ADAPTAÇÃO À LIBERDADE CONDICIONAL
RECUSA
RECURSO
Sumário


É irrecorrível a decisão do TEP que negue o pedido de colocação do recluso em Regime de permanência na habitação para adaptação à liberdade condicional.

Texto Integral


Acordam os Juízes, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório

1. – Nos autos de processo para adaptação à liberdade condicional que, sob o número em epígrafe, foram instaurados no Tribunal de Execução das Penas (TEP) de Évora, JR (melhor identificado nos autos), atualmente recluso no Estabelecimento Prisional Regional de Faro, veio recorrer da decisão judicial de 31.08.2010 que lhe negou a colocação em Regime de permanência na habitação (RPH) para efeito de adaptação à Liberdade Condicional, antes de atingido 1/2 da pena.

2. Conclui a sua motivação de recurso formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem parcialmente:

«CONCLUSÕES:
(…)

7. O recorrente não tem antecedentes criminais, quer antes ou depois dos factos pelos quais foi condenado.

8. O recorrente é um homem de 55 anos de idade, portador de uma diabete que lhe incomoda muito, sendo também hipertenso com um alto grau de colesterol, necessitando de cuidado médicos e alimentícios especiais.

9. Desde 01/07/2009, o recorrente trabalha na limpeza interna do Estabelecimento Prisional de Faro

10.O recorrente tem um núcleo familiar, constituído pela sua companheira Srª MJ.

11. O recorrente é motorista e mecânico de camião

12. O recorrente tem uma perspetiva concreta de trabalho na OFICINA MECANICA AUTO ....

13. O Recorrente não tem qualquer infração disciplinar no EP de Faro, sendo certo que alguns dos Srs Guardas Prisionais poderão testemunhar a seu favor

14. O Recorrente não é Introvertido como mencionado na respeitável Sentença ele tem um excelente relacionamento com os demais presos e também com a guarda prisional.

15. O Recorrente sente uma intimidação natural e vergonha pelo cometimento do crime

16. O Recorrente sempre foi um homem voltado ao trabalho não lhe conhecendo nada que desabone sua conduta

17. No entender do Recorrente reúne todos os pressupostos formais do artigo 62° do Código Penal para concessão da antecipação da liberdade Condicional

REQUERIMENTO

Termos em que, requer o Sr. JR que seja dado provimento ao presente recurso revogando a respeitável Sentença do TEP de Évora ora atacada, substituindo-a por outra que lhe conceda a antecipação da Liberdade Condicional, por adaptação à mesma, nos termos do artigo 62º do Código Penal»

3. - Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo apresentou a sua resposta em que conclui pela improcedência do recurso.

4. - Nesta Relação, o senhor magistrado do MP apresentou parecer no mesmo sentido.

5. – Notificado daquele parecer, o recluso nada acrescentou.
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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso.

É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

No caso sub judice, a questão objeto do recurso é a de saber se, como pretende o recorrente, estão reunidos os requisitos de ordem formal e material de que os arts 61º e 62º do C.Penal fazem depender a colocação do recluso em RPH para adaptação à liberdade condicional, antes de atingido 1/2 da pena, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo.

Previamente, porém, suscitou-se em conferência a questão da recorribilidade daquela mesma decisão, questão que passamos a decidir de imediato.

2. Decidindo

Questão prévia – da recorribilidade da decisão que negou a colocação do recluso em Regime Permanente na Habitação (abreviadamente RPH) para Adaptação à Liberdade Condicional (abreviadamente ALC), nos termos do art. 62º do C. Penal.

a) O atual art. 62º do C. Penal, introduzido pela Lei 59/2007 de 4 de setembro, veio inovar ao prever um período de Adaptação à Liberdade Condicional em Regime de Permanência na Habitação, obrigatoriamente fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, ou seja, de vigilância eletrónica (VE).

Por sua vez, a Lei 48/2007 de 29 de agosto, que procedeu à revisão do CPP, introduziu diversas alterações aos seus arts 484º e 485º, que passaram a regular os termos da concessão do novo período de ALC juntamente com os termos do processo para concessão da liberdade condicional (abreviadamente LC).

Apesar de o nº6 do art. 485º do CPP apenas prever expressamente a recorribilidade do despacho de negação da liberdade condicional, não fazendo qualquer referência à decisão de indeferimento da colocação do recluso em RPH para adaptação à liberdade condicional, nos termos do art. 62º do C. Penal, entendeu-se que também esta última decisão era recorrível[1] ao abrigo do disposto no citado nº6 do art. 485º do CPP, face ao princípio da recorribilidade das decisões proferidas em 1ª instância consagrado no art. 399º do CPP e demais razões que podem ver-se, por todos, no Despacho do senhor vice-presidente da Relação de Lisboa de 19.04.2010[2], cujo sumário é do seguinte teor :

- « I – Atenta a inserção sistemática das normas, a similitude de objetivos que se pretendem alcançar e os requisitos legais exigíveis, tanto para a atribuição da Adaptação à Liberdade Condicional, como para a Liberdade Condicional propriamente dita, não se veem razões para que não seja admissível o recurso do indeferimento daquela, quando o é quanto a esta.

II – Por outro lado, há também que ter presente que a suscetibilidade de recurso de tais decisões decorre do disposto no art.º 399.º do Código de Processo Penal e da não verificação de nenhuma das situações previstas nas alíneas do n.º 1, do art.º 400.º, desse mesmo diploma legal.


III - Com efeito, nenhuma norma faz referência à irrecorribilidade de tal decisão, sendo certo que o legislador quando entende que uma decisão não é passível de recurso indica-o expressamente.»

b) Afigura-se-nos, porém, que o Código de Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade (abreviadamente CEP) aprovado pela Lei 115/2009 de 12 de outubro, entrado em vigor[3] em 10 de abril de 2010 (180 dias após a publicação da Lei 115/2009 – art- 10º), vem alterar os dados da questão.

Uma vez que a decisão ora recorrida foi proferida em 31.08.2010 e, em todo o caso, sempre o processo para adaptação à liberdade condicional se iniciou depois de 10.04.2010, pois o requerimento do recluso é de 09/06/2010 (cfr fls 75 destes autos), o Livro II do CEP - onde se incluem as normas sobre a LC, a ALC e recursos - (cfr arts 10º e 9º da Lei 115/2009 de 12.10) é aplicável ao presente recurso.

Não se lhe aplica, pois, o disposto nos revogados arts. 484º a 486º do CPP (cfr art. 8º da Lei 115/2009) nem tão pouco o princípio acolhido no art. 399º do CPP, mas antes os artigos 179º, 188º e 235º, do citado CEP, aprovado pela Lei 119/2010 de 3 de outubro.

c) Vejamos então o que dispõe o atual CEP sobre o recurso de decisão que tenha deferido ou indeferido o pedido de colocação do recluso em Regime de permanência na habitação para adaptação à LC.

O CEP pretende regular praticamente toda a matéria substantiva e processual relativa à execução das penas e medidas privativas da liberdade e apesar de deixar no C. Penal precisamente os institutos da liberdade condicional e da adaptação à liberdade condicional[4], contém a totalidade do regime processual especialmente regulador destas figuras, para além de regras próprias em matéria de recursos, incluindo o princípio geral contido no seu art. 235º .

No título IV do Livro II, dedicado ao processo nos TEP, o CEP reservou o capítulo V para o processo de Liberdade condicional, que é uma das formas de processo expressamente previstas no seu art. 155º.

Aquele capítulo V divide-se em três secções, sendo a 1ª dedicada à concessão da liberdade condicional, a 2ª à execução e incumprimento da liberdade condicional e a 3ª ao período de adaptação à liberdade condicional.

Ora, enquanto o artigo 179º do CEP, incluído na 1ª secção, prevê a possibilidade de recurso, embora limitada à questão da concessão ou recusa da liberdade condicional, e o art. 186º (incluído na 2ª secção, dispõe, de forma similar, que o recurso é limitado à questão da revogação ou não revogação da liberdade condicional,) o art. 188º, única disposição que integra a 3ª secção, nada diz sobre eventual recurso de decisão que conheça do pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional, nem remete para qualquer uma das normas do capítulo onde se insere, ora citadas.

A partir destes elementos de ordem literal e sistemática, somos levados a concluir que o CEP não prevê a recorribilidade da decisão que defira ou indefira o pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional, pois parece-nos não poder entender-se que aquela decisão se encontra abrangida pela previsão da norma do art. 179º, dada a autonomia substantiva e processual da adaptação à liberdade condicional.

Do ponto de vista substantivo, a adaptação à liberdade condicional não se reconduz à figura da liberdade condicional, apesar de serem comuns boa parte dos respetivos pressupostos e finalidades[5] e do ponto de vista processual são igualmente reguladas de forma autónoma, como é bem patente nas disposições legais agora citadas, chegando mesmo o CEP a referir-se-lhes no artigo 151º como processo de concessão de adaptação à liberdade condicional e processo de liberdade condicional, para atribuir caráter urgente a ambos.

Por outro lado, ainda do ponto de vista literal e sistemático, parece-nos não fazer sentido que o CEP regulasse especificamente a recorribilidade das decisões do TEP a propósito de duas das três secções dedicadas ao processo de liberdade condicional e deixasse de o fazer para a última delas se fosse essa a sua intenção, quando é certo que o nº6 do art. 188º (sobre ALC) é pormenorizado na remissão que faz para várias disposições da secção relativa à concessão da liberdade condicional, deixando de fora, precisamente, o referido art. 179º.

d) Constatando nós que o CEP não prevê expressamente – de forma direta ou por remissão – a recorribilidade da decisão que conhece do pedido de concessão do período de adaptação à LC, somos, então, levados a concluir que aquela decisão é irrecorrível ainda por força da regra ou princípio geral previsto no CEP em matéria de recursos.

Na verdade, contrariamente ao art. 399º do CPP que estabelece a regra da recorribilidade das decisões judiciais, o art. 235º do CEP consagra o princípio inverso, ao dispor no seu nº1 que, “ Das decisões do tribunal de execução das penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei.” (sublinhado nosso).

Isto é, o legislador faz depender a recorribilidade de decisão do TEP de disposição legal expressa, reservando para si a delimitação do universo das decisões judiciais que em matéria de execução de penas e medidas privativas da liberdade admite recurso, o que se compreende atenta a especificidade desta matéria e das relações humanas e institucionais nela envolvidas.

Ao legislador cabe estar atento e alterar o regime legal na medida do necessário, designadamente no caso de vir a revelar-se praxis judiciária excessivamente restritiva ou permissiva, que contrarie as opções político-criminais que ditaram a aposta legislativa no novo instituto.

e) Por último, afigura-se-nos que a opção legal pela irrecorribilidade da decisão que conheça do pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional, nomeadamente no caso de indeferimento, não viola materialmente a Constituição, por não valerem em sede de adaptação à liberdade condicional as razões que levaram o acórdão do Tribunal Constitucional 638/06 de 21 de novembro a “Julgar inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º, dos artigos 20.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, e do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 127.º do Decreto-Lei n.º 783/76, de 29 de outubro, na parte em que não admite o recurso das decisões que neguem a liberdade condicional”.

Na verdade, independentemente das dúvidas que possam colocar-se sobre a caracterização das normas que regulam o processo para concessão da liberdade condicional como processo penal, para efeitos do art. 32º nº1 da CRP, a irrecorribilidade da decisão que negue o pedido de colocação do recluso em Regime de permanência na habitação para adaptação à liberdade condicional não elimina a possibilidade de o arguido ser colocado em liberdade em consequência da reapreciação daquela decisão, contrariamente ao considerado no Ac TC 638/06 a propósito da liberdade condicional[6], pois o RPH constitui igualmente uma forma de privação da liberdade, embora em meio não prisional.

Ou seja, a decisão negatória não põe em causa o direito fundamental à liberdade, pois a adaptação à liberdade condicional em RPH é ainda uma das formas de cumprir a pena de prisão em privação da liberdade. A sua irrecorribilidade não implica, pois, a violação do direito à liberdade protegido pelo n.º 1 do artigo 27.º da Constituição, da garantia consagrada no art. 32º nº1, nem tão pouco o princípio do Estado de Direito, acolhido no art. 2º, ou o direito de acesso aos tribunais consagrado no art. 20º, todos da CRP.

f) Sendo irrecorrível a decisão recorrida, impõe-se rejeitar o presente recurso, de harmonia com o disposto nos artigos. 414º nº3, 420º nº1 b) e 414º nº2, todos do CPP, ex vi do art. 239º do CEP.

III - Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em rejeitar o presente recurso, de harmonia com o disposto nos artigos. 414º nº3, 420º nº1 b) e 414º nº2, todos do CPP, ex vi do art. 239º do CEP, por ser irrecorrível a decisão do Tribunal de Execução das penas objeto do mesmo.

Vai o arguido condenado na importância de 3 UC, nos termos do art. 420º nº3 do CPP, não se proferindo condenação em custas por não serem as mesmas devidas, dado que o recurso foi rejeitado por razões não substantivas (contrariamente ao que sucede na rejeição por manifesta improcedência), pelo que não decaiu no recurso não se preenchendo, assim, a previsão do art. 513º nº1 do CPP, como temos vindo a entender.

Évora, 21 de outubro de 2010

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)


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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Viana Berguete Coelho)

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[1] Em sentido contrário, antes da entrada em vigor do novo CEP, pode ver-se, porém, o Ac RP de 17.09.2008 que considerou ser “Irrecorrível a decisão que nega a adaptação à liberdade condicional.”- Acessível em www.dgsi.pt (relator – Custódio Abel Silva)

[2] Decisão integral acessível em www.dgsi.pt

[3] Sem prejuízo de a Lei 44/2010 de 3.09, que alterou algumas disposições do CEP (aqui inaplicáveis) apenas ter entrado em vigor a 3.10.2010

[4] Para além da liberdade para prova, que é o instituo congénere da LC aplicável aos arguidos sujeitos a medida de segurança de internamento – cfr art 94º do C. Penal. Opção discutível no plano dogmático e sistemático, pois sendo a liberdade condicional considerada hoje como um incidente ou fase da execução da pena de prisão que cabe inteiramente na competência dos TEP, parece-nos que nada de essencial se opunha à sua inclusão no novo CEP, ganhando-se em coerência e clareza sistemática.

[5] Quanto aos pressupostos vd arts 61º e 62º do C. Penal.

No que respeita às finalidades e caracterização do período de Adaptação à LC, pode afirmar-se que, tal como a liberdade condicional, aquela constitui um incidente, medida ou fase relativa à execução da pena, que visa estabelecer uma fase de transição entre a reclusão em meio prisional e a Liberdade Condicional, quando anteriormente apenas previa a LC como fase ou período de transição entre a reclusão e a liberdade definitiva.

Tal como é entendido em relação à LC, pretende-se que o delinquente possa recobrar o sentido de orientação social enfraquecido por efeito da reclusão, permitindo-se uma melhor reintegração social do condenado, mas possibilitando-se agora, com a Adaptação à LC, que tal adaptação e reintegração se faça de forma mais gradual, pois embora o condenado se encontre privado da liberdade, sob controlo apertado, o regime pode adaptar-se à sua evolução pessoal e permite que o condenado não continue sujeito ao contacto com o meio prisional.

[6] Conforme pode ler-se na fundamentação do citado acórdão 638/06 do TC, “….também no caso dos autos está em causa a mesma liberdade, por a possibilidade de reapreciação da decisão de recusa de liberdade condicional poder significar o fim (sujeito a condição resolutiva) da pena de prisão, não sendo relevante, na perspetiva da afetação do direito à liberdade do recorrente, relevante para o duplo grau de jurisdição, o facto de num caso ele se encontrar em prisão preventiva e no outro estar em cumprimento de uma pena privativa da liberdade.

Com efeito, a decisão que nega a liberdade condicional, por ter como efeito a manutenção da privação da liberdade, tem uma indiscutível conexão com a restrição de direitos, liberdades e garantias, afetando um bem jurídico essencial que é o direito à liberdade, protegido no n.º 1 do artigo 27.º da Constituição.

Pode, assim, concluir-se que a norma do artigo 127.º do Decreto-Lei n.º 783/76, de 29 de outubro, na parte em que veda o recurso das decisões que neguem a liberdade condicional, é materialmente inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito, do direito à liberdade e do direito de acesso direito aos tribunais.”

- Cfr texto integral acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/