INFRACÇÃO
CONSTRUÇÃO DE OBRAS
PERIGO
OBRAS
DIRECTOR
Sumário

I - Com o crime de “infracção de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços”, previsto no artigo 277.º do Código Penal, procura-se garantir a segurança em determinadas áreas de actuação humana, e o regular funcionamento de serviços fundamentais, contra comportamentos susceptíveis de colocar em perigo a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado.

II - O crime p. e p. pelo citado artigo 277.º é um crime de perigo concreto (“criar deste modo perigo”), “um crime em que o perigo faz parte do tipo, isto é o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efectivamente sido posto em causa” (Figueiredo Dias)
Para o preenchimento do tipo em questão o perigo deverá ficar comprovado no caso concreto, seja perigo para a vida ou integridade física de outrem seja para bens patrimoniais de valor elevado.

III - O tipo incriminador positiva três situações distintas:
a) acção dolosa e perigo doloso (n.º1);
b) acção dolosa e perigo negligente (n.º2) e;
c) acção e perigo negligentes (n.º3).

IV - O perigo, enquanto elemento típico, não só terá de existir objectivamente, como tem que ser abrangido pelo dolo do agente, nos casos do n.º1 (dolo de perigo), ou não ter sido tomado em conta pelo agente, nos casos dos n.ºs 2 e 3 (negligência).

V- Para efeitos do preenchimento do requisito subjectivo do tipo do crime do art.º 277.°, n.º1 al. a) do Código Penal, é de primordial importância a distinção entre aquele que realiza a obra por administração directa e aquele que a manda realizar por empreitada, adjudicada mediante um preço.
Sujeito activo do crime previsto na alínea a) do n.º1 do artigo 277º é aquele que planeia, executa ou dirige a obra.

VI - Director da obra é, em princípio, o empreiteiro ou aquele em quem este delega as suas funções, e não o dono da obra.

Texto Integral

Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães:

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I- Relatório
No 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, no âmbito do Processo Comum Singular nº 139/00.2TABRG, por sentença de 17 de Julho de 2008, o arguido …, foi condenado pela prática de 1 (um) crime negligente de infracção de regras de construção p. e p. pelo art. 277º, n.º1, alínea a) e n.º3, do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 30 (trinta euros), num total de €4.500 (quatro mil e quinhentos euros).
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Inconformado com tal decisão, o arguido dela interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões:
[…]




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II- Fundamentação.
1. Conforme é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98)
No presente recurso são as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente:
· Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigo 410º, n.º2, alínea a) do CPP], designadamente, por
- não se ter concluído pela prova do requisito do perigo concreto;
- não se ter concluído pela alegação da norma violada constante da acusação;
- falta de preenchimento dos requisitos subjectivos;
- falta da ocorrência da infracção no âmbito de uma construção;
· Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [artigo 410º, n.º2, alínea b) do CPP];
· Nulidade da decisão por condenação por factos diversos dos descritos na acusação [artigo 379º, n.º1, al. b) do CPP];
· Impugnação da matéria de facto constante dos n.ºs 6, 7, 9,11, 12, 13, 14 e 15;
· Falta de verificação da negligência na actuação do arguido
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3. As questões da insuficiência da matéria de facto e da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
§1. Como é sabido os conceitos de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e de “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão” constantes da alínea a) do n.º 2 do citado artigo 410º, foram já suficientemente trabalhados pela doutrina e pela jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal.
À luz de tais ensinamentos é hoje pacífico que:
a) só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando se faz a formulação incorrecta de um juízo em que a conclusão extravasa as premissas ou quando há omissão de pronúncia pelo tribunal, sobre os factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
Como se observou no Ac. do S.T.J. de 20-4-2006 (proc.º n.º 363/03, rel. Cons.º R. Costa):
“A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.”(cfr. no mesmo sentido o Ac. do STJ de 23-10-1997, proc.º 97P318, rel. Dias Girão, também reproduzido no Ac. do STJ de 18-3-2004, proc.º n.º 03P3566, Rel. Simas Santos).
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão [artigo 410º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal] traduz-se numa “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão ”(Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 63), podendo configurar-se de três modos distintos:
· “(…) contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrá­ria àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclare­cedora, face à colisão entre os fundamentos invocados;
· “(…) contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja opo­sição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada;
· “(…) contradição entre os fac­tos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluirem-se mutuamente” (Recursos, op. cit., pág. 64).
"Por contradição, entende-se o facto de se afirmar ou negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se por proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na qualidade ou na quantidade.
Para os fins do preceito (…) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com o recurso à decisão recorrida no seu todos por si ou com o auxílio das regras da experiência.
Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados" - Leal Henriques e Simas Santos, CPP Anotado, Vol.2º, 2ª ed., 2000., p. 739;
c) Por outro lado, conforme resulta do n.º2 daquele artigo 410º, os vícios da matéria de facto enumerados no artigo 410º do Código de Processo Penal têm, de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, por conseguinte, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, nem podem basear-se em documentos juntos ao processo (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 71 os quais salientam “que não se pode ir fora da decisão buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento”; no mesmo sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 324 e a jurisprudência do STJ citada naquela primeira obra).
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§2. À luz dos ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais que acima deixámos mencionados, é forçoso reconhecer que não só o acórdão recorrido padece de duas contradições insanáveis, como existem, também, diversas lacunas ao nível da matéria de facto provada para fundamentar a decisão de direito a que o tribunal a quo chegou.
Vejamos, em pormenor.
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§3. O arguido, que fora acusado pelo artigo 277º, n.º1, alínea a), foi condenado pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 277º, n.º1, alínea a) e n.º3 do Código Penal.
É o seguinte o teor do artigo 277º do Código Penal
277.º
(infracção de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços)
1. Quem:
a) No âmbito da sua actividade profissional infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação;
b) Destruir, danificar ou tornar não utilizável, total ou parcialmente, aparelhagem ou outros meios existentes em local de trabalho e destinados a prevenir acidentes, ou infringindo regras legais, regulamentares ou técnicas, omitir a instalação de tais meios ou aparelhagem;
c) Destruir, danificar ou tornar não utilizável, total ou parcialmente, instalação para aproveitamento, produção, armazenamento, condução ou distribuição de água, óleo, gasolina, calor, electricidade, gás ou energia nuclear, ou para a protecção contra forças da natureza; ou
d) Impedir ou perturbar a exploração de serviços de comunicações ou de fornecimento ao público de água, luz, energia ou calor, subtraindo ou desviando, destruindo, danificando ou tornando não utilizável, coisas ou energia que serve tais serviços;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”
2- Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.
3- Se a conduta referida no nº 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”

O tipo incriminador positiva três situações distintas:
a) acção dolosa e perigo doloso (n.º1);
b) acção dolosa e perigo negligente (n.º2) e;
c) acção e perigo negligentes (n.º3).
Com tal normativo procura-se garantir a segurança em determinadas áreas de actuação humana, e o regular funcionamento de serviços fundamentais, contra comportamentos susceptíveis de colocar em perigo a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado (cfr. Paulo de Albuquerque, Crimes de perigo comum e contra a segurança das comunicações em face da revisão do Código Penal, in CEJ, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, vol. II, pág. 253 e seguintes, Paula Ribeiro de Faria no Comentário Conimbricense do Código Penal- Parte Especial. Vol. II, pág. 911 e seguintes, Rui Patrício, “Apontamentos sobre um crime de perigo comum e concreto complexo”, in Revista do Ministério público, vol. 81, pág. 91 e seguintes, José P. Ribeiro de Albuquerque, A infracção às regras de segurança no trabalho, in www.pgdlisboa.pt e, na jurisprudência, v.g., os Acs. da Rel. do Porto de 3-7-2002, Col. de Jur. Ano XXVII, tomo 4, págs. 197, da Rel. de Coimbra de 29-1-2003, Col. de Jur. Ano XXVIII, tomo I, pág. 45 e o Ac. do Tribunal Colectivo de Ourém, de 21-3-2001, Col. de Jur. Ano XXVI, tomo V, pág. 281).

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§4. O arguido, repete-se, foi condenado pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 277º, n.º1, alínea a) e n.º3 do Código Penal.
No n.º 15 da matéria de facto provada deu-se, porém, como provado que “Agiu o arguido deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei”
Como bem salienta o Exmo PGA no seu douto parecer, este facto encontra-se “(…) em irrefragável oposição, quer com os factos provados sob os n.ºs 13° e 14° enquadráveis na imputação da conduta típica a título de negligência, quer com o que se escreveu na motivação de direito (cf. págs. 1087 e segts). Aliás, tendo-se em conta que, e no desenvolvimento do invocado vício, se absolveu o arguido / recorrente da prática do crime p. e p. pelo n.º 1, alínea a) do art. 277° do CP, para o condenar pelo crime p. e p. no n ° 1, alínea a) e n ° 3 do aludido artigo, coexiste contradição entre a fundamentação (parte) e a decisão.”
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§5. Por outro lado, no ponto 7 dos factos provados, a fls. 1080, deu-se por assente que "No dia 15 de Janeiro de 2000, o arguido enquanto proprietário e engenheiro civil, mandou fazer, dirigiu e supervisionou um aterro no seu lote de terreno referido em 1°, com a ajuda de máquinas e veículos, tendo movimentado terras e procedido à colocação das mesmas com o apoio de uma máquina, as quais encostou à parede do pavilhão contíguo referido em 2° e segs, atingindo entre 1 e 2 metros de altura, sem ter construído qualquer parede de suporte";
Contudo, na motivação daquela imputação da actuação ao arguido, no último parágrafo de fls. 1.083, exarou-se: "Resulta ainda do depoimento do Eng. …, subscritor do relatório pericial de fls. 35 a 37 e que aquando do aterro trabalhava na empresa …, contratada pelo arguido para realizar o aterro que (demonstrando conhecimento pessoal e directo dos factos na medida em que afirmou ter-se deslocado ao local antes do aterro para ver as condições de execução, localização e acessos, por tais factores serem ponderados na realização do orçamento)" (itálicos nossos).
Deu-se, pois, por assente que o arguido mandou fazer, dirigiu e supervisionou o aterro com a ajuda de máquinas e veículos, qualificando-se o arguido como construtor (aterrador) por administração directa, com trabalhadores contratados directamente e com equipamentos alugados ou emprestados, enquanto que na motivação da prova desse facto se considera relevante que o arguido tenha contratado com a empresa industrial de terraplanagens e urbanizações … a realização do mesmo aterro, mediante o pagamento de um preço definido por orçamento prévio, o que qualifica o arguido como dono da obra, realizada por empreitada pela empreiteira/industrial do ramo ….
É, pois, patente a contradição, a qual se revela insanável e que atinge matéria de importância essencial para o desfecho da causa.
Na verdade, para efeitos do preenchimento do requisito subjectivo do tipo do crime do art° 277°, n.º1 al. a) do Código Penal, é de primordial importância a distinção entre aquele que realiza a obra por administração directa e aquele que a manda realizar por empreitada, adjudicada mediante um preço.
Sujeito activo do crime previsto na alínea a) do n.º1 do artigo 277º é aquele que planeia, executa ou dirige a obra.
Como refere a Prof. Paula Ribeiro de Faria, “Director da obra é, em princípio, o empreiteiro ou aquele em quem este delega as suas funções, e não o dono da obra. Mesmo que este dê ordens sobre a execução da obra, parte-se da aceitação de que este o faz no pressuposto de que as suas indicações não são contrárias a regras elementares cujo cumprimento cabe ao empreiteiro assegurar. Claramente distinta é a situação em que o dono da obra procede à construção sob a sua própria responsabilidade" (Comentário, cit, pág. 916, §12).
No mesmo sentido se pronunciou o Prof. Pinto de Albuquerque: “A direcção pertence a quem tem a disponibilidade fáctica dos meios de produção para a execução da obra, tenha ou não um contrato válido para o efeito. Em regra, o director da obra é o empreiteiro ou, havendo-o, o sub-empreiteiro no âmbito da sub-empreitada. Não é director o dono da obra, nem o vigilante ou fiscal da obra, nem ainda o fornecedor de materiais” (Comentário do Código Penal, Lisboa, 2008, pág. 715).
Na verdade, no contrato de empreitada não há um vínculo de subordinação do empreiteiro relativamente ao dono da obra, agindo o empreiteiro sob sua própria direcção, autonomamente dirigindo e executando o trabalho para apresentar a obra feita findo o prazo. Não está sujeito às ordens ou instruções do dono da obra embora possa fiscalizar a obra (artigo 1209º do Código Civil). Por isso, o dono da obra não é um comitente do empreiteiro no sentido do artigo 500º do Código Civil pois a relação comitente-comissário supõe estar sujeito às ordens daquele, isto é actuar o comissário na execução de um encargo a ele cometido pelo comitente; o empreiteiro, em consequência da sua autonomia é que tem de empregar e adoptar os cuidados e precauções idóneas a evitar danos a terceiros. Consequentemente, conforme vem sendo de há muito afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, o dono da obra não pode ser responsabilizado objectivamente, nos termos do artigo 500º do Código Civil, por actos lesivos de direitos de terceiro praticados pelo empreiteiro (cfr. Vaz Serra, Rev. de Leg. e Jur. ano 112º, pág. 200 e seguintes, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 508 e vol. II, pág. 864, Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações 6ª ed., Coimbra, 1994, pág. 518, Pedro Romano Martinez, O Subcontrato, Coimbra, 1989, pág. 148, Pedro Romano Martinez, Contrato de Empreitada, Coimbra, 1994, pág. 183, Ac. do S.T.J. de 30-1-1979, B.M.J. n.º 283, pág. 301,Ac. do S.T.J. de 17-5-1983, B.M.J. n.º 327, pág. 646, Ac. do S.T.J. de 26-4-1988, B.M.J. n.º 376, pág. 590 e Tribuna de Justiça, n.º 45, pág. 35; Ac. da Rel. de Lisboa de 25-3-1993, Col. de Jur. ano XVIII, tomo 2, pág. 125; Ac. da Rel. de Évora de 8-11-1990, Col. de Jur. ano XV, tomo 5, pág. 247; Ac. da Rel. do Porto de 21-1-1977, B.M.J. n.º 265 e Col. de Jur. ano II, tomo 2, pág. 73. Como se salientou no citado Ac. do S.T.J. de 30 de Janeiro de 1979, “É, na verdade, ao empreiteiro, enquanto decorrem os trabalhos da empreitada, que competem todas as precauções necessárias a evitar danos de terceiro. Para o dono da obra passarão os riscos, mas só depois do acto jurídico da respectiva recepção; até lá, ou seja durante todo o período da execução da empreitada, é o empreiteiro quem, no exercício de uma actividade própria e autónoma os sofre”). Estas soluções só não serão aplicáveis se, entre o dono da obra e o empreiteiro, se houver constituído uma relação de comissão no sentido do artigo 500º do Código Civil ou se, apesar da empreitada, o dono da obra tiver culpa nos danos causados [cfr. Vaz Serra, Rev. de Leg. e Jur., ano 112º, pág. 204 e Ac. do S.T.J. de 13-7-1982, (Proc.º n.º 069291)].

Conforme justamente salienta o recorrente, “Cada empreiteiro, é sempre um especialista dentro das categorias para as quais está habilitado com alvará, pois que este pressupõe que esteja equipado com técnicos especialistas em cada uma dessa áreas, que como ocorreu no caso dos autos, verificam e superintendem às condições de execução das obras, devendo, em defesa do seu alvará, recusar-se a executar obras que não garantam as necessárias condições de segurança, apresentado soluções alternativas, e estando obrigados a desenvolver os planos de segurança (art. 11º do DL 273/2003, de 29/10).”

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§6. Para além das contradições apontadas a sentença recorrida padece, igualmente, do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão.
Na verdade, conforme foi de resto assinalado na sentença recorrida, o crime p. e p. pelo citado artigo 277º é um crime de perigo concreto (“criar deste modo perigo”), “um crime em que o perigo faz parte do tipo, isto é o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efectivamente sido posto em causa” (Figueiredo Dias, Direito Penal-Parte Geral, tomo I, 2ªed., Coimbra 2007, pág. 309).
Não basta, pois, a mera potencialidade teórica de verificação da lesão para um objecto do crime (a via, a integridade física ou o bem ou bens patrimoniais) “antes se exigindo que o observador no momento do julgamento possa concluir pela existência de um objecto do crime e da efectiva entrada do dito objecto no círculo de perigo em virtude da acção criminosa” (Paulo de Albuquerque, Crimes de perigo comum e contra a segurança das comunicações em face da revisão do Código Penal, cit., pág. 264).
Para o preenchimento do tipo em questão o perigo deverá ficar comprovado no caso concreto, seja perigo para a vida ou integridade física de outrem seja para bens patrimoniais de valor elevado (sobre este conceito cfr. Paulo de Albuquerque, Crimes de perigo comum e contra a segurança das comunicações em face da revisão do Código Penal, in CEJ, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, vol. II, págs.257-260).
Ora, no caso dos autos, este perigo não foi minimamente caracterizado.
Alude-se, nos factos provados que:
«4- No interior do pavilhão construído nessa parcela, em 15.01.2000, a … tinha montada uma estrutura organizativa técnica e humana para o desempenho dessa actividade de serralharia e da perfilagem, estando aí instalada maquinaria e havendo trabalhadores que nela operavam;
10- Sensivelmente na zona central da parede do pavilhão (na parte em que as terras do aterro e ela foram encostadas) ocorreram fissuras, inclinação, fendilhação, abaulamento e risco de ruína;»

Na motivação da decisão de facto refere-se que:
«O facto provado 4° decorreu dos depoimentos do assistente e dos funcionários da … que afirmaram que na sequência dos danos verificados na parede foram afastadas da parede as máquinas que foram provisoriamente colocadas noutro local assim, como os trabalhadores que nelas trabalhavam, atitude esta conforme às regras da experiência e normalidade do acontecer.»

Ignora-se, em absoluto, qual o valor do pavilhão em causa e da maquinaria que lá estava instalada, qual a área do dito pavilhão, bem como se o risco de ruína da parede era total ou parcial, e neste último caso, qual o valor da parede em causa, quais as consequências da eventual ruína dessa parede para o pavilhão em geral e para laboração da unidade fabril ali instalada, qual o valor das máquinas que foram afastadas dessa parede e se essas máquinas bem como as pessoas que com elas operavam correram efectivo risco.
Desconhecendo-se estes dados, não pode concluir-se se ocorreu ou não perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
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§7. Por outro lado, o perigo enquanto elemento típico não só terá de existir objectivamente, como tem que ser abrangido pelo dolo do agente, nos casos do n.º1 (dolo de perigo), ou não ter sido tomado em conta pelo agente (negligência), nos casos do n.º3 (cfr. neste sentido cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense …cit, Vol. II, pág. 928, §43).
A este respeito, revela-se valiosa a seguinte lição de Paulo Albuquerque:
“A negligência consciente de perigo, ao invés [do dolo de perigo] implica necessariamente um juízo conclusivo negativo sobre o perigo, que emparelha com uma negligência inconsciente do dano, em virtude de os deveres de cuidado exigirem então ao agente que ao menos previsse a possibilidade da realização de dano”
Por fim, a negligência inconsciente de perigo só se distinguirá da negligência inconsciente de dano em virtude da diferente natureza e intensidade dos deveres de cuidado violados pelo agente, sendo obviamente os deveres violados aquando da negligência inconsciente de perigo mais exigentes” (Crimes de perigo comum e contra a segurança das comunicações em face da revisão do Código Penal, cit., págs.271-272).
Ora, conjugando os factos provados sob os n.ºs 3°, 4°, 5° 8°, 12°da matéria de facto provada, constata-se que na decisão recorrida nada se diz, em sede de factualidade apurada, quanto à inconsideração com que o arguido actuou no que se refere à criação do perigo (e não só quanto à conduta).
Conclui-se, deste modo, pela existência de lacunas de indagação de factos resultantes da discussão da causa relevantes para a decisão as quais, resultando do texto da decisão recorrida, configuram insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
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§8. A falta de elementos de facto relacionados com as questões acima indicadas bem como as contradições apontadas integram, respectivamente os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável da fundamentação, das alíneas a) e b) do n.º2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Impõe-se, por conseguinte, o reenvio do processo para novo julgamento relativo às questões supra mencionadas, nos termos dos artigos 426º, n.º1, e 426º-A, ambos do Código de Processo Penal.
Fica, naturalmente, prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas no presente recurso.

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III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso e, por julgar verificado o vício da alínea a) n.º2 do artigo 410.º do CPP, ordenar o reenvio o processo para novo julgamento restrito às questões supra mencionadas, nos termos dos artigos 426º e 426º-A, ambos do Código de Processo Penal.
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Sem tributação.
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Guimarães, 16 de Fevereiro de 2009