FRAUDE FISCAL
QUESTÃO PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DO PROCESSO CRIME
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
FUNDAMENTO DO CASO JULGADO
Sumário

1 .Os despachos de mero expediente caracterizam-se, pois, pela sua natureza de se limitarem a dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear o andamento do processo, sem envolverem uma apreciação concreta que se projecte nos direitos dos intervenientes. Por isso, também, não dão lugar à formação de caso julgado, com o sentido de que o juiz fique vinculado à decisão aí contida, mas, pelo contrário, sempre poderá esta ser alterada ou revista perante a situação concreta que se depare e em qualquer momento.

2. “O fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim, o que está na base do instituto (Eduardo Correia, in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, Almedina, 1983, a pág.302).

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, nº.28/06.7IDFAR, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, a arguida, entre outros, V. .. Ltd., foi pronunciada como co-autora material de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art.103º, nº.1, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei nº.15/2001, de 05.06, pela prática dos factos descritos a fls.922/929.

Designadas datas para a audiência, a arguida apresentou contestação, suscitando como questões prévias:

- nunca ter sido notificada do despacho acusatório e da faculdade de requerer a abertura da instrução;

- ter apresentado, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, acção administrativa especial, com vista à declaração de nulidade da decisão de acesso a informações e documentos bancários e dos actos administrativos, tributários ou penais posteriores, constituindo causa prejudicial e dever desencadear a suspensão do processo, nos termos do art.7º, nº.2, do Código de Processo Penal (CPP).

Neste âmbito, decidiu-se, por despacho de 17.03.2010:
- nada haver a determinar quanto à primeira questão;
- no restante, indeferir o pedido de suspensão formulado.

Inconformada com tal despacho, a referida arguida interpôs recurso, formulando as conclusões:

• A ora Recorrente, quanto ao processo melhor identificado em epígrafe, apenas a partir da instrução criminal constituiu mandatário judicial.

• A constituição de mandatário por qualquer gerente da ora Recorrente (pessoa colectiva) não é, nem poderá ser, naturalmente, extensiva a esta última.

• Sendo obrigatória a constituição do mandatário, todos os actos anteriormente praticados deverão ser invalidados.

• A ora Recorrente nunca foi notificada de qualquer despacho de acusação nem da inerente faculdade de, querendo, requerer a abertura de instrução, conforme resulta dos presentes autos, pelo que não deveria ter avançado a fase de instrução sem que tal pressuposto seja assegurado.

• Não tendo a Arguida mandatário na fase de inquérito, nem nunca tendo sido notificada de qualquer despacho de acusação nem da inerente faculdade de, querendo, requerer a abertura de instrução, foram gravemente postergados os seus direitos de defesa.

• Atento o disposto no artigo 310.º n.º 1 do CPP, deverá o douto Tribunal a quo decidir sobre esta questão prévia.

• A ora Recorrente apresentou no douto Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé uma impugnação de Acto Administrativo, intentando, na forma ordinária Acção Administrativa Especial, (Proc. n.º ---.6BELLE) ao abrigo do artigo 46.º n.º 2 alínea a) 2.a parte do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), com vista à declaração de nulidade da decisão de acesso a informações e documentos bancários e seus actos administrativos, tributários e/ou penais posteriores - conforme petição junta na fase de instrução.

• A ora Recorrente suscitou, em sede do douto Tribunal a quo (Doc. n.º 2), - como, aliás, já tinha feito na fase de instrução, sem ter obtido uma resposta - a existência de causa prejudicial conducente à suspensão da presente instância.

• Nos termos do disposto no artigo 7.º n.º 2 do Código de Processo Penal, quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.

• Na perspectiva da ora Recorrente, deveria ter sido ordenada a suspensão da instância, uma vez que se verifica uma relação de dependência, de prejudicialidade, entre a causa a decidir - a dependente - e uma outra causa intentada - a prejudicial -, que possa justificar a suspensão da presente instância.

• A ser considerada procedente a Acção Administrativa Especial, tal implicará a anulação de todos os actos procedimentais (tributários) subsequentes, que são subjacentes aos factos criminais (tributários) controvertidos nos presentes autos.

• A Acção Administrativa Especial (causa prejudicial), diz respeito a um incidente verificado ainda na fase de inspecção tributária que conduziu à fixação da matéria tributável que serve de base à acusação do crime de fraude fiscal (e à determinação da alegada vantagem patrimonial ilegítima, requisito do tipo de crime).

• A ser considerada procedente a Acção Administrativa Especial, será declarada a nulidade do acesso pela DGCI, por violação do artigo 63.°-B da Lei Geral Tributária (LGT), às informações e documentos bancários do contribuinte, protegidos pelo direito fundamental do sigilo bancário, e seus actos administrativos, tributários e/ou penais posteriores, como sejam, por exemplo, o relatório de inspecção tributária, a revisão da matéria colectável fixada por métodos indirectos, e as liquidações de imposto e de juros compensatórios (acto tributário final), que estiveram na génese da acusação criminal contestada nos presentes autos.

• No douto Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé está pendente uma causa prejudicial, em que são impugnados judicialmente actos da inspecção tributária, e em que se discute situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados na acusação ora contestada, podendo todo o procedimento de inspecção tributária, revisão da matéria colectável e de liquidação de imposto, que antecedem e fundam a acusação ora contestada, vir a ser declarados nulos e ordenada a sua repetição.

• A determinação da alegada vantagem patrimonial ilegítima é um requisito da maior importância para o tipo de crime (fraude fiscal).

• O artigo 47.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), determina no seu n.º 1, que “Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças”.

• Até à presente data, a ora Recorrente (Arguida) nunca teve conhecimento de quais os desenvolvimentos sobre tal diligência superiormente oficiada pelo douto Tribunal.

• Pelo despacho recorrido, alcança-se mesmo que o douto Tribunal a quo não tem qualquer informação sobre a Acção Administrativa Especial.

• A data para a audiência de julgamento já está agendada, para o próximo dia 15 de Abril de 2010, e sendo que os Arguidos, as Testemunhas e os Mandatários, a manter-se tal audiência, teriam que se deslocar do Reino Unido, Lisboa, etc., com o que tal implicaria, para estarem presentes no julgamento em Albufeira.

• A ora Recorrente requereu que, com a necessária antecedência - tendo em atenção a primeira data de julgamento (no próximo 15 de Abril) -, fosse a mesma notificada quanto à decisão sobre a suspensão do processo penal tributário até ao trânsito em julgado da Acção Administrativa Especial pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.

• Não se sabe como pôde o douto Tribunal decidir, sem mais, pela não suspensão do processo penal tributário, requerida nos termos do artigo 47.º do RGIT, se não chegou sequer a conhecer do teor da alegada causa prejudicial.

• O douto Tribunal, pelo menos por duas vezes (no despacho de marcação da audiência de julgamento, e depois no próprio despacho ora recorrido) diligencia junto do Tribunal Tributário onde está pendente a Acção Administrativa Especial, no sentido de conhecer do seu teor e do estado do respectivo processo, reconhecendo-lhe importância para a causa penal, mas, por outro lado, sem conhecer sequer do teor dessa Acção Administrativa Especial, nem o estado do respectivo processo, decide, sem mais, pela não suspensão do processo penal tributário.

• No próprio despacho ora recorrido, oficia o Tribunal onde corre termos a alegada causa prejudicial para conhecer o estado do respectivo processo.

• O douto Tribunal a quo deveria ter conhecido do teor da alegada causa prejudicial e do respectivo estado do processo antes de decidir sobre a suspensão do processo penal tributário.

• O douto Tribunal a quo não poderia decidir sobre a suspensão do processo penal tributário, sem conhecer sequer da causa prejudicial

• Sem conhecer sequer do teor da causa prejudicial (a Acção Administrativa Especial), não se poderia nunca aferir se se tratava de “uma questão juridicamente autónoma e essencial para a imputação do ilícito criminal no tribunal penal”.

• Sem conhecer sequer do teor da causa prejudicial, não se poderia aferir se o “tribunal está impedido legalmente ou impossibilitado em termos fácticos de decidir a questão prejudicial pelos seus próprios meios”.

• Sem conhecer sequer do teor da causa prejudicial, não se poderia nunca aferir se "o arguido e, se o houver e a questão lhe disser respeito, o responsável civil têm a faculdade legal de discutir no tribunal não penal a questão prejudicial”.

• O douto Tribunal a quo deveria ter aguardado a informação por si próprio já requerida ao Tribunal onde está pendente a causa prejudicial, para poder estar em condições para decidir sobre a suspensão do processo penal tributário, e assim, na perspectiva da ora recorrente (Arguida), no sentido de suspender o processo penal tributário até ao trânsito em julgado da questão prejudicial tributária.

• Pelo despacho ora recorrido, alcança-se que o douto Tribunal terá concluído, apenas com base no parecer de uma das partes (DGCI), que foi a ora Recorrente que não quis exercer o seu direito de audição nem pedir a revisão da matéria colectável fixada por métodos indirectos, após ter sido notificada, respectivamente, do projecto de relatório de inspecção e do relatório final de inspecção, não tendo o douto Tribunal, por sua iniciativa, aferido se tal seria mesmo exacto, e apenas se suportando de um parecer da DGCI.

• A matéria da (não) notificação do relatório de inspecção e do (não) exercício do direito de audição e de revisão surge controvertida na causa prejudicial (Acção Administrativa Especial), que o douto Tribunal a quo ainda não conhece

• Nunca o contribuinte inspeccionado (ora Recorrente) foi notificado no decurso de todo o procedimento de inspecção (até ao relatório final, inclusive).
• As duas tentativas de notificação do relatório final de inspecção terão resultado frustradas por não terem sido efectuadas para a morada da sede do contribuinte.

• Posteriormente, em 20 de Julho de 2007, o mandatário do contribuinte veio remeter Procuração junto da DF de Faro, conforme consta nos presentes autos, sem que os mesmos tenham sido notificados do relatório final de inspecção.

• Nunca a ora recorrente teve a possibilidade de exercer o contraditório, através do seu direito de audição e de defesa, e daí que se viu na contingência de apresentar a referida Acção Administrativa Especial, apelando no fundo à sindicância judicial dos actos administrativos e tributários que fundam, de modo prejudicial e dependente, o processo penal aqui controvertido.

• Á ora Recorrente surgem nos presentes autos imputados factos alegadamente ilícitos, sem que a mesma tenha alguma vez podido contestar as correcções de imposto (seja, em sede de inspecção, seja em sede de revisão, seja ainda em sede de liquidação) que servem, a final, de base à acusação penal ora controvertida, donde a pertinência da causa prejudicial tributária, que o douto Tribunal a quo ainda não conhece, e da suspensão do processo penal tributário que se requer.

• O douto Tribunal a quo, no despacho que marcou a data da audiência de julgamento, oficiou o Tribunal onde está pendente a causa prejudicial, para que este remetesse para os presentes autos informação sobre o teor e estado do respectivo processo, mais ordenando que “uma vez junta aos autos a informação solicitada ao referido processo abra vista ao Ministério Público para se pronunciar quanto à questão prévia suscitada”, pelo que o douto Ministério Público também ainda não conheceria do teor e estado da causa prejudicial, sendo por isso que se refere ao “eventual recurso a meios proibidos de prova”.

• A ora Recorrente veio requerer (Doc. n.º 4) com respeito a matéria estritamente tributária, e não penal - daí a sindicância junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que se considerou competente -, mas cuja sorte é relevante, até para evitar contradições, no processo penal tributário.

• Uma vez que, adiante-se, na Acção Administrativa Especial - que o douto Tribunal a quo ainda não conhece - foram formulados os seguintes pedidos:

“Deverá ser declarada a nulidade do acesso pela DGCI, para efeitos estritamente tributários (por violação do artigo 63.°-B da LGT), às informações e documentos bancários do contribuinte, protegidos pelo direito fundamental do sigilo bancário.

Ou, caso assim não se entenda, sem conceder, e por mera cautela de patrocínio,

Deverá o contribuinte ser notificado do relatório final de inspecção, na sua versão integral, sendo anulados todos os actos administrativos, fiscais e/ou penais subsequentes.”

• Se o douto Tribunal a quo tivesse aguardado a informação por si requerida ao Tribunal onde está pendente a causa prejudicial, poderia ter avaliado da pertinência para o processo penal da matéria tributária ali controvertida, e que serve de base irrefutável à qualificação criminal tributária dos factos imputados à ora Recorrente nos presentes autos.

• Se, e como é bom de ver, se por hipótese, o douto Tribunal Tributário atender a um dos pedidos formulados pela Impugnante (a ora Recorrente), a administração fiscal ver-se-á obrigada a repetir o procedimento tributário de inspecção (e de revisão da matéria colectável, caso o contribuinte assim o entenda), sendo anuladas todas as liquidações de imposto que servem de base e substância ao processo penal tributário aqui controvertido.

• Não se vislumbra como poderá o processo penal tributário avançar sem que existam sequer liquidações de imposto.

• Na opinião da ora Recorrente, seria prudente a suspensão do processo penal tributário, para evitar decisões judiciais claramente contraditórias, geradoras de grave prejuízo para a Arguida (ora Recorrente) e para a própria realização da justiça que pratica actos potencialmente inúteis e contraditórios.

• Nos presentes autos, o douto Tribunal a quo decidiu no sentido da não suspensão do processo penal tributário, sem conhecer da causa prejudicial, o que se contesta.

O Ministério Público apresentou resposta, designadamente referindo:

(…) dar-mos aqui por reproduzidas as nossas considerações já expendidas na promoção de 11 de Fevereiro de 2010, exarada a fls. 1027-1028, concordamos na íntegra com os fundamentos jurídicos apresentados pela M.ª Juiz no despacho de fls.1029-1032 e damos tal fundamentação aqui por reproduzida por forma a evitar inúteis repetições de argumentação.

Mais se dirá que, ao contrário do que parece ter por certo o recorrente, a nulidade da decisão de acesso pela Direcção-Geral de Contribuições e Impostos a informações, documentos bancários e respectivos actos não determinaria necessariamente uma alteração da qualificação dos factos uma vez que no inquérito o Ministério Público se socorreu de outros meios de obtenção de prova diversos dos utilizados pela Administração Fiscal.

Sendo certo também que só em sede de julgamento e, posteriormente, com a prolação de sentença haveria de ser apreciada a prova, conhecer-se de que elementos de prova se serviu o Tribunal para consignar os factos provados e não provados, e eventualmente decidir-se sobre a validade/atendibilidade dos meios de prova disponíveis.

Nestes termos, deve o recurso interposto ser considerado improcedente e, em consequência, manter-se o despacho recorrido nos seus precisos termos.

O recurso foi admitido por despacho de fls.1261.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, de harmonia com o disposto no art.412º, nº.1, do CPP.

Assim, delimitando-o, reside em apreciar:
A) – se devem ser invalidados todos os actos praticados nos autos anteriormente à abertura da instrução, com fundamento, segundo alega, em que não tinha até então mandatário constituído;

B) – se, em face da acção pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, de impugnação de actos administrativos, com vista à respectiva declaração de nulidade, deveria ter sido ordenada a suspensão do presente processo.

Consta do despacho recorrido:

Das questões prévias suscitadas nas contestações:

Veio a sociedade arguida “V…, Ltd” em sede de questão prévia, dizer que não foi notificada da acusação nem notificada para requerer a abertura da instrução, sendo que também não constituiu mandatário senão a partir da instrução, o que era obrigatório em momento anterior e acarreta a invalidade dos actos praticados.

As referidas questões foram objecto de decisão por parte do Mmo. Juiz de Instrução Criminal - conforme despacho de fls. 879 a 884. - onde se julgaram improcedentes as nulidades invocadas, pelo que se mostra esgotado o poder jurisdicional para delas conhecer, sendo certo que a arguida dele não interpôs recurso.
Deste modo, quanto a esta concreta questão, nada há a determinar.

Em sede de contestação, vieram os arguidos V…, Ltd e R. M…, requerer a suspensão dos presentes autos, nos termos do artigo 7.º do Código de Processo Penal, porquanto a primeira intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé uma impugnação de acto administrativo, nos termos do artigo 46.º, n.º 2, al. a), 2.ª parte do CPTA, com vista à declaração de nulidade da decisão de acesso pela DGCI a informações e documentos bancários e respectivos actos administrativos, tributários e penais posteriores, em violação do artigo 63.º B da Lei Geral Tributária.

Alegam os arguidos que, se trata de questão prejudicial tendo em conta que, a ser considerada procedente a referida acção será posta em causa a liquidação do imposto que está em causa nos presentes autos.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da requerida suspensão, atendendo a que, no caso, se trata do eventual recurso a meios proibidos de prova, matéria essa que tem cariz penal, pelo que não está condicionada à decisão a proferir pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 7. º do Código de Processo Penal que:

“1. O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessam à decisão da causa”.

O princípio da suficiência do processo penal consiste na competência do tribunal penal para decidir todas as questões prejudiciais penais e não penais que interessarem à decisão da causa.

Quando o tribunal penal entender que é necessário decidir a questão prejudicial num tribunal não penal o processo deve ser suspenso para que o tribunal competente decida.

Esta faculdade do tribunal penal é excepcional por contrariar o princípio constitucional do julgamento do processo penal no mais curto prazo possível, de acordo com o disposto no artigo 32.º, n.º 2 da CRP.

Como refere Pedro Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, pág. 63, para determinar a suspensão do processo penal devem estar reunidos três requisitos cumulativos:

a) A questão prejudicial afigura-se como uma questão juridicamente autónoma e essencial para a imputação do ilícito criminal no tribunal penal;

b) O tribunal está impedido legalmente ou impossibilitado em termos fácticos de decidir a questão prejudicial pelos seus meios próprios;

c) O arguido e, se o houver e a questão lhe disser respeito, o responsável civil têm a faculdade legal de discutir no tribunal não penal a questão prejudicial.

Ora, no caso, requerem os arguidos a suspensão com fundamento no artigo 47.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprovou o Regime Geral das Infracções Tributárias, segundo o qual, se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.

Sucede que, como resulta do parecer da Direcção Geral de Finanças, emitido nos termos do artigo 42.º, n.º 3 do RGIT, notificada do projecto de relatório final, a sociedade arguida não exerceu o seu direito de audição, não requereu a revisão da matéria colectável, nos termos dos artigos 60.º, 68.º e 86.º e 91.º do RGIT, pelo que se fixou como definitiva, na ordem judicial, a liquidação efectuada.

Para além disso, dos autos resulta que o inquérito teve início com a elaboração do auto de notícia datado de 24 de Março de 2006 e, por conseguinte, todos os elementos de prova foram recolhidos no âmbito de um inquérito criminal, no qual a administração fiscal agiu por competência delegada, nos termos do artigo 41.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

No âmbito do inquérito foram efectuadas buscas e apreendidos documentos, autorizadas pelo Ministério Público, nada constando quanto a um eventual pedido de quebra de sigilo bancário.
Deste modo, como bem refere a Digna Magistrada do Ministério Público, o que está em causa, tratando-se de meios de prova obtido no âmbito de um inquérito criminal, é a eventual utilização de métodos proibidos de prova, o que cumpre a este Tribunal apreciar e não ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.

Pelo exposto, indefere-se o pedido de suspensão formulado pelos arguidos, nos termos do artigo 7.º do Código de Processo Penal, mantendo-se a data já agendada para a audiência de julgamento.

Notifique.

Sem prejuízo, com cópia de fls. 1021 a 1026, oficie ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé solicitando informação sobre se já foi proferida decisão nesse processo e, em caso afirmativo a remessa de certidão com nota de trânsito em julgado.

Conhecendo:

A) –
Sobre a questão colocada, o despacho recorrido nada determinou, remetendo para anterior decisão, acerca dessa matéria, proferida em sede de instrução.

Por seu lado, o recorrente defende que, ainda assim, a questão deve ser conhecida, por se tratar de questão prévia e, segundo o disposto no art.310º, nº.1, do CPP, irrecorrível aquando proferida aquela decisão.

Ora, na verdade, resulta dos autos que, durante a instrução, então requerida pela arguida M. N. (fls.644/649), depois de designada data para o debate instrutório (fls.697) e da realização deste (fls.703), a aqui recorrente suscitou, em 01.05.2009, em termos idênticos aos que agora alega, a invalidação dos actos anteriormente praticados (fls.705/706) o que veio a ser objecto do despacho de 24.07.2009 (aludido no despacho recorrido), julgando improcedentes as nulidades que foram arguidas pelo ilustre mandatário da arguida V…, Ltd.., proferido, como tal, anteriormente à prolação e leitura da decisão instrutória (fls.909/931).

O mandatário de V….Ltd. foi notificado desse despacho, por via postal registada, considerando-se essa notificação efectuada em 04.09.2009 (fls.880).

Não esteve presente na leitura da decisão instrutória, que teve lugar em 15.10.2009 (fls.931), justificando a sua ausência (fls.908).

Da mesma decisão instrutória, ficou a constar que Inexistem nulidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer (fls.909).

Dúvida não se coloca de que, tal como o recorrente reconhece, o objecto do recurso agora trazido à apreciação já foi decidido, motivo por que, certamente, se entendeu, no despacho recorrido, que nada havia então a determinar.

Efectivamente, estranho seria que tal decisão anterior não tivesse tido qualquer efeito, como se não existisse, sendo certo que não se tratou de despacho de mero expediente, na pacífica noção de que é havido como tal o que se destina a regular, de harmonia com a lei, os termos do processo e que, por isso, não é susceptível de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros (v. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil anotado”, Coimbra, 1984, volume V, a pág.250).

Os despachos de mero expediente caracterizam-se, pois, pela sua natureza de se limitarem a dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear o andamento do processo, sem envolverem uma apreciação concreta que se projecte nos direitos dos intervenientes.

Por isso, também, não dão lugar à formação de caso julgado, com o sentido de que o juiz fique vinculado à decisão aí contida, mas, pelo contrário, sempre poderá esta ser alterada ou revista perante a situação concreta que se depare e em qualquer momento.

Contrariamente, o despacho referido expressamente apreciou e decidiu sobre a questão da invalidade (nulidade) dos actos que então foi posta, esgotando-se, por essa forma, o poder jurisdicional nesse âmbito - cfr.art.666º, nºs.1 e 3, do Código de Processo Civil (CPC), “ex vi” art.4º do CPP -, pelo que, agora, alterá-lo ou modificá-lo contende com o caso julgado que sobre a mesma se formou e com a correspondente força obrigatória dentro e fora do processo.

Ainda, conforme Alberto dos Reis, ob. cit, a págs.126 e 127, o alcance da extinção do poder jurisdicional significa que O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela, um todo incindível e, a sua justificação, por uma razão de ordem doutrinal de que o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa e logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se e, por uma razão de ordem pragmática, que consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional.

Em sentido consentâneo, (…) o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim, o que está na base do instituto (Eduardo Correia, in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, Almedina, 1983, a pág.302).

A noção de caso julgado, embora não expressamente prevista no regime processual penal, impõe-se claramente na decorrência do princípio “ne bis id idem”, consagrado no art.29º, nº.5, da Constituição da República, comportando a dimensão subjectiva de garante ao cidadão de que não será julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos e, na vertente objectiva, que o legislador conformará o direito processual com essa exigência.

Aplicando subsidiariamente as regras do processo civil que se harmonizam com o processo penal (art.4º do CPP), há lugar a caso julgado quando o objecto de decisão, dentro dos seus limites objectivos e subjectivos, já tenha sido antes apreciado e por decisão que não admita recurso ordinário, nos termos dos arts.497º, nº.1, e 498º do CPC.

A ora recorrente não reagiu ao despacho proferido após ter sido do seu teor notificada, podendo tê-lo feito.
É que, contrariamente ao que alega, ao caso não é aplicável o art.310º, nº.1, do CPP (na actual redacção conferida pela Lei nº.48/2007, de 09.11), que prevê a irrecorribilidade da decisão instrutória de pronúncia pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, deduzida nos termos do ars.283º ou do nº.4 do art.285º do CPP, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, já que - independentemente da problemática constitucional que este segmento do preceito levanta à luz do art.32º, nº.1, da CRP, suscitando, até, que não deva ser aplicado, questão cujo desenvolvimento aqui não se justifica -, o despacho em causa foi proferido anteriormente à decisão instrutória, não se confundindo com esta, o que o recorrente certamente não desconhece.

Assim, a eventual irrecorribilidade do mesmo não se coloca e, por isso, não serve de argumento para que o recorrente reitere a sua posição e, muito menos, para que agora, no despacho recorrido, algo tivesse de ser determinado.

Concorda-se, pois, no sentido do despacho recorrido, que sobre a questão se esgotou o poder jurisdicional, tendo-se, com isso, formado o respectivo caso julgado e ficando produzidos os seus efeitos (arts.666º, nºs.1 e 3, 671º, nº.1, 673º e 677º do CPC “ex vi” mesmo art.4º do CPP), o que implica que, nesta parte, o recurso não é conhecido.

B) –
O recorrente veio requerer, na contestação apresentada, a suspensão do processo, ao abrigo do art.7º, nº.2, do CPP, por referência ao art.47º, nº.1, do RGIT, alegando a pendência de acção administrativa especial (nº.361/09.6BELLE) no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, com vista à declaração de nulidade dos actos de acesso a informações e documentos bancários, bem como dos posteriores.

Na sequência, por despacho de fls.1039, foi ordenado se solicitasse informação relativa àquela acção, com vista a saber quais as partes intervenientes, qual o pedido e qual o estado em que se encontrava.
Foi recebida certidão de sentença, transitada em julgado, segundo a qual se decidiu a incompetência desse Tribunal em razão da matéria e se determinou a remessa do processo à respectiva Área Fiscal (fls.1107/1111).

Mais resulta, da mesma, que a acção foi intentada pela aqui recorrente contra o Ministério das Finanças, pedindo a nulidade da decisão de acesso a informações e documentos bancários do contribuinte (…) para efeitos tributários, de harmonia, aliás, com o que já constava dos autos, através da cópia da petição, junta na fase de instrução, de fls.802/826, alegando violação do art.63º-B da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pela mesma Lei nº.15/2001).

Ora, nos termos do aludido art.47º, nº.1, do RGIT, Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças, o que constitui, na matéria, corolário da excepção ao princípio da suficiência do processo penal, consagrado no art.7º, nº.1, do CPP, prevista no seu nº.2, ao prever que Quando para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal, que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.

Ao falar-se em suficiência da acção penal, pretende significar-se a autonomia da jurisdição penal para conhecer de questões não penais mas que influam ou intercedam na apreciação da própria causa penal e com repercussão no «facto penal» sub judice, em sentido normativo (in “Prejudicialidade e «Adesão» em Processo Penal Tributário: aspectos particulares”, Jorge Reis Bravo, na Revista do Ministério Público nº.115, Jul-Set 2008, a pág.93).

Daí a necessidade de precisos requisitos que, cumulativamente, justifiquem a suspensão do processo, tal como assinala Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª.edição, Universidade Católica, pág.63, os quais ficaram vertidos no despacho recorrido (dispensando a sua reprodução), à luz, além do mais, de que a suspensão do processo sempre foi vista como faculdade excepcional.

O fundamento do princípio repousa em evitar-se, por um lado, a contradição de julgados e, por outro, que o exercício do “jus puniendi” do Estado seja paralisado.

Acompanhando Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, volume I, Coimbra, 1974, a pág.164, O fundamento que subjaz a um tal princípio não é difícil de intuir: se não se contivesse dentro dos mais apertados limites a possibilidade de o processo penal ser sustido ou interrompido – e, em todo o caso, fracturado – pelo simples surgimento nele de uma questão (penal, ou sobretudo, não penal) susceptível de uma cognição judicial autónoma, por-se-iam em sério risco as exigências, compreensíveis e relevantíssimas, de concentração processual ou de continuidade do processo penal; e permitir-se-ia que, por este modo, se levantassem indirectamente obstáculos ao exercício daquele processo (…) Dizem-se questões prejudiciais aquelas que, possuindo objecto – ou até natureza – diferente do da questão principal do processo em que surgem, e sendo susceptíveis de constituírem objecto de um processo autónomo, são de resolução prévia indispensável para se conhecer em definitivo da questão principal, dependendo o sentido deste conhecimento da solução que lhes for dada.

Já Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, Lisboa, 1981, a págs.72 e 73, escrevia que A prejudicialidade deriva da subordinação lógica duma controvérsia à resolução duma outra controvérsia (…) A questão prejudicial é só aquela que tem por objecto o mérito da causa, com exclusão das questões processuais (…) Por isso, as questões prejudiciais são questões substantivas absolutamente necessárias, do ponto de vista lógico, para a decisão da questão prejudicada, são elas susceptíveis de constituir objecto dum processo autónomo.

Por seu lado, ao nível do processo penal tributário, atendendo à distinta natureza dos tribunais tributários, que integram, até, outra ordem jurisdicional – a administrativa-tributária -, e às específicas questões que nesse âmbito se suscitam, tem-se, mesmo, entendido que a previsão daquele art.47º do RGIT constitui um verdadeiro desvio ao princípio da suficiência do processo penal, impondo-se como regra especial e obrigatória (cfr. Reis Bravo, ob. cit., a pág.105; Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos in “Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado”, 2008, pág.399/405; Alfredo José de Sousa, “Infracções Fiscais não Aduaneiras”, 3.ª edição - anotada e actualizada, 1998, pág.218; João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, “Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho)”, 2.ª edição 2004, em anotação àquele preceito; e acórdão da Relação do Porto de 01.02.2006, tendo como relator o Desembargador Joaquim Gomes, no proc. nº.0515213, acessível em www.dgsi.pt).

Embora tendencialmente assim seja – desde logo, recorrendo ao elemento literal da interpretação do art.47º do RGIT -, afigura-se que, aquando da prolação de despacho acerca da suspensão do processo, a necessidade da decisão da questão prejudicial para a decisão da existência do crime, como prescreve o art.7º, nº.2, do CPP, não pode deixar de estar presente, só desse modo se compaginando com a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, fins a que o mesmo se destina.

Acompanhando o referido acórdão da Relação do Porto de 01.02.2006:

(…) podemos concluir que a suspensão do processo penal fiscal, em consequência de uma impugnação judicial só reveste carácter obrigatório se a mesma for absolutamente necessária para a decisão da questão prejudicada (crime fiscal ou tributário), de modo que se lhe apresente como um antecedente lógico-jurídico, com carácter autónomo e condicionante do conhecimento da questão principal, o que só sucede quando:

1.º) a questão aí versada revista de carácter estritamente tributário, na medida em que vise a tutela judicial dos direitos e interesses legalmente protegidos em matéria fiscal relacionada com a conduta imputada aos arguidos, independentemente destes serem ou não partes naquele processo tributário.

2.º) tal questão tenha, concomitantemente, natureza substantiva e esteja conexionada com o acto tributário cujo tipo legal fiscal, imputado ou susceptível de imputar aos arguidos, se vise tutelar, sendo, por isso, determinante, na sua qualificação ou então na escolha ou determinação da pena a aplicar.

Como decorre da petição da referida acção administrativa, de fls.802 e segs. – não obstante ter sido já decidido que a competência para a sua apreciação caberá à Área Fiscal do Tribunal onde foi interposta -, tem como pedido a declaração de nulidade do acesso pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos (DGCI), para efeitos estritamente tributários (por violação do artigo 63.º-B da LGT), às informações e documentos bancários do contribuinte, protegidos pelo direito fundamental do sigilo bancário e, subsidiariamente, que Deverá o contribuinte ser notificado do relatório final de inspecção, na sua versão integral, sendo anulados todos os actos administrativos, fiscais e/ou penais subsequentes.

A sua causa de pedir reside, como da mesma consta, na preterição da notificação do relatório da inspecção, na derrogação do sigilo bancário no acesso a documentos, na ausência de audição prévia à aplicação do art.63º-B da LGT e na fundamentação do acesso às informações e documentos bancários.

Tal procedimento, embora incorrectamente designado de acção administrativa especial (por não se enquadrar no elenco a que alude o art.46º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei nº.15/2002, de 22.02), poderá (decidida que foi a sua remessa nos termos referidos) ser visto na perspectiva da tutela plena e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos da ora recorrente em matéria tributária - art.96º, nº.1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pela mesma Lei nº.15/2001, e tendo por fundamento a preterição de formalidades legais, de acordo com o critério amplo definido no art.99º do mesmo Código, “in casu” atinentes ao apuramento da sua situação tributária, as quais, no seu entender, estarão contaminadas pela nulidade, inquinando os actos inspectivos e os subsequentes.

Com efeito, o procedimento tributário compreende acções de informação e fiscalização tributária (art.54º, nº.1, alínea a), da LGT), onde se incluem a realização das diligências necessárias àquele apuramento (art.63º da LGT), no respeito das garantias dos contribuintes e outros interessados, assistindo a estes legitimidade desde que provem interesse legalmente protegido (arts.65º a 67º da LGT).

É indiscutível que, nos autos, a competência para os actos de inquérito foi delegada pelo Ministério Público no director de finanças da área em que os factos teriam ocorrido, de acordo com o disposto no art.41º, nº.1, alínea b), do RGIT, vindo o referido relatório da inspecção a ser entretanto junto, a fls.371/441, bem como, depois, o parecer a que se refere o art.42º, nº.3, do RGIT, no qual se aduziram considerações (trazidas ao despacho recorrido) acerca da audição da recorrente e do não exercício de qualquer meio de defesa legal, concluindo, por isso, que conformou-se com estas (liquidações emanadas da administração), que assim se cristalizaram na ordem jurídica (fls.577/580).

Não se desconhece, tal como transparece da alegação da recorrente, que se trata tão-só de um parecer e, assim, não vinculativo, sujeito, desde logo, ao controlo do Ministério Público, para efeitos do procedimento definido no art.43º, nº.1, do RGIT (de arquivamento ou de dedução da acusação), o que não poderá deixar de ter sido feito.

A existência de outras diligências probatórias, efectuadas em inquérito, não releva propriamente para a suspensão requerida.

Não se põe em questão, para tanto, a admissibilidade e a valoração que a prova, a produzir e examinar em audiência, venha a merecer.

Decisivo será, sim, dilucidar até que ponto o objecto daquela acção é verdadeiramente prejudicial para a decisão a proferir nos presentes autos.

No fim de contas, é a actuação da administração tributária, ainda em sede inspectiva, que a recorrente põe em crise, sendo que a mesma esteve, inevitavelmente, na base dos elementos probatórios recolhidos, adequados àquela decisão do Ministério Público, o que se reconduz à crítica na obtenção dos meios de prova utilizados, estando estes, inevitavelmente, na subsequente valoração indiciária estabelecida.

Aceita-se que a acção intentada pela aqui recorrente seja enquadrada, para os efeitos do art.47º, nº.1, do RGIT, como processo de impugnação judicial dentro daquele critério amplo e da previsão da alínea q) do nº.1 do art.97º do CPPT (“outros meios processuais previstos na lei”), sendo, que, de acordo com o invocado art.63º-B da LGT, seu nº.4, cabe recurso dos actos praticados pela administração tributária.

Acresce que, em caso de deferimento do recurso, os elementos de prova (eventualmente contaminados pela sua obtenção) não podem ser utilizados para qualquer efeito em desfavor do contribuinte (nº.5 do mesmo art.63º-B).

Não obstante, pois, a relevância que possa ter nos presentes autos, a reserva coloca-se, quanto à verdadeira natureza de prejudicialidade do pedido aí formulado, com o sentido, necessário, de que se trate de questão juridicamente autónoma dos autos e que o tribunal penal não possa convenientemente decidir, de cuja solução dependa a existência do crime por que foi a recorrente pronunciada.

Desde logo, apelando aos elementos constantes dos autos, não resulta que, nestes, não possa vir a ser resolvida, nos termos legais processualmente definidos para a admissão e valoração dos meios de prova produzidos e examinados em audiência.

De qualquer modo, reveste relativa autonomia em face do objecto do julgamento a realizar, na medida em que se prende com a obtenção de meios de prova de que a decisão instrutória se serviu para pronunciar a recorrente, configurando-se como prévia e determinante da aceitação desses meios, no âmbito dos actos estritamente tributários antes praticados.

Discutindo-se, nos autos, a existência de factos ou valores não declarados e que devam ser declarados à administração tributária, cuja ocultação, visando a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, define o tipo legal de crime por que está pronunciada, afigura-se que a problemática atinente a essa mesma existência seja, pois, relevante, ainda que, admite-se, no processo penal, pudesse vir a ser apreciada.

Sem prejuízo, porém, note-se que a questão da forma de apuramento da situação tributária da recorrente, ou seja, da legalidade dos actos conducentes à mesma, é eminentemente prévia à indiciada ocultação, prendendo-se com a actuação da administração e, neste sentido, prejudicial ao conhecimento da existência do crime.
Independentemente de saber se à ora recorrente assistirá alguma razão que sustente a procedência da acção interposta, a especificidade desta, aliada ao disposto no art.47º, nº.1, do RGIT, a que acresce, na vertente da tendencial obrigatoriedade de suspensão, a previsão do art.48º do RGIT – de que as sentenças proferidas em processo de impugnação nos termos do CPPT constituem caso julgado para o processo penal tributário quanto às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram -, aconselha a que o processo seja suspenso, inexistindo fundamento suficientemente válido para diferente entendimento.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida V… Ltd. e, consequentemente,
- revogar o despacho recorrido na parte em que indeferiu o pedido de suspensão do processo, determinando que seja substituído por outro que, deferindo o requerido, ordene a suspensão do processo, nos termos do art.47º, nº.1, do RGIT, até que seja proferida decisão na acção interposta pela recorrente, com o número ----.6BELLE, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé – Área Fiscal, e com a devida informação a esse Tribunal, com vista ao estrito cumprimento do nº.2 do mesmo art.47º;

- no mais, manter o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, com a taxa de justiça em soma correspondente a 3 UC.

Elaborado informaticamente, em processador de texto, e integralmente revisto pelo Relator.

28 de Outubro de 2010
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(Carlos Jorge Viana Berguete Coelho)

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(João Henrique Pinto Gomes de Sousa)