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MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
CAUSAS DE RECUSA FACULTATIVA
Sumário
1. Os motivos de não execução facultativa não podem transformar-se em motivos obrigatórios, sob pena de se frustrar o espírito da Decisão-Quadro – de reconhecimento mútuo, de confiança, de abolição de exigências próprias do processo de extradição (a dupla incriminação), de liberdade, de segurança, de justiça, de celeridade e de simplicidade no espaço da União.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
1. RELATÓRIO
Em cumprimento de pedido de detenção emitido por autoridade judicial da Roménia, procedeu-se à detenção, em 08.07.2010, ao abrigo do disposto no art.4º, nºs.4 e 5, da Lei nº.65/2003, de 23.08 (que aprova o regime jurídico do mandado de detenção europeu em cumprimento da Decisão-Quadro nº.2002/584/JAI, do Conselho da União Europeia, de 13.06), do cidadão M., de nacionalidade romena, aí devidamente identificado.
Tal pedido, conforme do mesmo se alcançava, reportava-se a mandado emitido pelo Tribunal de Primeira Instância de Satu Mare, na Roménia, tendo por finalidade o cumprimento, por aquele cidadão, da pena de 3 (três) anos de prisão, em que havia sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts.208º e 209º do Código Penal Romeno, pelos factos aí descritos:
1. NA NOITE DE 13 PARA 14/5/2004, O INDIVÍDUO SUPRACITADO, COM UMA OUTRA PESSOA, ENTROU POR ARROMBAMENTO NO BAR “PICCOLO” DE SATU MARE, DE ONDE FURTARAM CIGARROS, COM QUE ABANDONARAM O LOCAL. O PREJUÍZO FOI DE 25 RON (CERCA DE 8 EUROS).
2. NO MÊS DE JUNHO DE 2004, O INDIVÍDUO SUPRACITADO ENTROU POR ARROMBAMENTO NA LOJA PERTENCENTE À EMPRESA “SINTIA COM SRL” DE SATU MARE, DE ONDE FURTOU CIGARROS. BEBIDAS ALCOÓLICAS E CAFÉ, COM QUE ABANDONOU O LOCAL. O PREJUÍZO FOI DE 1500 RON (CERCA DE 415 EUROS);
3. NA NOITE DE 5 PARA 6/9/2004, NA LOCALIDADE DE SATU MARE, O SUPRACITADO ENTROU POR ARROMBAMENTO NO VEÍCULO DA MARCA VW GOLF, MATRÍCULA XKL---, DE ONDE FURTOU UM LEITOR DE CD DA MARCA PIONEER. O PREJUÍZO FOI DE 800 RON (CERCA DE 220 EUROS);
4. NO MÊS DE DEZEMBRO DE 2004, o INDIVÍDUO SUPRACITADO ENTROU POR ARROMBAMENTO NA PASTELARIA “TEI”, PERTENCENTE À EMPRESA “DOBRA COM” DE SATU MARE, DE ONDE FURTOU A QUANTIA DE 10 RON (CERCA DE 3 EUROS);
5. NA NOITE DE 11 PARA 12/11/2004, O INDIVÍDUO SUPRACITADO ENTROU POR ARROMBAMENTO NUMA LOJA, PERTENCENTE À EMPRESA “SANTEC”, DE SATU MARE, DE ONDE FURTOU CIGARROS, BEBIDAS ALCOÓLICAS E OUTROS OBJECTOS, COM QUE ABANDONOU O LOCAL. O PREJUÍZO FOI DE 2279 RON (CERCA DE 630 EUROS).
Aí se mencionava, ainda, que é reincidente.
Em 09.07.2007, teve lugar a audição do detido, nos termos do art.18º da Lei nº.65/2003, designadamente, tendo o mesmo sido assistido por defensora e com a presença de intérprete, então nomeados.
O detido declarou, nesse acto, não consentir na sua entrega ao Estado requerente e não renunciar à regra da especialidade.
Pela sua ilustre defensora foi requerido que lhe fosse concedido prazo para deduzir oposição.
Proferiu-se despacho, validando, por legal, a detenção, e concedendo o prazo de dez dias, nos termos e para os efeitos do art.21º, nº.4, da Lei nº.65/2003 e, ainda, determinando que o detido aguardasse nessa situação as ulteriores formalidades.
Veio o detido, em 16.07.2007, através da sua defensora, deduzir oposição à sua entrega ao Estadoemitente do mandado, no essencial,alegando:
(…) o requerido tem nacionalidade Romena mas reside em Portugal há pelo menos dez anos.
Ausentou-se do nosso país apenas pelo período de sete meses, período em que voltou à Roménia.
Desde que chegou a Portugal tem trabalhado sempre na construção civil.
Tem residência actual em Faro,…..
Nos últimos dez anos, foi em Portugal que residiu, trabalhou e constituiu família.
O seu agregado familiar é constituído por si, pela sua esposa C. e o seu filho de dois anos N. que nasceu já em Portugal.
É aqui que o requerido tem a sua vida organizada, estando inserido familiar e socialmente.
Devendo o requerido cumprir a pena em Portugal, de acordo com a lei portuguesa.
Comprometendo-se o Estado Português a executar a pena, sendo que o compromisso deverá ser assumido por este Tribunal.
O disposto no artigo 12º nº 1 alínea g) da Lei 65/2003 de 23 de Agosto configura causa de recusa facultativa da execução do mandado de detenção europeu, ou seja, constitui uma faculdade do Estado de execução do mandado, contudo, não estão estabelecidos os critérios de aplicação da mesma.
Assim sendo, e salvo melhor opinião, tais critérios devem ser encontrados tendo por base os princípios da nossa política criminal e as finalidades da execução da pena.
Ora, uma das finalidades das penas, no nosso ordenamento jurídico é a reintegração do agente na sociedade.
Pelo que, no caso concreto, deverá ser ponderado se haverá maior eficácia das finalidades da pena se esta for cumprida no país de residência do requerido tendo em conta as suas condições de vida.
In casu, parece-nos que afastar o requerido da sua família será “cavar um fosso” entre a sociedade e o requerido e que em nada contribuirá para a sua reintegração na sociedade, pois a sociedade onde este está integrado é na nossa e não na do país da sua nacionalidade.
Se assim não se entender;
Sempre se dirá que, o requerido sabia da existência do Processo na Roménia mas apenas teve conhecimento do mesmo através dos seus pais.
O requerido não foi notificado pessoalmente, nem da data do julgamento, que foi realizado na sua ausência.
E não foi fornecida pelo Estado de emissão garantia de que lhe é assegurado a possibilidade de recurso ou de requerer novo julgamento estando o requerido presente.
Concluiu, por isso, dever:
a) Ser recusada a execução do mandado de detenção europeu, comprometendo-se o Estado Português a executar a pena de prisão, de acordo com a nossa lei, nos termos do disposto no artigo 12º, nº 1 alínea g) da Lei 65/2003 de 23 de Agosto.
Se assim não se entender;
b) Ser recusada a execução do mandado de detenção europeu por não terem sido prestadas garantias suficientes, pelo estado de emissão, de que é assegurado ao requerido a possibilidade de interpor recurso ou requerer novo julgamento em que esteja presente, nos termos do disposto no artigo 13º alínea a) da Lei 65/2003 de 23 de Agosto.
Notificado da oposição, o Digno Procurador Geral-Adjunto suscitou, independentemente da sua posição, a necessidade de que o oponente fosse notificado para, em prazo, apresentar prova do alegado, bem como para que fosse solicitado à autoridade emitente o envio do mandado de detenção europeu, donde constasse, além do mais, a garantia a que se refere o art.13º, nº.1, alínea a), da Lei nº.65/2003.
Deferido o promovido, procedeu-se a tais diligências.
Assim, foi junto o mandado de detenção europeu (MDE), de fls.73/81, emitido, em 08.05.2009, por Juízo Satu Mare, visando a entrega do referido M. para cumprimento de pena privativa da liberdade, aplicada por sentença com força definitiva e executiva em 03.06.2008, fixada em 3 (três) anos de prisão, por furto qualificado, continuado, agravado pela reincidência, a que corresponde o máximo legal abstracto de 12 anos de prisão, respeitando a um número de seis ocorrências, no período entre 13.05.2004 e 28.11.2004, e tendo a decisão sido proferida na ausência do arguido, não obstante notificado pessoalmente da data e do local da audiência.
Fez-se aí constar as disposições legais aplicáveis (afastando-se, no caso, a possibilidade de amnistia, indulto ou prescrição) e as garantias legais de que A parte que esteve ausente de todos os prazos de julgamento e no pronunciamento pode declarar recurso depois deste prazo, mas não mais tarde de 10 dias após a data de início da execução da pena ou do início da execução das disposições relativas à indemnização civil e, no caso de extradição de uma pessoa julgada e condenada à revelia, proceder-se-á a um novo julgamento pelo tribunal que o julgou em primeira instância, a pedido do condenado.
O oponente apresentou os documentos que constam de fls.66/68 e 87/91.
Em resposta à oposição, o Digno Procurador-Geral Adjunto, designadamente, fundamentou:
(…) inexiste o fundamento de recusa do MDE previsto a) do artigo 13º da lei nº 65/2003.
(…) quanto à recusa facultativa de cumprimento previsto na citada alínea g) do artº 12º da mesma Lei (…) o legislador interno não definiu, estabeleceu ou apontou, sequer, os critérios de que o Tribunal se deveria socorrer para fundamentar a aplicação de uma das causas de recusa facultativa taxativamente estabelecidas na Lei.
(…) tal aplicação (ou não aplicação) não pode estar sujeita ao exercício do seu livre arbítrio.
Daí que estando as causas de recusa de execução do MDE taxativamente fixadas na Lei, nada justifica que, por eventualmente preenchidos os requisitos de uma causa de recusa facultativa, esta passe a considerar-se obrigatória, ainda que tal não preenchimento adviesse ou advenha de uma pretensa (ou verídica) falta de regulamentação desse mesmo requisito.
Ou seja: não estando preenchidos todos os requisitos de uma causa de recusa facultativa de execução do MDE esta não se verifica e, consequentemente, o Tribunal não pode denegar o pedido do Estado emitente.
Na verdade, a consideração de que o “compromisso” de Portugal como Estado da execução está contido na própria decisão que recuse a execução do mandado com fundamento na alínea g) do n.º 1 do artº 12º da Lei 65/2003, de 23-08 e que esta deve determinar, como consequência, a “execução” da pena de acordo com a lei portuguesa (citando a posição defendida no acórdão do STJ de 27.04.2006), deveria em coerência conduzir-nos à conclusão lógica de que tal decisão inclui em si mesma uma outra de revisão e confirmação da sentença estrangeira que aplicou a pena a executar. Dito de outra forma, a referida consideração faz pressupor a desnecessidade de rever e confirmar a sentença que a aplicou.
O que levaria a admitir como revogadas as disposições do Código de Processo Penal que regulam as Relações com Autoridades Estrangeiras e Entidades Judiciárias Internacionais.
Solução que, na nossa perspectiva, não só não tem qualquer fundamento legal, como será até uma decisão “contra legem”.
Concluiu:
A) Inexistindo nos Autos qualquer declaração ou indicação de que o Estado Português se compromete a executar a pena, requisito previsto no segmento final da alínea g) do artigo 12° da Lei nº 65/2003, não se verifica a causa de recusa facultativa de execução do MDE aí regulada, pelo que nada haverá a opor à pretensão do Estado demandante.
B) Devendo, por isso, negar-se provimento à pretensão do Oponente.
C) A entender-se, porém, que o compromisso de Portugal como Estado da execução está contido na própria decisão que recuse a execução do mandado com fundamento na alínea g) do n.º 1º do artº 12° da Lei 65/2003, de 23-08 e que esta deve determinar, como consequência, a “execução” da pena de acordo com a lei portuguesa, dever-se-á então:
- Solicitar com urgência à Autoridade Judicial de Emissão certidão da Sentença que justificaria a entrega da pessoa procurada, com data do respectivo trânsito e os elementos necessários à liquidação da pena e, bem assim, que informe se em caso de recusa da entrega pretende que aquela Sentença seja executada em Portugal;
- Solicitar ao IRS que elabore Relatório Social sobre as condições pessoais e familiares da pessoa procurada, incluindo percurso de vida e eventuais estadias ou existência de familiares no estrangeiro, bem como o apuramento de factualidade que permita decidir, face à tipologia e à pena em que foi condenado na Roménia, se a respectiva reinserção social será melhor alcançada em Portugal ou na Roménia.
- Solicitar à pessoa procurada que, em 5 dias, junte aos Autos declaração em que aceite expressamente que pretende cumprir a pena em Portugal.
Afigurando-se outras diligências desnecessárias, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
A referida Decisão-Quadro do Conselho da União Europeia nº.2002/584/JAI, relativa ao MDE e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, foi um dos actos adoptados em aplicação do título VI do Tratado da União, nomeadamente, das alíneas a) e b) do seu art.31º e da alínea b) do nº.2 do seu art.34º.
Considerou então o Conselho, tendo em conta a proposta da Comissão e o parecer do Parlamento Europeu, além do mais que:
- deveria ser abolido o processo formal de extradição no que diz respeito às pessoas julgadas embora ausentes cuja sentença já tenha transitado em julgado, bem como acelerados os processos de extradição relativos às pessoas suspeitas de terem praticado uma infracção;
- o objectivo de dar execução ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais;
- o objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça;
- a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permitindo suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos procedimentos de extradição;
- a substituição das relações de cooperação clássicas que até ao momento haviam prevalecido entre Estados-Membros por um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.
O MDE previsto nessa Decisão-Quadro constituiu, pois, a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária.
Mais se atentou em que o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros.
Foi em cumprimento da mesma Decisão-Quadro que a mencionada Lei nº.65/2003 (publicada no D.R. I Série-A, nº.194, de 23.08), veio aprovar o regime jurídico do MDE, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004, aplicando-se aos pedidos recebidos depois desta data com origem em Estados-membros que tenham optado pela aplicação imediata daquela (seu art.40º).
Na definição legal dada pelo art.1º da Lei nº.65/2003, O mandato de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade», sendo executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na mesma Lei e referida Decisão-Quadro.
Esta última não define o princípio do reconhecimento mútuo, tal como aquela Lei não o faz, mas, em geral, não sofre dúvida que ele assenta na confiança mútua que pressupõe compreensão, impondo às autoridades de um Estado que aceitem reconhecer os mesmos efeitos às decisões estrangeiras que às decisões nacionais, apesar das diferenças que oponham as ordens jurídicas em causa – v. ”Do Mandado de Detenção Europeu”, de Manuel Guedes Valente, Almedina, 2006, a pág.83, citando Inês Fernandes Godinho, em trabalho de mestrado apresentado em 2003/2004, na cadeira de Processo Penal, sob a regência de Anabela Miranda Rodrigues.
Ainda, citando Daniel Flore, Anabela Rodrigues explicitou, em “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 13, nº.1, a pág.33, que desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde ela procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, significando que as autoridades competentes do Estado-membro do território no qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente desse Estado.
Tal princípio de confiança subjacente ao reconhecimento mútuo, ligado ainda a escopos de simplicidade e de celeridade, só através da ausência de exigência absoluta da dupla incriminação (no Estado-membro de emissão e no Estado-membro de execução) poderia ser concretizado, motivo por que se elencou, no art.2º, nº.2, da Lei nº.65/2003, identicamente ao que consta da Decisão-Quadro, um catálogo de infracções relativamente às quais se aboliu o controlo da dupla incriminação desde que puníveis com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos.
No respeitante a infracções aí não previstas, o legislador português parece ter, contudo, optado por sujeitá-las ao princípio da dupla incriminação – v.nº.3 do art.2º da Lei nº.65/2003.
Na esteira da Decisão-Quadro enveredou-se por uma solução de compromisso entre a abolição geral da dupla incriminação e a reserva da soberania dos Estados, mediante a previsão de causas facultativas de recusa de execução do MDE, bem como de determinadas garantias que, em casos especiais, devem ser fornecidas pelo Estado-membro de emissão, como decorre do disposto nos arts.12º e 13º da Lei nº.65/2003.
Optou-se, pois, por uma abolição relativa da dupla incriminação, que não afectasse essa reserva de soberania e que correspondesse aos desideratos de preocupação comum da União.
Por seu lado, a pessoa entregue em cumprimento de um MDE não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu, nos termos do art.7º da Lei nº.65/2003, o que se consubstancia no denominado princípio da especialidade, embora essa pessoa possa renunciar a essa regra e nos moldes que são definidos no nº.3 do mesmo preceito legal.
O MDE do ora detido, M., foi emitido com observância dos legais requisitos do art.3º da Lei nº.65/2003, para efeitos de cumprimento da pena de 3 (três) anos de prisão, por infracção (furto qualificado) que, não constando do catálogo do art.2º, nº.2, da mesma Lei, é claramente também punível pela lei portuguesa.
Manifestada pelo detido, na audição a que foi sujeito, a sua ausência de consentimento na entrega ao Estado requerente e a sua não renúncia à regra da especialidade, no essencial fundamenta a oposição que veio oferecer em dois motivos, um a título principal, o outro, subsidiariamente:
- a existência da causa de recusa facultativa, contemplada na alínea g) do art.12º da Lei nº.65/2003;
- a ausência das garantias impostas pelo art.13º da mesma Lei.
Apreciando, embora por ordem inversa, dada a comodidade de exposição:
A par das causas de recusa obrigatória de execução do MDE, previstas no art.11º da Lei nº.65/2003, as quais, no caso vertente, não se colocam, o legislador (em conformidade também com o que já constava do art.5º daquela Decisão-Quadro), em casos especiais, impôs ao Estado de emissão que prestasse determinadas garantias, sob pena da execução não poder ter lugar.
Entre eles, na alínea a) do preceito, conta-se a situação em que a decisão que fundamenta o pedido tiver sido proferida na ausência do arguido e este não tenha sido pessoalmente ou de outro modo informado da data e do local da audiência, relativamente à qual as garantias de interposição de recurso ou de requerimento de novo julgamento devem ser prestadas.
Ora, não obstante, do pedido de detenção não constar efectivamente qualquer menção a tais garantias, já, do MDE, junto aos autos anteriormente à deduzida oposição, é possível descortinar que o detido foi julgado na sua ausência, sendo que, porém, contrariamente ao alegado nessa oposição, estava devidamente notificado da data e do local da audiência.
Acresce que a possibilidade de recurso da decisão, bem como de requerer novo julgamento, ficou expressamente consignada no mandado, por referência à pertinente disposição legal.
Deste modo e dispensando acrescidas considerações, têm-se por suficientes, à luz do art.13º alínea a), da Lei nº.65/2003, as garantias prestadas, inexistindo, pois, fundamento para, por essa via, obstar ao pretendido deferimento da execução do MDE.
As causas de recusa a que alude o invocado art.12º da Lei nº.65/2003 são motivos que não desencadeiam obrigatoriamente a recusa, mas sim que podem facultativamente implicá-la.
Dependem, como tal, de uma apreciação do Estado de execução, “in casu” deste Tribunal da Relação, competente nos termos do art.15º da Lei nº.65/2003, de modo a perpetrar um juízo de hermenêutica e de ponderação da tutela de interesses juridicamente protegidos em conflito.
Assim, no que agora releva, de acordo com a invocada alínea g) do nº.1 do art.12º da Lei nº.65/2003, a execução do MDE pode ser recusada quando A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.
É à luz da interpretação deste preceito que a oposição deduzida se fundamenta e a que, convocando alguma jurisprudência que tem sido produzida, se reporta a posição defendida pelo Digno Procurador-Geral Adjunto, como expressamente refere, não isenta de dúvidas.
Desde logo, note-se, como assinalou Inês Godinho, trabalho.cit, a pág.43, citada por Manuel Guedes Valente, ob. cit, a pág.241, que os motivos de não execução facultativa não podem transformar-se em motivos obrigatórios, sob pena de se frustrar o espírito da Decisão-Quadro – de reconhecimento mútuo, de confiança, de abolição de exigências próprias do processo de extradição (a dupla incriminação), de liberdade, de segurança, de justiça, de celeridade e de simplicidade no espaço da União.
As dúvidas nesse âmbito têm de ser resolvidas por referência, “prima facie”, à Decisão-Quadro, sem a desvirtuar e sem pôr em crise a recepção das normas de direito emanadas da União Europeia – v.art.8º, nº.4, da Constituição da República Portuguesa -, a que acresce a circunstância, expressa, de que a Lei nº.65/2003 surgiu em cumprimento da Decisão-Quadro.
Assim, qualquer interpretação das normas terá de ser feita de acordo com o “princípio da interpretação conforme” (v. acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 16.06.2005, proferido no proc.nº.C-105/03, acessível em dgsi.pt/portal para o direito da união europeia).
Neste, pode ler-se, O carácter vinculativo das decisões-quadro adoptadas com fundamento no título VI do Tratado da União Europeia, consagrado à cooperação policial e judiciária em matéria penal, está formulado em termos idênticos aos do artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE, no que respeita às directivas. Cria, para as autoridades nacionais, uma obrigação de interpretação conforme do direito nacional. Desta forma, ao aplicar o direito interno, o órgão jurisdicional chamado a proceder à sua interpretação é obrigado a fazê-lo, na medida do possível, à luz do texto e das finalidades da decisão-quadro, a fim de atingir o objectivo visado por esta última e de se conformar, assim, com o artigo 34.°, n.º 2, alínea b), UE».
Ora, aquela causa de recusa facultativa da execução foi transposta do art.5º da Decisão-Quadro, alargando, de algum modo, as garantias que já constavam do art.32º, nº.3, da Lei nº.144/99, de 31.08, aplicável ao anterior regime da extradição, este só visando, para o efeito, cidadãos nacionais e após revisão e confirmação da sentença respectiva nos termos do direito português.
Acompanhando o citado acórdão do STJ de 27.04.2006 (proferido no proc. nº.06P1429, acessível em www.dgsi.pt) - cuja fundamentação é idêntica à sufragada no acórdão do STJ de 10.09.2009, no processo nº.134/09.6YREVR, que correu termos nesta Relação -, realça-se que:
(…) o estabelecimento de causas facultativas de não execução do mandado relevam dos compromissos assumidos no âmbito da União e dos consensos possíveis na conjugação do binómio espaço único e soberania estadual.
As causas de recusa facultativa de execução constantes do artigo 12º, nº 1, da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.
A disposição (alínea g) do art.12º da Lei nº.65/2003) tem de ser interpretada teleologicamente, e específica de um determinado modelo operativo de cooperação, deve ser sistematicamente compreendida nos limites do regime do mandado de detenção europeu.
A reserva de soberania que está implícita na norma e na faculdade compromissória que prevê e que a justifica, apenas se compreende pela ligação subjectiva e relacional entre a pessoa procurada e o Estado da execução.
A questão está, pois, não em qualquer quadro de referências e na natureza pura e simples (e não receptícia) do exercício da faculdade, mas apenas na inexistência, no regime do mandado de detenção europeu, de critérios gerais ou específicos para predeterminar as condições de exercício da faculdade de recusa de execução.
Mas porque a decisão de recusa da execução constitui faculdade do Estado da execução, o estabelecimento de critérios não releva da natureza dos compromissos, mas do espaço de livre decisão interna em função da reserva de soberania implicada na referida causa de recusa facultativa de execução.
Não estando directamente fixados, tais critérios, internos, hão-de ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena.
Admite-se, tal como transparece do assinalado pelo Digno Procurador-Geral Adjunto, que, ao legislar-se por mera transposição da Decisão-Quadro, se criou, ao erigir tal causa de recusa facultativa (em moldes, aliás, diferentes dos que constavam do regime da extradição), a dificuldade de harmonização das disposições processuais penais em matéria de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras com aquela faculdade, pressupondo esta, pelo menos no imediato, a inaplicabilidade dessas disposições.
Não se afigura, contudo, que a conclusão resultante da efectiva dificuldade possa redundar, por isso, em que a causa de recusa não seja, no fim de contas, susceptível de aplicação e se torne inviável sem que as prévias formalidades previstas na lei portuguesa, para que a execução da pena se possa iniciar, sejam realizadas, além do mais, tendo em conta os desideratos de reconhecimento e colaboração mútuos, de celeridade e de simplicidade que emergem do regime do MDE instituído.
Deste modo e sem que a tramitação do MDE se compadeça com delongas, contrárias aos mesmos desideratos, afigura-se que o previsto “compromisso” de que o Estado Português execute a pena, ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa, não visa a prévia formalização de outros procedimentos legais para além do que, na apreciação dessa causa de recusa facultativa, seja exigível, só assim se entendendo compreensível proceder, sem embargo de que, tendo-a por subsistente, venham a ser accionados posteriormente os meios próprios para tornar possível a execução da sanção.
Concorda-se, pois, à luz da necessária harmonização e das reservas de soberania que sempre subsistirão, que, na esteira do fundamentado naqueles acórdãos, O “compromisso” de Portugal como Estado da execução está, assim, contido na própria decisão que recusar a execução do mandado com fundamento na alínea g) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, e que, por ter recusado a execução, determine, como deve determinar, o cumprimento (a “execução”) da pena de acordo com a lei portuguesa.
De modo diverso, não se vê como interpretar essa causa facultativa, sendo certo que é indubitável que os motivos que à mesma presidem são ponderosos e não podem deixar de relevar - a nacionalidade portuguesa e/ou a residência em Portugal da pessoa procurada -, atentas as suas inevitáveis implicações em sede de cumprimento de pena ou de medida de segurança, cujas finalidades se prendem, além do mais, com a reintegração do agente na sociedade (art.40º, nº.1, do Código Penal).
Não obstante tal perspectiva, entende-se que, na adequada ponderação dos interesses relevantes, não deve ser esquecida a tendencial vertente de não postergar a desejável cooperação internacional e, por isso, cuidado acrescido é exigível na afirmação da existência dessa causa facultativa, tornando premente que algum grau de excepcionalidade lhe seja inerente e que a mera alegação de nacionalidade ou residência não constituam, só por si, motivos atendíveis.
Nestas circunstâncias, tem-se em conta que:
O detido é de nacionalidade estrangeira e reside em Faro, referindo que se encontra no País há cerca de dez anos, com ausência temporária, na Roménia, país de que é originário, durante sete meses.
Comprova-se, pelo documento de fls.91, que tem um filho, nascido em Portugal, em 04.12.2007.
Ainda, possui número de contribuinte, registado pela Direcção-Geral dos Impostos com menção à data de 27.10.2009 (documento de fls.66/67), bem como tem número de identificação da Segurança Social, actualizado nessa mesma data (documento de fls.68).
Embora alegando que sempre tem trabalhado em Portugal, na construção civil, não ofereceu prova para tanto.
Por seu lado, ao nível da sua permanência e da sua situação em Portugal, ainda se pode constatar que, admitindo que há alguns anos aqui esteja, só, porém, em 2009, terá requerido o registo de cidadão da União Europeia, nos termos do art.14º da Lei nº.37/2006, de 09.08, o qual, segundo o respectivo regime legal, se destina a cidadãos da União cuja estada no território português se prolongue por período superior a três meses, cuja validade, em concreto, foi fixada até 27.11.2012, presumindo-se, assim, face ao disposto no nº.4 do mesmo preceito legal, que o seja pelo período que preveja para essa residência no País.
Não obstante a invocada situação familiar do detido, não resulta minimamente que se indicie uma sua especial ligação ao País, no sentido de que aqui pretenda efectivamente ter residência permanente.
Os elementos aduzidos na oposição não são suficientemente fortes para poder concluir-se que a causa de recusa facultativa do art.12º, alínea g), da Lei nº.65/2003, deva, em concreto, operar.
Na verdade, a sua valoração, em sede de fundamentar o mencionado e implícito compromisso do Estado Português, não se basta com as circunstâncias comprovadas pelo detido, não se afigurando que, em concreto, as suas condições pessoais devam prevalecer em detrimento dos motivos que justificaram a emissão do MDE.
Perante a situação, entende-se que, inexistindo causa para recusa da execução do MDE, motivo não há para não deferir esta.
3. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se:
- deferir a execução do mandado de detenção europeu para entrega do cidadão M. às competentes autoridades judiciárias da Roménia, para efeitos de cumprimento da pena fixada, pelos factos e infracção que a motivaram.
Sem custas, por não serem devidas.
Notifique-se em conformidade com o art.28º da Lei nº.65/2003.
Após trânsito, dê-se cumprimento ao art.29º da mesma Lei.
Elaborado informaticamente, em processador de texto, e integralmente revisto pelo Relator.