AMEAÇA GRAVE
NATUREZA DA INFRACÇÃO
Sumário


Têm natureza pública os crimes de ameaça e coacção agravados prevenidos no art. 155.º, n.º1 e 2 do Código Penal.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no 2º juízo do Tribunal Judicial de Beja, o MP deduzira acusação contra AG, imputando-lhe a prática, em concurso efectivo, de três crimes de Ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, n.º 1 e 155, n.º 1, alínea a) do Código Penal e quatro crimes de Resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art.º 347º do Código Penal.

2. Por despacho judicial de 10.02.2010, proferido nos termos do art. 311º do CPP, foi declarado extinto o procedimento criminal no que respeita aos crimes de ameaça por falta de legitimidade do MP para deduzir acusação por esses mesmos crimes, por se considerar que os mesmos têm natureza semi-pública e os ofendidos desistiram da queixa antes apresentada.

3. – Daquele despacho vem recorrer o MP, extraindo da sua Motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« EM CONCLUSÃO

1 º - A Magistrada do Ministério Público nesta comarca não se conformando com o douto despacho proferido nos autos em epígrafe e que ao abrigo do disposto no art.º 311º do Código de Processo Penal não recebeu a acusação relativamente aos crimes de Ameaça agravada por ilegitimidade do Ministério Público, vem dele interpor recurso com fundamento na violação do disposto no art.º 311º do Código de Processo Penal.

2º - No douto despacho ora recorrido e proferido ao abrigo do disposto no art.º 311º do Código de Processo Penal o Mmo. Juiz a quo não recebeu a acusação e declarou extinto o procedimento criminal relativamente aos crimes de Ameaça agravada, por entender que tais crimes têm natureza semi-pública, os ofendidos declararam no inquérito desistir da queixa ou não desejar procedimento criminal, não tendo assim o Ministério Público legitimidade para deduzir acusação; fundamenta a sua decisão no facto de o art.º 155º do Código Penal, ao contrário do disposto no art.º 204º, por exemplo, apenas estabelecer uma agravação da moldura penal e não alterar a natureza do tipo de ilícito, mantendo o tipo de crime, de Ameaça, a sua natureza semi-pública.

3º - Para quem defende que o crime de Ameaça agravado tem natureza pública o principal argumento prende-se com a inserção sistemática do art.º 155º no Código Penal a par da manutenção do n.º 2 do art.º 153º onde se estabelece a natureza semi-pública do crime de Ameaça, defendendo-se que se o legislador tivesse a intenção de manter a natureza semi-pública no tipo de crime agravado ou tinha mantido a versão inicial do art.º 153º, ou tinha inserido o teor do art.º 155º no próprio art.º 153º, ou teria estatuído claramente no art.º 155º que o procedimento criminal dependia de queixa ou, ainda, teria criado uma disposição legal autónoma como fez com os artigos 178º e 188º.

4º - A favor da tese que defende que o crime de Ameaça, embora agravado na sua moldura penal, mantém a natureza semi-pública, tal como o Mmo. Juiz a quo, alega-se que o art.º 155º do Código Penal apenas estatui uma agravação da moldura penal prevista para o crime de Ameaça, uma vez que relativamente a outros crimes previstos no Código Penal o legislador criou expressamente em artigos autónomos crimes qualificados relativamente ao tipo-base de crime e atribuiu-lhes desse modo natureza pública, tal como fez, por exemplo, relativamente aos crimes de furto, burla e dano.

5º - Alegam ainda os defensores desta tese que relativamente a outros tipos de crime, o legislador não criou tipos qualificados mas estabeleceu em artigos autónomos a diversa natureza do tipo de crime relativamente ao tipo-base, como fez, por exemplo, no art.º 178º que estabelece a natureza semi-pública relativamente a crimes de natureza pública sempre que forem praticados contra menor ou deles resulte suicídio ou morte da vítima e no art.º 188º, n.º 1 que estabelece a natureza semi-pública relativamente a crimes de natureza particular.

6º - Contudo, tal técnica legislativa usada pelo legislador não é válida para todos os tipos legais de crime previstos no Código Penal como se verifica, por exemplo, relativamente ao tipo de crime de Abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205º do Código Penal, cuja natureza semi-pública do tipo de crime previsto no seu n.º 1 por força do seu n.º 3 é alterada no n.º 4 do mesmo artigo.

7º - Aqui, o legislador não criou em artigo autónomo um tipo de crime qualificado nem alterou expressamente a natureza do tipo de crime num outro artigo, como o fez relativamente ao furto e, no entanto, a jurisprudência a doutrina maioritárias têm considerado que o crime de Abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205º, n.º 4 tem natureza pública, pelo que, no nosso entender, o crime de Ameaça agravada tem natureza pública.

8º - Tendo o crime de Ameaça agravada natureza pública, no caso concreto dos presentes autos não era necessária a apresentação de queixa por parte dos ofendidos nem produziram qualquer efeito as desistências de queixa posteriormente apresentadas pelos ofendidos.

9º - O Ministério Público tem legitimidade para deduzir acusação pela indiciada prática pelo arguido, em concurso efectivo, de três crimes de Ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, n.º 1 e 155, n.º 1, alínea a) do Código Penal pelo que ao rejeitar tal acusação o douto despacho recorrido violou o disposto no art.º 311º do Código de Processo Penal.

Por tudo o exposto, deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que ao abrigo do disposto no art.º 311º do Código de Processo Penal receba a acusação deduzida pelo Ministério Público »

4. – Notificado, o arguido não respondeu

5. – Nesta Relação, o Senhor Magistrado do MP pronunciou-se pela procedência do recurso.

6. – Cumprido o disposto no art. 417º do CPP nada mais foi acrescentado.

7. – O despacho recorrido é do seguinte teor:

« O tribunal é competente.

Consideramos que o crime de ameaça previsto e punível pelo art. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, a), do CP, é um crime semi-público. Senão vejamos:

É sabido que neste ponto tem existido divergência: com a reforma do CP em Setembro de 2007 há quem entenda que o crime de ameaça agravada se tornou um crime público.

Outros entendem que o crime manteve a mesma natureza semi pública. Consideramos que esta é a posição mais correcta. A moldura penal manteve-se. E manteve-se baixa: pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias. Perante isto perguntamos qual a razão material que leva à alteração da natureza deste ilícito? Repare-se que o art. 155.º estabelece uma agravação do tipo tendo por base agravantes. Ora, o art. 155.º não estabelece nenhum tipo de ilícito tal como, por exemplo, o art. 204.º, do CP, cria. A agravante releva assim no âmbito da moldura penal. Mais a mais, existem lugares paralelos no CP que mostram de forma clara que uma coisa são as agravações, outra a natureza processual penal dos ilícitos – cfr. art. 177.º e 178.º, e art. 184.º e 188.º. Por fim, sempre se diga que o art. 155.º estabelece a agravação de dois tipos sendo que o do art. 153.º é semi público e o do art. 154.º - com excepção do previsto no seu n.º 4 - já é público. Isto é, apenas e tão somente se quis uniformizar as agravações dos dois tipos sem querer alterar a sua natureza.

Assim, uma vez que A, H e J, respectivamente, não deseja procedimento criminal (cfr. f. 79), desiste da queixa (cfr. f. 113) e não deseja procedimento criminal e desiste da queixa apresentada (cfr. f. 76), então considero que nesta parte o Ministério Público não tem legitimidade para deduzir acusação pelos crimes de ameaça supra mencionados.

Pelo exposto, verifica-se a inexistência de uma condição de procedibilidade que permita a dedução de acusação pelo Ministério Público – cfr. art. 49.º, do CPP.

Desta forma, declaro extinto o presente procedimento criminal no que respeita aos crimes de ameaça.
*
A acusação, no que respeita ao crime de resistência e coacção sobre funcionário, foi deduzida por quem tem legitimidade.

Não existem outras nulidades.

Não existem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra apreciar e que obstem à prossecução da lide.

*
Autue como processo comum e com intervenção de tribunal singular.
*
Recebo a acusação deduzida pelo Ministério Público a f. 122-125, no que respeita ao crime de resistência e coacção sobre funcionário, contra o arguido AG pelos factos, qualificação e disposições nela indicados e que se dão aqui por integralmente reproduzidos, nos termos do art. 313.º, n.º 1, a), do CPP.

Para a audiência de julgamento designo o dia 9-4-2010, pelas 9h e 30m, neste tribunal.

Nos termos do art. 312.º, n.º 2, do CPP, designo, desde já, o dia 9-4-2010, pelas 14h, para audiência de julgamento em caso de continuação.
*
Considera-se não resultar dos autos nenhuma das circunstâncias previstas no art. 204.º, do CPP, e susceptível de levar à aplicação de qualquer medida de coacção que não seja a de termo de identidade e residência (art. 196.º, do CPP), já prestado pelo arguido a f. 93, pelo que o mesmo aguardará os ulteriores termos do processo na situação em que se encontra.
*
Notifique-se – art. 313.º, 315.º e 113.º, todos do CPP, sob a cominação do art. 116.º, n.º 1, do CPP. »

Cumpre apreciar e decidir o presente recurso

II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. – Delimitação do objecto do recurso

É pacífica a jurisprudência no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.

No caso presente, a questão a decidir é a de saber se o crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153º e 155º do C. Penal na sua actual versão, tem natureza semi-pública como julgado em 1ª instância ou se deve antes reconhecer-se-lhe natureza pública como pretende o MP recorrente.

2. Decidindo.

A questão é apenas de direito e encontra-se perfeitamente delimitada: com a alteração introduzida nos arts 153º, 154º e 155º, do C. Penal pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro, o crime de ameaça agravada previsto no actual art. 155º al. a) do C. Penal tem natureza pública ou mantém a natureza semi-pública que detinha quando se encontrava previsto na anterior redacção do art. 153º nº2.

O despacho recorrido entende que aquele crime mantém a natureza semi-pública, pelas seguintes razões:

- A moldura penal manteve-se baixa: pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias;

- Não se vislumbra razão material que levasse à alteração da natureza deste ilícito;

- O art. 155.º não estabelece nenhum tipo de ilícito tal como, por exemplo, o art. 204.º, do CP, cria. A agravante releva assim no âmbito da moldura penal.

- Mais a mais, existem lugares paralelos no CP que mostram de forma clara que uma coisa são as agravações, outra a natureza processual penal dos ilícitos – cfr. art. 177.º e 178.º, e art. 184.º e 188.º.

- O art. 155.º estabelece a agravação de dois tipos sendo que o do art. 153.º é semi público e o do art. 154.º - com excepção do previsto no seu n.º 4 - já é público. Isto é, apenas e tão somente se quis uniformizar as agravações dos dois tipos sem querer alterar a sua natureza.

O tribunal a quo apela, pois, a razões históricas e teleológicas, por um lado, e a razões de ordem dogmática, sistemática e de técnica legislativa, por outro, que apreciaremos ao analisar os elementos da interpretação disponíveis com vista à reconstituição do pensamento legislativo (art. 9º do C. Civil), começando por analisar os aspectos de ordem sistemática, dogmática e de técnica legislativa sugeridos pela fundamentação da decisão recorrida.

2.1. - Em sede de teoria do tipo penal, refere-se a propósito da formação de classes ou formas de tipos, as figuras dogmáticas dos crimes fundamentais e crimes modificados (qualificados ou privilegiados), que integram grupos[1] constituídos por disposições penais que têm por objecto a protecção de um bem jurídico determinado. a) Nas palavras de F.Dias[2], «Os crimes fundamentais contêm o tipo objectivo de ilícito na sua forma mais simples, constituem, por assim dizer, o mínimo denominador comum da forma delitiva, conformam o tipo–base cujos elementos vão pressupostos nos tipos qualificados e privilegiados. Frequentemente, na verdade, o legislador, partindo do crime fundamental, acrescenta-lhe elementos, respeitantes à ilicitude ou/e à culpa, que agravam (crimes qualificados) ou atenuam (crimes privilegiados) a pena prevista no crime fundamental.».

Parece ser este pelo menos o núcleo comum ou indiscutível das noções[3] de crime fundamental e crime modificado que se ajusta ao nosso direito penal positivo. Os tipos qualificados e privilegiados resultam de circunstâncias respeitantes ao tipo de ilícito ou tipo de culpa, que alteram para mais ou para menos a moldura penal prevista para o crime fundamental.

Ora, o art. 155º do C. Penal prevê circunstâncias agravantes relativas ao tipo de ilícito, que no n.º1 revelam um maior desvalor da acção e no n.º2 um maior desvalor do resultado, face aos tipos fundamentais previstos nos artigos 153º (ameaça) e 154º nºs 1 a 3 (coacção), cujo efeito é a agravação da moldura penal aplicável, pelo que de acordo com o conceito respectivo, tal como definido pelo Prof. F.Dias (que tanto quanto cremos corresponde ao entendimento da generalidade da doutrina e jurisprudência portuguesas), o art. 155º prevê os crimes de ameaça qualificada e coacção qualificada[4].

Carece, assim, de valor o argumento que parece suposto no despacho recorrido, segundo o qual casos como o do art. 204º do C. Penal (que tem por epígrafe furto qualificado), por um lado, e dos arts. 155º, 184º ou 177º, por outro, constituem figuras dogmaticamente diversas. Estes últimos constituiriam preceitos meramente agravantes, enquanto o art. 204º acolhia um verdadeiro tipo qualificado, sendo que aqueles nunca definiriam a natureza do crime (pública ou particular em sentido amplo), pois esta sempre se encontraria estabelecida nos tipos base.

Uma análise mais pormenorizada das formas que a criação de tipos modificados assume no nosso C. Penal, por um lado, e do modo de expressão ou revelação da natureza dos crimes (pública, semi-pública ou particular em sentido estrito), por outro, permite confirmar a conclusão de que da diversidade de técnica legislativa seguida em casos como o art. 204º e no art. 155º não podem tirar-se ilações sobre a natureza pública ou particular do crime.

2.2. – Na verdade, no que respeita à formação de tipos agravados ou privilegiados são utilizadas técnicas legislativas distintas no Código Penal sem que essa diversidade corresponda a realidades dogmaticamente distintas.

Desde logo, o legislador penal prevê as circunstâncias modificativas no mesmo artigo em que acolhe o tipo base, como sucede, v.g., com os referidos artigos 205º, 219º ou 221º.

Noutros casos cria um artigo próprio no C. Penal, adoptando, no entanto, soluções com algumas diferenças entre si, quer quanto à sua designação (conforme a epígrafe), quer quanto à unidade ou pluralidade de crimes fundamentais a que se reporta, quer ainda quanto ao modo como procede à modificação da moldura legal, pois na maioria das vezes cria nova moldura penal e noutras limita-se a estabelecer a agravação proporcional dos respectivos limites (1/3, 1/2, etc).

A modalidade mais linear é aquela em que o tipo agravado ou atenuado dá origem a um artigo próprio do C. Penal cuja epígrafe é composta pela designação do crime fundamental aditada (no que aos crimes qualificados respeita) das expressões, qualificado (v.g. arts 132º e 204º ou 145º), agravado (v.g. 141º) ou grave (v.g.144º). Já quanto aos crimes privilegiados se verifica uniformidade terminológica pois, salvo erro ou omissão, o C. Penal apenas adita à designação do crime fundamental a expressão privilegiado (v.g. art.133º e 146º).

Noutros casos, o legislador penal limita-se a epigrafar o artigo com as expressões, agravação ou agravação pelo resultado, normalmente quando o artigo se refere a mais que um crime da mesma secção, quer respeite a diferentes crimes fundamentais quer a formas modificadas de um mesmo tipo-base – cfr. arts 177º, 184º, 229-A, 343º ou 361º (para além do art. 155º do C. Penal que nos ocupa) e 147º ou 285º Quanto aos crimes privilegiados o legislador usa por vezes a expressão atenuação especial, como sucede no art. 364º.

Ainda nos casos em que cria um artigo próprio para acolher o crime qualificado, por vezes a epígrafe é constituída pela designação do tipo base (ou parte dela) e por um qualificativo que indica tratar-se de um tipo agravado. É o que sucede com o crime de poluição com perigo comum (art. 280º) ou o crime de participação em motim armado (art. 303º).

Em todas estas situações, como referido, estamos perante crimes modificados (qualificados ou privilegiados) uma vez que os respectivos tipos penais foram formados a partir do acrescento ao tipo fundamental de circunstâncias relativas ao tipo de ilícito ou ao tipo de culpa que modificam, agravando ou atenuando, a moldura penal do tipo-base.

2.3. – No que respeita ao modo como no C. Penal se atribui aos crimes natureza pública, semi-pública ou particular em sentido estrito e às conclusões a retirar daí para a questão de interpretação que nos ocupa, importa considerar com alguma autonomia dois aspectos desta matéria.

a) Em primeiro lugar importa lembrar que, como é por demais sabido, no que concerne à promoção do processo penal prevalece entre nós o princípio da oficialidade, de acordo com o qual o MP, enquanto titular da acção penal, pode e deve dar início ao procedimento criminal sempre que tenha notícia de uma infracção de natureza criminal, independentemente da vontade de qualquer outro sujeito ou entidade.

Não é assim, porém, relativamente a todos os crimes, sendo crescente o número de casos em que o poder/dever de o MP iniciar ou prosseguir com o processo criminal depende de queixa (crimes semi-públicos) ou de acusação particular (crimes particulares) de alguma das pessoas a quem a lei penal atribui o respectivo direito.

b) Por outro lado, sendo regra a promoção oficiosa (cfr art. 48º do CPP), quando se trate de crime público o artigo da lei substantiva que tenha por objecto a formação de um tipo penal[5] nada dispõe e só nos casos em que a legitimidade do MP depende de queixa ou acusação particular a lei penal substantiva estabelece expressamente tal exigência.

A parte geral do C. Penal não estabelece regras sobre a fixação legislativa da natureza dos crimes, mas resulta da análise da parte especial que o carácter semi-público ou particular da infracção pode ser expresso num dos números do artigo que tipifica o crime ou em artigo que, autonomamente, estabelece o regime aplicável a diversos crimes de uma mesma secção, coexistindo ou não, neste último caso, com norma relativa à agravação de mais que um tipo fundamental – v.g. arts 178º (crimes sexuais), 188º (honra) e 207ª (acusação particulares - crimes contra a propriedade). Em todo o caso, não resulta minimamente do C. Penal que os artigos com a epígrafe “Agravação” sempre devam coexistir com preceito específico que defina a natureza dos crimes abrangidos, não podendo dizer-se que quando não exista artigo específico a natureza do crime é determinada pelos correspondentes tipos-base.

Nos casos em que o C. Penal acolhe grupos de crimes constituídos pelo crime base ou fundamental e por formas derivadas - privilegiadas ou agravadas - desse mesmo crime em que não existe artigo específico a regular o procedimento criminal, são duas as soluções seguidas pelo legislador penal:

- O mesmo artigo tipifica o crime base e as suas formas agravadas ou privilegiadas e a exigência de procedimento criminal respeita apenas aos números e/ou alíneas anteriores do mesmo artigo (v.g. arts. 205º-abuso de confiança, 219º-burla relativa a seguros - ou 226º - usura -, do C. Penal);

- O tipo fundamental e as formas derivadas dão origem a diferentes artigos da parte especial e vale para cada um deles a regra não escrita aludida, segundo a qual se o artigo respectivo nada disser sobre a natureza do crime o mesmo tem natureza pública, tendo o crime natureza semi-pública ou particular se o artigo correspondente expressar a exigência de procedimento criminal ou de acusação particular, respectivamente. É assim, paradigmaticamente, o que sucede com o tipo fundamental de furto que é um crime semi-público (203º) e o tipo qualificado previsto no art. 204º, que tem natureza pública, mas também na relação entre aquele tipo fundamental e o crime particular previsto no art. 207º, aplicável ainda ao crime de abuso de confiança, cujo tipo fundamental tem igualmente natureza semi-pública (cfr art. 205º n1 C. Penal).

Em qualquer dos casos, tem natureza pública o tipo de crime (fundamental ou derivado) previsto em artigo do C. Penal que não contenha norma sobre o procedimento criminal, nem se encontre abrangido por norma remissiva ou por artigo que estabeleça o regime aplicável a diversos crimes.

No que respeita às hipóteses em que o C. Penal prevê norma específica sobre a natureza de um conjunto maior ou menor de crimes previstos na mesma secção (vg arts 178º e 188º, do C. Penal) a caracterização dogmática dos tipos agravados relacionados com eles (arts 177º e 184º) não se altera, apesar de a natureza pública ou particular dos crimes fundamentais e dos crimes modificados abrangidos ter que resultar da interpretação dos termos do artigo que regula a natureza dos crimes e das suas relações, quer com os tipos-base, quer com os tipos modificados.

Também nestas hipóteses o legislador não prevê um modelo único. No art. 178º a natureza pública ou semi-pública de cada um dos crimes é expressa sem referência ao artigo que prevê os tipos agravados (177º) - o que bem se compreende dados os diferentes regimes ali previstos - mas no art. 188º a solução é tecnicamente diferente. Pretendendo tratar unitariamente os casos abrangidos pela agravação do art. 184º, o legislador refere-se-lhe expressamente como artigo autónomo ao reger sobre a natureza semi-pública ou particular dos crimes por ele abrangidos.

Na verdade, se dúvidas restassem sobre a caracterização dogmática dos tipos abrangidos por artigos da parte especial como os art.s 184º, 177º …ou 155º, cuja epígrafe comum é ´Agravação`, como tipos agravados, no mesmo plano dos tipos como os previstos no art. 204º, 132º ou 218º, entre outros, em que todas as agravações respeitam ao mesmo tipo base, o art. 188º afastá-las-ia.

Este preceito claramente toma como tipos distintos entre si os tipos – base acolhidos nos arts 180º, 181º e 183º, por um lado, e os respectivos crimes agravados contidos no art. 184º, pois o art, 188º refere-se unitariamente a este mesmo preceito para atribuir natureza semi-pública aos respectivos crimes qualificados, enquanto os tipos-base têm natureza particular em sentido estrito, por mera exclusão de partes.

Também por este motivo concluímos que carece de valor o argumento vertido na decisão recorrida, segundo o qual as agravantes do art. 155º do C. Penal relevariam apenas no âmbito da moldura penal por uma coisa serem as agravações, outra a natureza processual penal dos ilícitos – cfr arts 177º e 178º e art. 184º e 188º”.

2.4. – Refere-se ainda no despacho recorrido que a moldura penal manteve-se e mantém-se baixa, não se vislumbrando razão material que levasse à alteração da natureza deste ilícito, ou seja, da forma agravada antes prevista no nº2 do art. 153º e agora acolhida na al. a) do nº1 do art. 155º (ser a ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos), a que correspondia e corresponde pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.
a) Ora, embora não se tenha verificado qualquer alteração no conteúdo da circunstância e na punição em abstracto do crime de ameaça qualificada pela gravidade do crime ameaçado, antes previsto no nº2 do art. 153º, a que o anterior nº3 atribuía natureza semi-pública, a verdade é que a sua transferência para o art. 155º foi acompanhada de outras alterações neste último artigo.

Com a Lei 59/2007 de 4 de Setembro, o art. 155º viu substituída a anterior epígrafe, ”Coacção grave”, pela expressão “Agravação”, manteve intactas as quatro circunstâncias que antes agravavam o crime de coacção em função do maior desvalor da acção e passou agora a reportá-las também ao crime de ameaça, prevendo molduras distintas para ambos os tipos qualificados: prisão até 2 anos ou multa até 240 dias para o crime de ameaça agravado e prisão de 1 a 5 anos para o crime de coacção. Também a agravação em função do resultado antes prevista para o crime de coacção no anterior nº2 do art. 155º passou agora a abranger o crime de ameaça, mantendo-se as molduras agravadas diferenciadas estabelecidas no nº1 do art. 155º.

A respeito destas alterações pode ler-se na Exposição de motivos da Proposta de lei n.º 98/X:

- « O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo, funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção

Deste trecho, que se inclui no conjunto de trabalhos preparatórios da revisão do C. Penal de 2007, nada resulta, efectivamente, sobre eventual intenção legislativa de alterar a natureza do crime de ameaça agravada já antes previsto no nº2 do art. 153º do C. Penal, mas é claro o propósito de estender ao crime de ameaça todas as circunstâncias que agravavam unicamente o crime de coacção, referindo-se em especial os casos de crime praticado contra agentes dos serviços ou forças de segurança, à semelhança dos crimes de homicídio, ofensa à integridade física e coacção.

O propósito ali expresso tem total correspondência no artigo 155º actual, que, efectivamente, patenteia um alargamento considerável dos casos de crime de ameaça agravada em função de circunstâncias que, relativamente a outros crimes, para além do crime de coacção, interferem expressamente com a definição legal da natureza desses mesmos crimes, independentemente de alterações da moldura legal aplicável.

É o que acontece, sem preocupação de exaustividade, com o crime de ofensa à integridade física simples que assume natureza pública quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa dela, apesar de lhe ser aplicável a moldura penal genericamente prevista (cfr art. 143º nºs 1 e 2, C. Penal) ou com os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual previstos nos artigos 163º a 165º, 167º, 168º, 170º e 173º, que assumem igualmente natureza pública quando deles resultar suicídio, sem alteração da moldura penal (cfr art. 187º nºs 1 e 2), circunstância que igualmente agrava os crimes de ameaça e de coacção (art. 155º nº2).

As alterações verificadas nos arts 153º e 155º inserem-se, pois, na valorização crescente daquelas circunstâncias, quer por via do aumento da moldura legal quer, cumulativamente ou em alternativa, por via da diminuição ou eliminação da relevância da vontade dos particulares no início e prosseguimento do procedimento criminal respectivo.

Quanto à questão que nos ocupa parece-nos, pois, que não pode atribuir-se, isoladamente, relevância à ausência de alteração quanto à punição e conteúdo da agravante agora prevista no art. 155º nº1 a) e já antes acolhida no art. 153º nº2.

O aditamento das novas circunstâncias agravantes do crime de ameaça é suficientemente significativo tanto do ponto de vista da sua extensão como dos seus fundamentos, para justificar a reapreciação das opções[6] do legislador nesta matéria, sendo plausível que o legislador não tenha pretendido fixar regimes diferenciadas entre as diversas circunstâncias, acabando por atribuir natureza pública relativamente a todos os casos de agravação do crime de ameaça e prevendo para todos eles a mesma moldura penal, tal como já sucedia com o crime de coacção.

b) Em todo o caso, não pode atribuir-se importância excessiva ao elemento histórico da interpretação e à mens legislatoris - sobrevalorizando-os face a outros elementos da interpretação como sejam o teleológico e sistemático - designadamente quando se trate de atribuir significado a silêncios e omissões ao longo do processo legislativo. Não só estes são cada vez mais frequentes mesmo quando ocorrem alterações legislativas de maior importância, como as referências encontradas são cada vez mais equívocas ou mesmo enganadoras por não corresponderem à solução adoptada a final ou por ficarem descontextualizadas em virtude de modificações de última hora.

Como diz Roxin, em Direito penal deve considerar-se resolvida a velha polémica entre a teoria subjectiva da interpretação, que atende à vontade do legislador histórico, e a teoria objectiva, que considera decisivo o sentido objectivo da lei, independente daquele que, em todo o caso, pode ir sofrendo modificações. ´A solução correcta está no meio termo: há que dar razão à teoria objectiva na medida em que não são decisivas as efectivas representações (que, para além do mais, frequentemente não podem averiguar-se) das pessoas e agremiações que participaram no processo legislativo; (…) Porém, por outro lado, há que dar razão à teoria subjectiva de que o juiz está vinculado à decisão valorativa político-jurídica do legislador histórico[7].

2.5. - O despacho recorrido refere igualmente ser baixa e ter-se mantido baixa a moldura legal, mas também este aspecto não assume particular valor interpretativo. Não só porque, quanto à sua medida, não é caso único (vd art. 193º do C. Penal), mas essencialmente porque a opção mais ou menos gravosa quanto à natureza do crime surge algumas vezes como alternativa à modificação da moldura penal, como vimos.

2.6. - Podemos, pois, em síntese, assentar nas seguintes conclusões:

- O art. 155º do C. Penal – tal como os artigos 177º e 188º, entre outros – tem carácter típico, na medida em que tem como objecto a formação de tipos penais qualificados, não se distinguindo dogmaticamente de outros casos em que o legislador usa técnica legislativa diferente para o mesmo fim, como sucede com os arts 204º ou 218º, por um lado, e com os arts 205º, 219º e 226º, por outro (vd supra);

- Deste modo, nada dispondo o art. 155º do C. Penal sobre a natureza dos crimes agravados previstos nos seus nºs 1 e 2 e não existindo norma remissiva ou norma específica sobre a natureza pública ou privada dos crimes abrangidos, aqueles mesmos crimes de ameaça e coacção agravados têm natureza pública, de acordo com a regra não escrita resultante da prevalência do princípio da oficialidade estabelecida no art. 48º do CPP.

2.7. - Assim sendo, procede totalmente o presente recurso, impondo-se a revogação do despacho recorrido na parte em julgou carecer legitimidade ao MP para sujeitar o arguido a julgamento pelos crimes de ameaça agravada p. e p. pelo art. 155º nº1 al. a) do C. Penal, devendo aquele ser substituído por outro que designe data para a realização da respectiva audiência de discussão e julgamento, sem prejuízo das regras de conexão e competência aplicáveis.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso interposto pelo MP, revogando o despacho recorrido que declarou extinto o procedimento criminal por falta de legitimidade do MP relativamente aos crimes de ameaça agravada p. e p. pelos arts 153º e 155º nº1 al. a) imputados pelo MP ao arguido A, o qual deve ser substituído por outro que designe data para a realização da respectiva audiência de discussão e julgamento, sem prejuízo das regras de conexão e competência aplicáveis.

Sem custas.

Évora, 16 de Setembro de 2010

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Viana Berguete Coelho)
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[1] Como refere o Prof. F. Dias, «No sentido de corresponder pelo melhor às exigências do princípio da legalidade, nomeadamente de descrever de uma forma o mais precisa e estrita possível de comportamentos típicos e as formas de lesão ou colocação em perigo dos bens jurídicos, o legislador faz uso de técnicas que resultam na criação de grupos de tipos de crime …” – Cfr Direito penal. Parte Geral. Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora 2007 p. 313

[2] Idem.

[3] Para outros desenvolvimentos sobre esta matéria, podem ver-se entre os autores alemãos, Roxin (Derecho Penal. parte General. Tomo I (trad da 2ª ed. alemã), Civitas, Madrid-2003 p. 338 (nº 131).e Jakobs (Derecho Penal. Parte General, 2ªed. corrigida, Marcial Pons, Madrid-1997, p. 216 (nº 96)),

[4] Cfr Pinto de Albuquerque, Comentário do C. Penal, UCE- Lisboa 2008, p. 419.

[5] Como refere Wessels, “ Quase todas as disposições da ´Parte especial do C. Penal] têm como objecto a formação de tipos penais …”. cfr arts 250º nº6, 161º nº3 e 206º, do C.Penal,- cfr Derecho Penal. Parte General.Ediciones Depalma, Buenos Aires-1980, p. 32

Entre nós, serão normas desprovidas dessa característica as que se limitem a definir a natureza pública ou privada do crime como é, precisamente o caso dos artigos 177º ou 188º, ou outras que apenas regulem aspectos determinados da punibilidade ou da medida da punição, sem integrar o tipo – base ou agravado – cfr arts 250º nº6, 161º nº3 e 206º, do C. Penal.

[6] As normas que estabelecem a exigência de queixa ou acusação particular são comummente designadas entre nós, na esteira de Taipa de Carvalho, como normas processuais penais materiais, pois têm natureza mista, processual e substantiva, na medida em que são simultaneamente condições positivas do procedimento criminal (pressupostos processuais) e condicionantes da responsabilidade criminal. Através delas o legislador faz depender a efectivação da responsabilidade criminal da vontade dos particulares, dispensa a respectiva manifestação de vontade ou estabelece-a em graus diferentes (queixa e acusação particular), em atenção a razões que, em cada momento o legislador penal pode actualizar, mercê de mudanças nas suas concepções.

Conforme refere, por todos, o Prof. F. Dias, o legislador faz depender o procedimento criminal de queixa ou acusação particular essencialmente de três razões. Em atenção ao pequeno significado criminal do crime, o que ocorre com as chamadas bagatelas penais e a pequena criminalidade, em que se torna aconselhável de um puro ponto de visto político criminal que o procedimento penal respectivo só tenha lugar se e quando tal corresponder ao interesse e vontade do titular do direito de queixa, nomeadamente a pessoa ofendida Por outro lado, em casos em que o procedimento criminal possa constituir uma intromissão inconveniente ou mesmo inadmissível na esfera das relações do ofendido com outras pessoas, para evitar que o processo possa decorrer contra a vontade do ofendido. Em terceiro lugar, a exigência de queixa (ou acusação particular) pode servir para proteger a esfera de intimidade do ofendido. - cfr Consequências jurídicas do Crime, 1993 p. 666 e sgs.

A opção inversa, i.e. a atribuição de natureza pública a um dado crime que em regra é tratado como crime particular em sentido amplo, obedecerá a razões idênticas operando em sentido contrário, pelo que no que importa ao caso presente o legislador terá considerado que o maior desvalor da acção presente nas agravantes previstas no nº1 do art. 155º e a agravação em função do resultado a que se refere o seu nº2, justificam a sujeição do crime à regra da oficialidade, independentemente da respectiva moldura legal.

[7] Cfr Roxin – Derecho Penal. parte General. Tomo I (trad da 2ª ed. alemã), Civitas, Madrid-2003 p. 150 (nº 32). O autor conclui este trecho, do seguinte modo:

-“ A hipótese de que existe um´sentido objectivo` da lei, independente daquela decisão, não é comprovável do ponto de vista lógico; e a única coisa que faz é mascarar que o dito ´sentido objectivo`, desligado dos objectivos originários da lei, consistem realmente em finalidades subjectivas do juiz que pressupõem a depreciação do princípio da legalidade”.

Bem se vê pois que, como refere o autor, a solução encontrar-se-á no meio termo.