 23 de Julho de 1963, o cabeça de casal da herança de “F” deu de arrendamento a “E” 4 divisões do supra identificado prédio urbano sito na Rua Dr. António …, em … com entrada pelo n° … destinado a habitação.
3) O então arrendatário do prédio, “E” que não era à data da celebração do contrato de arrendamento casado com a Ré, e veio a falecer em 22 de Maio de 2006 no estado de casado com esta.
4) Por acórdão proferido em 15 de Fevereiro de 2005, no Processo Comum Colectivo, o “E” foi condenado pela prática do crime p. e p. pelos arts. 131º, 22° e 23° do C.P. e de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, p. e p. pelo art.6º nº. 1, da Lei 22/97 de 27 de Junho, na redacção dada pela Lei 98/2001, de 25-8, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por 4 anos, ficando ainda sujeito às injunções de não contactar e manter-se afastado da ora R, vítima das agressões objecto do julgamento.
5) A data do falecimento do “E”, este e a Ré, apesar de casados, já não viviam juntos como marido e mulher há vários anos, com o esclarecimento de que tal ocorreu na sequência do facto referido em 4) e após essa decisão os familiares e amigos sempre aconselharam a Ré a não voltar para casa, devido ao perigo de agressão por parte do marido.
6) Sendo o imóvel em causa apenas habitado pelo “E”.
7) Ali não comia.
8) Não dormia
9) Não recebia correspondência.
10) A Ré sempre teve a chave do locado e embora aí não pernoitasse, quase diariamente ia ao imóvel em causa, antes do marido falecer, quando o marido não estava lá em casa, altura em que lhe arrumava a casa e lhe lavava roupa e dormia na Travessa …, em …, onde residia na casa do filho mais velho.
11) A R trabalhava numa loja de bicicletas pertença do filho “G”, que se situa na R António …, n° …, cuja porta se situa exactamente do lado oposto da rua, e em frente do portão onde se situa o imóvel onde vivia “E”.
12) O “E” trabalhava duas ou três portas abaixo, na mesma rua, com o n° …, numa oficina de bicicletas.
13) Este e a R viam-se todos os dias.
14) Todavia, não trocavam palavras, nem se reconciliaram.
15) A Ré, a partir do início do ano de 1975, passou a residir de forma permanente no locado, o que só interrompeu em 5 de Outubro de 2003, porque no mencionado dia, pouco antes das 21h40m, junto ao locado, o falecido “E” agrediu a R, através de um Pé-de-cabra, com uma pancada na cabeça, altura em que esta saiu de casa, devido ao referido no facto nº 4 e resposta ao quesito 1° e após a morte do marido colocou uma nova fechadura na porta do imóvel, só por questões de segurança, já que não sabia se outras pessoas tinham a chave e fez algumas obras na casa de banho, nas canalizações, pintou as paredes e as portas, fez a limpeza e a Ré e o filho “H” passaram lá a viver, como era e foi sempre o desejo da Ré, por a considerar a sua casa-de-morada de família, bem como os restantes membros da família, o que era do conhecimento cabal de todos os familiares e amigos do casal, embora a Ré por vezes também pernoite na casa do filho mais velho.
16) A R encontrou-se com os AA., no dia 24 de Junho de 2006, em …, junto ao locado.
17) Aí a R comunicou pessoalmente aos AA. o falecimento do seu marido, “E” e a sua intenção em suceder no arrendamento, em causa.
18) Por se ter instalado no locado, logo após o decesso do seu marido.
19) A. R tentou ainda que o procedimento criminal acima aludido, ficasse sem efeito, mediante apresentação de desistência de queixa, o que - naturalmente - não logrou, por impossibilidade legal.
20) A R sempre teve na sua posse a chave do locado.
Modificabilidade da matéria de facto
Na sua alegação sustentam os apelantes a existência de vícios lógicos na decisão proferida sobre a matéria de facto, mais concretamente, sobre o ponto 6° da Base Instrutória, porquanto haveria contradição entre as 1 a e 2a parte da resposta este ponto e entre esta e as respostas aos pontos 1°, 2°, 3°,4° e 5°.
Concluem, pedindo que a decisão do referido ponto 6° seja anulada e substituída por outra que considere tal quesito provado.
Vejamos então:
Os quesitos em causa tinham a seguinte redacção:
1º - À data do falecimento do “E”, este e a Ré, apesar de casados, já não viviam, juntos como marido e mulher há vários anos?
Teve como resposta: Provado com o esclarecimento de que tal ocorreu na sequência do facto referido em D) e após essa decisão os familiares e amigos sempre aconselharam a Ré a não voltar para casa, devido ao perigo de agressão por parte do marido.
2° Sendo o imóvel em causa apenas habitado pelo “E”?
Teve como resposta: Provado
3° Ali não comia?
Teve como resposta: Provado
4°-Não dormia?
Teve como resposta: Provado
5° -Não recebia correspondência?
Teve como resposta: Provado
6° A Ré vivia e vive na Travessa … em …?
Teve como resposta: Provado apenas que a Ré sempre teve a chave do locado e embora aí não pernoitasse, quase diariamente ia ao imóvel em causa, antes do marido falecer, quando o marido não estava lá em casa, altura em que lhe arrumava a casa e lhe lavava a roupa e dormia na Travessa …, em … onde residia na casa do filho mais velho.
Esta resposta excede a matéria da controvérsia levada ao ponto 6° e que apenas pretendia apurar se a Ré vivia e vive na Travessa …, sem curar de saber se a Ré tinha ou não as chaves do locado, se aí ia ou não ao locado, a frequência, momento e objectivo dessas visitas e só se compreende numa perspectiva explicativa da relação da Ré com o locado desde que se separou de facto de seu marido, relação essa que se resumia à prestação a este de serviços domésticos ...
De qualquer modo, a questão colocada no quesito acaba por ser resolvida na 2a parte da resposta, quando aí refere que a Ré dormia na Travessa …, em …, onde residia com o filho mais velho, confirmando, afinal, o teor das decisões proferidas a propósito dos pontos 1ª a 5° da Base Instrutória,
Não se justificando, pois, a alteração da matéria de facto, improcede a impugnação da mesma.
FUNDAMENTOS DE DIREITO
Emergem das alegações dos apelantes as seguintes questões de direito:
- Nulidade da sentença;
- Se a causa da impossibilidade de vida e de economia comum dos cônjuges e a sua consequente separação de facto configura caso de força maior e, no caso afirmativo, se o mesmo é oponível ao senhorio para efeito de lhe impor a transmissão do arrendamento no caso de óbito do inquilino.
Apreciemos de per se cada um das questões. - Quanto à nulidade:
Sustentam os apelantes a nulidade da sentença por se haver pronunciado sobre questões não colocadas ao Tribunal.
A sentença é nula quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (art. 668° nº 1 d) CPC) e quando condene em objecto diverso do pedido (art. 668º nº 1-e) CPC)
No caso em apreço - dizem os apelantes - o juiz pronunciou-se sobre a resolução de um contrato de arrendamento por falta de habitação permanente e proferiu sentença como se lhe tivesse sido formulado um pedido de resolução de contrato de arrendamento, quando o objecto da acção era o reconhecimento do direito de propriedade - e consequente reivindicação - sobre bem imóvel utilizado por terceiros sem qualquer título.
Não têm razão.
Apesar de no relatório da sentença recorrida se referir que a acção visa a resolução do contrato de arrendamento, a acção proposta foi uma típica acção de reivindicação: os AA peticionaram contra a Ré que - segundo eles, sem qualquer título - detinha o imóvel, o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição.
E, segundo eles, sem qualquer título porque o título que existiu - contrato de arrendamento - teria caducado com o óbito do inquilino sem se transmitir para a Ré, seu cônjuge.
Tudo conforme o art. 1311° nº 1 e 2 do CC: o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (nº 1) e, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei (nº 2).
Um desses casos, como é sabido, é a existência de contrato de arrendamento eficaz perante o senhorio e proprietário, legitimador da recusa de restituição a este do imóvel.
A sentença recorrida concluiu pela transmissão a favor da Ré do direito ao arrendamento que fora celebrado pelo seu falecido marido, entendendo que a separação de facto entre eles com a consequente ausência dela do locado, se deveria a caso de força maior impeditiva da caducidade do arrendamento.
A mesma força maior que, afinal, justificaria também a impossibilidade de residência permanente da Ré no locado e a impossibilidade de, com fundamento nela, resolver o contrato de arrendamento, tentando assim por esta via da resolução - sem êxito - satisfazer a pretensão dos autores e recorrentes.
Ou seja, a sentença recorrida respondeu à questão fundamental em que se analisava o pleito, afirmando, contra os interesses do senhorio, que o direito à transmissão do arrendamento a favor do cônjuge do arrendatário operou a favor deste, apesar de ali não residir há vários anos, qualificando como força maior a causa desta ausência de residência permanente, impeditiva da resolução do contrato.
O que tudo redunda num problema de - discutível embora - qualificação jurídica dos factos, sem extravasar o objecto da acção.
Improcede, pois, a arguida nulidade da sentença.
Consideremos agora as demais questões enunciadas, a saber, se a causa da impossibilidade de vida e de economia comum dos cônjuges e a sua consequente separação de facto configura caso de força maior impeditiva da eficácia da caducidade do arrendamento e oponível ao senhorio para efeito de lhe impor a transmissão do direito ao arrendamento em caso de óbito do arrendatário inquilino.
O regime jurídico aplicável à solução do pleito é o que consta do RAU em vigor à data do óbito do inquilino, “E”, em 22-05-2006; com efeito, a Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro (NRAU) só entrou em vigor, no que ao caso interessa, em Junho de 2006, por força do nº 2 do respectivo art. 65°, segundo o qual, as disposições desse diploma, com excepção dos art.s 63° e 64°, entravam em vigor 120 dias após a sua publicação.
Prescrevia o art. 83° do RAU a regra da incomunicabilidade do arrendamento: seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por morte, sem prejuízo do disposto nos dois artigos seguintes.
A aplicabilidade do preceito pressupõe que o contrato de arrendamento haja sido celebrado apenas por um dos cônjuges - como é o caso em apreço - pois se houve intervenção de ambos no contrato, qualquer deles é arrendatário.
A regra geral do art. 83° citado consente duas excepções previstas nos art.s 84° (divórcio) e 85° (morte), interessando ao nosso caso esta última.
Segundo esta no seu nº 1 "o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver: a) cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto"
Ora, os factos mostram-nos que a Ré e seu falecido marido estavam separados de facto desde 05-10-2003, sendo o imóvel locado apenas habitado pelo falecido “E” e nele não comendo, dormindo nem recebendo correspondência a Ré que residia com o filho mais velho na Travessa …, apesar de quase diariamente ela ir ao locado quando o marido lá não estava, pois tinha as respectivas chaves, arrumando aí a casa e lavando as roupas dele.
Inexistia, há mais de um ano, não obstante estas visitas aparentemente destinadas a serviços domésticos, entre a Ré e o seu marido a comunhão de leito, mesa e habitação típica da relação conjugal; a ruptura do casamento era, face ao tempo decorrido, irreversível, pois que se apurou que eles se viam todos os dias - pois trabalhavam em locais próximos um do outro distantes duas ou três portas entre si - mas não trocavam palavras nem nunca se reconciliaram.
"Não havendo entre o locatário e sua esposa, há pelo menos um ano antes da morte daquele, comunhão de leito, mesa e habitação, há separação de facto entre ambos, sendo de presumir, face ao tempo decorrido, a intenção de romper a vida em comum" (Ac. Rel. Lisboa de 12-01-1988, in CJ, Ano XITI, tomo I, p. 111, citado por António Pais de Sousa, Anotações ao RAU, 4a ed, Lisboa: Rei dos Livros; no mesmo sentido, o acórdão da mesma Relação de 07-07- 1993, acedido pela INTERNET através de http://www.dgsi.ptem 22-02-2010, segundo o qual "a transmissão do direito ao arrendamento a favor do cônjuge sobrevivo, nos termos do n. 1 do artigo 1111 do Código Civil, não se verifica se ele não vivia no locado, nem nele tinha a sua residência habitual, não tendo sido também alegado que necessita do locado por carência de habitação").
O arrendamento não caduca por morte do arrendatário se suceder a este cônjuge com quem aquele convivesse em comunhão de cama, mesa e habitação, típicas da relação matrimonial.
Inexistindo esta comunhão e, não obstante a subsistência do estado civil decorrente do casamento, o contrato caduca, independentemente da imputação da causa da inexistência daquela comunhão, ou seja, independentemente da causa da separação ser imputável a ambos ou apenas a um dos cônjuges.
Como anota Aragão Seia, referindo-se à alínea a) do nº 1 do art. 85° do RAU, "nesta alínea a lei não distingue entre separação de facto querida e não querida. Assim, para a caducidade do arrendamento e consequente procedência da acção é irrelevante que a separação de facto não tivesse sido resultante de conduta voluntária do cônjuge sobrevivo e antes da vontade exclusiva (acto de força) do cônjuge arrendatário, entretanto falecido - Ac da Relação de Évora de 29/2/1996, Bol. 454, 817".
Logo, a causa da separação de facto e a sua eventual imputação ao arrendatário mesmo contra a vontade do seu cônjuge, não é oponível ao senhorio, em caso de óbito daquele para efeitos de impedir a eficácia da caducidade extintiva do arrendamento.
No mesmo sentido, aliás, é a solução que ao caso daria o NRAU (Lei n° 6/2006 de 27 de Fevereiro).
Com efeito, segundo o art. 57° nº 1-a) deste diploma, o arrendamento para habitação não caduca por morte do inquilino quando lhe sobreviva cônjuge com residência no locado.
A expressão "não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto" foi, pois, substituída por "com residência no locado".
A propósito desta alteração, escreveram Soares Machado e Regina Santos Pereira: "Embora, aparentemente, uma e outra destas redacções pareçam dizer o mesmo por palavras diferentes, a verdade é que não são realmente inteiramente coincidentes ao contrário do que poderá parecer à primeira vista. Simplisticamente, é evidente que pode dizer-se que quem está separado não reside no locado e quem neste não reside está separado (assumindo que um dos cônjuges permanece no local arrendado) e daí a aparência de coincidência das duas redacções. Porém, não é essa forçosamente a realidade, nem é assim a prática: tal coincidência só existirá sempre no caso de separação de facto e apenas neste" (Cfr. Arrendamento Urbano, NRAU, Comentado e Anotado, Lisboa: Livraria Petrony, p. 245-246).
A 1ª instância entendeu, porém, diversamente.
Depois de asseverar que o legislador quis abranger com a força maior juridicamente relevante, apenas aqueles casos em que a ausência do locado foi determinada por factos exteriores à pessoa do locatário, "normalmente imprevisíveis ou, pelo menos, imprevistos, cuja força é superior à vontade normal", factos que tornam compreensível e aceitável aquela situação de ausência e de afastar essa situação no caso em apreço, a 1ª instância considerou que a "comprovada situação de doença da R é de molde a fazer funcionar o impedimento à resolução", porquanto em causa estaria a salvaguarda da sua segurança física, inequivocamente posta em causa pelo falecido e, para além do mais, avalizada por uma decisão judicial.
Contudo, alguma confusão subjaz a este entendimento.
É certo que a Ré se afastou de seu marido na sequência de agressões de que foi vítima por parte deste e que determinaram a sua posterior condenação em pena de prisão e sujeição à injunção de não contactar e de se manter afastado dela.
Daqui não é lícito inferir que a causa da separação seja esta injunção (acto de autoridade judiciária) imposta em 15-02-2005 por factos ocorridos em 05-10-2003, porquanto, como se apurou, foi nesta data que ela e o seu entretanto falecido marido se separaram de facto; o que a injunção reflecte é a situação do casal na data do acórdão condenatório.
Por outro lado, como decorre do antecedentemente exposto, o que releva é a subsistência da comunidade conjugal na data do óbito; o pressuposto da transmissão do direito ao arrendamento ao cônjuge sobrevivo do arrendatário é a comunhão de vida entre estes necessariamente decorrente da vontade comum de ambos (e não apenas de um só).
E esta comunhão de vida entre a Ré e o seu falecido marido deixou de existir em 05-10- 2003, data em que a Ré, ainda que eventualmente contra a sua vontade e desejo mas para salvaguarda da sua integridade física, se afastou do marido.
Do que decorre que, com o óbito deste, caducou o arrendamento, independentemente da ausência da Ré do locado e da respectiva causa e da eventual qualificação de tal causa como força maior.
Por outras palavras: o arrendamento não caduca por morte do arrendatário e comunica-se (transmite-se) ao respectivo cônjuge sobrevivo na data do óbito se, nesta data, o casal por eles formado não estiver separado de pessoas e bens ou de facto.
O que não se verificou no caso em apreço: a Ré e seu marido estavam separados de facto desde há alguns anos quando se verificou o falecimento deste.
Logo, a Ré carece de título justificativo para a detenção do imóvel e, consequentemente, a acção de reivindicação - na modalidade restitutória - deveria proceder.
Em síntese:
I - O óbito do arrendatário determina a caducidade do contrato de arrendamento para habitação;
II - Tal caducidade, porém, não se verifica se ao arrendatário sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
III - O que pressupõe que entre o arrendatário e o seu cônjuge exista ou aparente existir a comunhão de vida típica da relação conjugal que se manifesta na comunhão de cama, mesa e habitação e na vontade comum de ambos de a manter;
IV - Inexistindo essa comunhão e independentemente da causa da separação dos cônjuges e da sua imputabilidade a um deles (vg, o arrendatário), o arrendamento não se comunica nem se transmite ao cônjuge sobrevivo deste, caducando com o óbito;
V - A causa da separação de facto do casal e a sua imputabilidade a qualquer dos cônjuges não são oponíveis ao senhorio.
ACÓRDÃO
Nesta conformidade, acorda-se nesta Relação em, julgando procedente a apelação, revogar a sentença recorrida e, reconhecendo a propriedade dos AA sobre o imóvel reivindicado - sito na Av. António …- com o nº de polícia … e que faz parte do Prédio urbano sito na Rua Dr. … n° 30, composto de várias moradias de casa, inscrito na matriz sob os artigos 15886° e 15887º da freguesia …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 9273/ 19980312, inscrito a favor dos requerentes através da inscrição G AP 54 de 1998/05/14 - condenar a Ré a restituí-lo livre e devoluto aos recorrentes.
Custas pela Ré.
Évora e Tribunal da Relação, 10.03.2010