1. No regime legal da aplicação das medidas coactivas, reside, como sua peculiar característica, a sua natureza “rebus sic stantibus”, isto é, poderem ser alteradas e revistas sempre que se justifique, seja em razão de apreciação de pressupostos de legalidade formal, seja devido à reponderação de fundamentos que as determinaram.
2. Não basta a alteração da dimensão indiciária após julgamento, sufragada pelo tribunal recorrido, que ficaram reforçadas com a prolação do acórdão condenatório, por crime reconhecidamente grave, para justificar a alteração da medida de coacção, impondo-se ainda a verificação, em concreto, no momento da aplicação da medida, de uma das condições gerais prevenidas no art. 204.º do CPP.
3. O perigo de fuga tem de ser real e não presumido, não se bastando com a existência de condenação numa pena de prisão, mesmo que pesada, pois só desse modo se salvaguardarão as garantias de defesa e, mormente, a excepcionalidade da prisão preventiva na sua compatibilização com a presunção da inocência, ainda que, segundo o disposto naquele art.193.º, seu n.º. 1, a gravidade do crime e a previsibilidade da sanção sejam factores atendíveis.
4. A ausência injustificada do arguido à audiência em que teve lugar a prolação do acórdão, desacompanhada de outros factos objectivos, é insuficiente para justificar a prisão preventiva, com base na alegação de perigo de fuga.
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
1. RELATÓRIO
Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, com o n.º 22/07.0GAPTM, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Silves, realizado o julgamento e proferido acórdão em 06.07.2010, o tribunal procedeu nesta data ao reexame da situação coactiva do arguido FM, decidindo aplicar-lhe a medida de prisão preventiva.
Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:
a) O presente recurso emerge da discordância em relação ao despacho que, na sequência da prolacção do acórdão, não transitado cm julgado, que o condenou na pena de 7 anos de prisão, determinou que o recorrente aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, revogando-lhe assim a medida de coacção a que vinha estando sujeito de liberdade mediante a prestação de TIR.
b) Com efeito, o despacho em crise, tirado na sequência da leitura de acórdão condenatório não transitado em julgado, mostra-se errado porquanto as razões da aplicação da medida de prisão preventiva de que se socorreu não se verificam, o que, por isso, torna a aplicação desta medida ilegal.
c) Sem prejuízo do enquadramento legal que inicialmente faz acerca da pertinência da reapreciação da medida de coacção que se propõe levar a cabo, na apreciação do caso concreto o tribunal errou completamente quando avalia a ausência do arguido na leitura do acórdão como um quadro compatível com a fuga à acção da justiça e, nomeadamente, ao cumprimento da pena.
d) A verdade é que estando em liberdade, sujeito a TIR, o arguido sempre compareceu perante o tribunal, nomeadamente o julgamento que teve lugar.
e) Não compareceu, contudo, no dia 06-07-2010, data da leitura do acórdão e por uma razão muito simples.
f) É que no espaço que mediou o julgamento e a leitura do acórdão, em 25.06.2010, o recorrente foi vítima de acidente de viação com motociclo, do qual lhe advieram lesões importantes, nomeadamente ao nível da coluna e clavícula.
g) Tendo ficado de baixa médica por incapacidade, concedida em 30.06.2010. até, pelo menos, 07.07.2010, altura em que deveria comparecer no Hospital CUF Infante Santo para nova avaliação.
h) Não obstante a incapacidade e a consulta de reexame agendada pelo médico da Global Companhia de Seguros, S.A. para o dia seguinte ao da prolacção da sentença, a verdade é no dia desta o recorrente compareceu também no Centro de Saúde de Sacavém - Extensão de Moscavide, justamente porque na sequência do sinistro aí tinha também consulta com o seu médico de família, e, por esse facto, não compareceu na publicação do acórdão - como melhor se afere do documento remetido aos autos pelo arguido no dia seguinte ao da prolacção do acórdão.
i) Ainda assim, prudentemente contactou a sua defensora, que o comunicou ao tribunal, tendo ficado em acta: “De imediato, pela ilustre Defensora do arguido FM foi dito que o arguido F. contactou-a a informar que se encontrava doente e que no dia de amanhã remeterá o competente atestado”. O que efectivamente fez.
j) Ainda assim, no despacho recorrido, o tribunal consignou que o recorrente não compareceu por saber que a decisão lhe seria adversa: que por isso faltou, encontrando-se confirmado por facto posterior aquele perigo de fuga, que se pode já tomar como uma realidade; que nada comunicou ao tribunal, limitando-se a contactar a sua defensora e no sentido de transmitir que em breve juntaria atestado médico; e que nestas circunstâncias (repare-se que não afirma que está doente e incapacitado, aliás, nada diz) o quadro que se nos apresenta é o da fuga à acção da justiça; (sic)
k) Considerandos, que claramente não correspondem à verdade e incompreensivelmente escamoteiam a informação do recorrente e a sumária da sua defensora consignada em acta.
l) Com efeito, o perigo de fuga deve ser real e avaliado em concreto. A jurisprudência é pacífica no sentido de que ele não deve ser presumido.
m) A verdade é que no despacho recorrido ele nem sequer foi presumido, antes foi idealizado, pois o tribunal tinha elementos justificativos que ignorou e iam justamente no sentido contrário do que deixou consignado no despacho em crise.
n) E se por cautela e prudência podia relegar a decisão de revogar a medida de coação em questão para o dia seguinte, justamente pela anunciada comprovação da justificativa, preferiu ignorá-la, fosse ela qual fosse, tal como ignorou a justificação da ausência.
o) Consequentemente, errou claramente na apreciação que fez dos factos, tendentes à verificação, em concreto, do perigo de fuga, que claramente não existia.
p) O que, não tornando despicienda a pena em que foi condenado, não tem no entanto a virtude de impor a revogação da medida de coacção a que vinha estando sujeito, justamente por não se verificar em concreto acrescido perigo de fuga, que não possa ser acautelado por medida não privativa da liberdade, ou, em última análise, obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica.
q) Com efeito, o recorrente é cidadão português, tem toda a sua família a viver em Portugal, tem um filho menor de 9 meses e espera um outro, pois a esposa está em estado adiantado de gestação.
r) Vive ainda também com os filhos desta de 14 e 8 anos de idade.
s) E sempre trabalhou.
t) O despacho recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 191º, 193º, 202º, 204º e 375º, nº 4 do C.P.P,
u) pelo que deve ser revogado e substituído por acórdão que, fazendo a melhor interpretação e aplicação dos mesmos, aliada a uma correcta apreciação dos factos em questão, restitua o recorrente à liberdade.
O Ministério Público apresentou resposta, concluindo,
1ª -
Quando o recorrente refere que o Tribunal errou completamente quando avalia a ausência do arguido na leitura do Acórdão está a omitir que o tribunal considerou injustificada a falta dada pelo arguido à sessão de julgamento da leitura do Acórdão, como aliás resulta do disposto no artigo 117° nºs 2 e 4 do CPP.
2ª -
Resulta da Acta de Audiência de Discussão e Julgamento que a Ilustre Defensora do arguido ora recorrente referiu que o mesmo a contactou a informar que se encontra doente e que no dia seguinte remeteria o competente atestado médico, mas nos termos do disposto no nº 2 do artigo 117° do CPP a impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de antecedência se for previsível e se for alegada doença o faltoso apresentará Atestado Médico especificando a impossibilidade ou grave inconveniente no comparecimento.
3ª -
Se o recorrente teve um acidente em 25-6-2010 e a seguradora lhe deu baixa até 7-7-2010 a impossibilidade de comparecimento era previsível e, assim, devia ser comunicada com cinco dias de antecedência, enviando nesse prazo o competente Atestado Médico, o que não fez, o que levou o tribunal a considerar injustificada a falta, pois quando refere que está doente não refere que tal o impossibilita de comparecer (documento de fls. 1928, onde se assinala que “está impossibilitado de trabalhar).
4ª -
Tal levou o Tribunal a concluir que se o condenado não compareceu quando podia e devia tê-lo feito, tal consubstanciava um concreto perigo de fuga, para se eximir ao cumprimento da pena a que havia sido condenado e que o próprio tinha consciência de que ia ser condenado, concluindo que tal situação exigia o reforço das medidas de coacção, aplicando a medida prisão preventiva.
5ª -
Tendo a prisão preventiva sido decretada na sequência do Acórdão condenatório, pressupondo-o e dele passando a fazer parte, mas não constando do texto do Acórdão como noutras circunstâncias tem acontecido, pode-se concluir que a situação foi criada pelo próprio condenado que ao faltar deu sinais evidentes que se iria eximir ao cumprimento da pena, daí o perigo de fuga, sendo certo que as medidas de coacção não teriam sofrido alteração se tivesse comparecido.
6ª -
O Tribunal não ignorou a justificação da ausência, injustificou-a e fê-lo nos termos prescritos na lei, razão porque não podia relegar a decisão sobre a alteração da medida de coacção, razão ainda para acreditar na existência do perigo concreto de fuga.
7ª -
Sendo um facto que a condenação com o anúncio público de pena de prisão efectiva é apto a criar, por si só, acrescido perigo de fuga do arguido não foi aquela que determinou o Tribunal a decretar tal medida, antes a sua ausência injustificada à leitura do Acórdão, com o que significou, não assumindo qualquer relevo para contrariar o perigo de fuga, o facto de o recorrente ser cidadão português, com a família a viver em Portugal e ter um filho menor e a sua mulher esperar um outro.
8ª -
O douto Acórdão recorrido não violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 191°, 193°, 202°, 204º e 375° nº 4 do CPP: a medida de coacção aplicada está prevista na lei e é a adequada para a situação criada pelo recorrente, tendo em conta ainda os factos provados que levaram à sua condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, cuja moldura penal abstracta permite a prisão preventiva, actuando o Tribunal em conformidade com o determinado na lei.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.
O recurso foi admitido, conforme despacho certificado de fls. 3.
Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme pacificamente é entendido, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, atento o disposto no art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP).
Assim, consubstancia-se na apreciação da aplicação ao recorrente da medida de prisão preventiva, pugnando este pela sua revogação, segundo invoca, por ausência de fundamentos bastantes e por violação dos arts. 191.º, 193.º, 202.º, 204.º e 375.º, n.º 4, do CPP.
É do seguinte teor a decisão recorrida:
“Após deliberação, o tribunal colectivo entende que a ausência injustificada do arguido FM, neste momento, deve ser ponderada nos termos do que dispõe o nº 4 do artº 375º do Código de Processo Penal.
Posto que o tribunal, depois de decorrido o processo em 1ª instância, com todas as garantias de apreciação livre e global de toda a prova produzida e com a solidez que assegura semelhante julgamento, tem o pleno convencimento sobre o cometimento pelo arguido FM do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual foi agora condenado, conclui que neste momento está qualitativamente alterada, para muito mais, a forte indiciação daquele arguido, desde logo relativamente à altura em que foi decidida a medida de coacção a que se encontra sujeito.
Na altura e como é natural, não eram sequer eram muito claras as exactas características dos respectivos comportamentos e os pormenores que rodeavam toda a sua conduta.
Nesta altura, em que é legalmente obrigatória a apreciação das medidas de coacção, teremos de concluir que aquela a que o arguido FM está sujeito foi manifestamente insuficiente.
Na verdade, em preceito incontornável, é a lei que, insofismavelmente, prescreve ao julgador a reapreciação das medidas de coacção no momento da prolação da sentença em 1ª instância (nº 4 do artº 375º do Código de Processo Penal, justamente em sede da publicação da sentença).
Ou seja, toma aqui a nossa lei posição clara relativamente à solução a dar à situação dos condenados por decisão ainda não transitada.
Entre uma multiplicidade de possibilidades (onde avultam a de começar o condenado a cumprir imediatamente a pena, ou a de ingressar em posição processual de privação de liberdade transitória, já diversa da prisão preventiva), optou o nosso ordenamento pela ponderação das medidas de coacção.
Repare-se que, como até aí na marcha do processo, não o faz por via de passagem do tempo (por exemplo) e indica semelhante operação em preceito atinente ao encerramento do julgamento em 1ª instância e em artigo que trata da respectiva decisão final, desde que condenatória (e, note-se agora e com toda a pertinência, não qualquer outra).
O sentido da norma é óbvio, impondo ao julgador o poder/dever de apreciação das medidas de coacção à luz do quadro total do caso obtido depois de finda a produção de toda a prova, discutida a mesma e decidido o pleito, seja para as adequar às legalmente admissíveis ao caso concreto (por exemplo, por desagravação de crime que agora deixe de admitir em abstracto as anteriormente aplicadas) ou, como não pode deixar de caber naquela sede e de por isso ter sido pretendido, para reforçar as mesmas medidas, por insuficiência das aplicadas e face aos novos contornos que ao caso sempre terá de dar o facto social revelado por uma sentença de um tribunal judicial de 1ª instância.
Após a última revisão do Código de Processo Penal, de 2007, veio o legislador também a impor semelhante obrigação em sede própria de medidas de coacção (trata-se de clara duplicação da mesma norma, embora restrita aos casos de anterior aplicação de medida de prisão preventiva ou de permanência na habitação, mas denuncia bem que para tal efeito o momento da decisão final não é legalmente indiferente).
Note-se ainda que, ao contrário de muitas indicações que a lei vai dando ao longo da regulação da fase de julgamento e mais concretamente, da audiência, a norma tem como destinatário não o presidente, mas o tribunal, o que significa que a questão deve ser debatida e determinada por este, integrando-se em princípio na própria decisão final. É, ainda por isso, acto essencialmente jurisdicional, isto é, directamente dirigido ao âmago da correspondente função, afastado da mera condução processual (relativamente à qual não é neutra a aplicação de medidas de coacção em fases anteriores) e já sem ter em vista em primeiro lugar as exigências cautelares do processo no seu decurso, antes e claramente virada para a fase de execução da decisão final e por forma a assegurar a respectiva eficácia.
Fazemos esta incursão por conhecer posição que, afinal, defende não ser um julgamento público feito por tribunal (de 1ª ou até 2ª instâncias), circunstância apta a, por si, alterar pressupostos de aplicação de medidas de coacção (nomeadamente para as agravar) como se nada de relevante se tivesse produzido, seja no tecido social, seja ainda em termos processuais e principalmente para o fim que agora nos ocupa.
Ora, um julgamento público criminal é um facto social da maior importância, já que equivale à reacção de toda a comunidade perante a notícia da violação das suas mais essenciais regras de convívio.
É pois e antes de tudo um facto incontornável para a colectividade.
Discordamos frontalmente daquela corrente e salvo o devido respeito por quem a defende, por ser, antes do mais, “contra legem”, uma vez que nos termos estatuídos pelo Código de Processo Penal, o julgamento constitui, logo em abstracto, circunstância especialmente apta a alterar os pressupostos de aplicação das medidas de coacção.
É porque essa é a única explicação para a precisa colocação sistemática do preceito transcrito, que constitui comando directamente dirigido ao julgador no sentido da ponderação medidas de coacção das adequadas naquele preciso momento e com o material probatório relevante (todo) reunido e discutido.
A pena aplicada ao arguido FM, pela sua dimensão, não deixará de nele desencadear reflexão sobre a sua futura postura relativamente ao processo, em termos de muito claramente criar acrescido perigo de fuga àquele que naturalmente qualquer reacção criminal desencadeia.
Na altura em que num grau de apreciação muito maior e mais completo do que a simples notícia do crime (ou da acusação), desvanecidas muitas das incertezas, se torna à comunidade patente, visível e conhecido o envolvimento do arguido neste grave crime, para além da consciência do mesmo sobre tal evidência, é patenteado neste momento e por isso fortíssimo perigo de fuga.
Como se disse e é evidente neste caso, o arguido teve a perfeita percepção do que se passou durante a audiência a que assistiu, nomeadamente, no que respeita à produção da prova.
Daí que, consciente do seu envolvimento neste grave crime, já não compareceu à publicação da decisão final, que obviamente sabia ser adversa.
Por isso faltou, encontrando-se confirmado por facto posterior aquele perigo de fuga, que se pode já tomar como realidade.
Nada comunicou ao tribunal, limitando-se a contactar a sua defensora e no sentido de transmitir que em breve juntaria atestado médico.
Nestas circunstâncias (repare-se que não afirma que está doente e incapacitado, aliás, nada diz) o quadro que se nos depara é o de fuga à acção da justiça, nomeadamente ao cumprimento da pena que previa como provável, à luz do mais elementar sendo comum.
Será assim incompreensível para, com este dado extra a juntar ao demais, para o sentido jurídico mais profundo da comunidade a ausência de reforço das medidas cautelares que são as de coacção.
Por outro lado, o anúncio público de pena de prisão com a duração da aplicada é apto a criar, por si só, acrescido perigo de fuga relativamente ao arguido.
No sentido de que uma condenação em pena de prisão constitui, só por si, uma forte razão para que o condenado se sinta motivado para fugir, de forma a não ter de cumprir a pena se a mesma se tornar exequível, ver Ac. R.E. de 12.12.1995 em B.M.J. 452, 509 e R.C. de 9.1.1996, em B.M.J. 453, 585. No mesmo sentido Ac. R.L. de 24.3.2004, em www.dgsi.pt .
A condenação em pena de prisão “altera substancialmente a situação do arguido, uma vez que, passa de um juízo de probabilidade para um juízo de certeza sobre a prática de um crime, mesmo que tal juízo seja provisória por não ter transitado em julgado a respectiva sentença; essa alteração e o conhecimento da pena que terá de cumprir provocam no arguido uma alteração do seu estado de espírito, passando a ser maior a sua apetência para a fuga ”, como se lê no Ac. R.C. de 14.5.1997, em B.M.J. 467, 644.
“Na verdade, um juízo indiciário, ou de mera acusação, é diferente de um juízo de culpa formado pelo tribunal, gerador de condenação, resultando dos factos apurados em audiência de julgamento no exercício pleno do contraditório, perante as provas produzidas e examinadas em audiência.
Provado o crime, a pena aplicada, para efeito de aplicação de medidas de coacção é relevante na determinação das medidas de coacção, pois dá a dimensão da gravidade concreta do crime praticado e estabelece a confiança da comunidade na reposição da norma violada, assegurando a confiança no funcionamento do ordenamento jurídico-penal, também emanação do direito à segurança, inscrito no artº 27º nº 1 da Constituição da República...
Não é a decisão condenatória ipso facto que legitima a reapreciação das medidas de coacção; outrossim, são os factos típicos provados e respectiva gravidade, perante a existência de um juízo de certeza sobre a culpa...do agente na produção dos mesmo, que tornam necessário o reexame da situação do arguido, de forma a que fique sujeito “as medidas de coação admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requer”, como se lê no Ac. R.E. de 28.11.2006, lavrado no recurso nº 2525/06 da 1ª Secção Criminal, no procº comum colectivo nº 160/02.6JFLSB do 1º Juízo Criminal de Portimão. Por outro lado e como se disse, existe novo facto incontornável, conducente a conclusão também ela insofismável.
O arguido FM faltou injustificadamente à publicação da decisão final, pelo que manifesta foi a insuficiência da medida aplicada.
A dimensão da pena aplicada e dos perigos denunciados leva-nos à conclusão de que os mesmos apenas poderão ser atalhados com a aplicação da medida de coacção detentiva, pois qualquer outra não é apta a tolher de forma eficaz o perigo de fuga evidenciado.
As circunstâncias apontadas evidenciam ainda a insuficiência de medida de coacção diversa da de prisão preventiva, pois qualquer outra não é apta a tolher de forma eficaz os evidenciados perigos com as apontadas características, pelo que nos termos dos artºs 191º a 193º , 202º e 204º do Código de Processo Penal, será a prisão preventiva aplicada ao arguido FM.
Termos em que se decide aplicar ao arguido FM a medida de coacção de prisão preventiva.
Passe os competentes mandados.”
Apreciando:
A aplicação de qualquer medida de coacção, à excepção do termo de identidade e residência, pressupõe em concreto a verificação de algum, ou alguns, dos requisitos a que alude o art. 204.º do CPP, ou seja:
a) - Fuga ou perigo de fuga;
b) - Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) - Perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
As medidas de coação estão, por sua vez, sujeitas ao princípio da legalidade, significando que a limitação dos direitos do arguido, em que se inclui a liberdade, só pode efectivar-se em função das exigências processuais de natureza cautelar admitidas por lei, conforme art. 191.º, n.º 1, do CPP.
Subjacente estará sempre, também, a apreciação de critérios de necessidade, de adequação e de proporcionalidade, segundo o disposto no art. 193.º do mesmo diploma, mormente, no que à medida de prisão preventiva concerne, como medida mais gravosa e que só será aplicada se outras, menos gravosas, não forem adequadas ou suficientes (art. 202.º, n.º 1, do CPP), constituindo pois “extrema ratio” - cfr.”Curso de Processo Penal”, de Germano Marques da Silva, vol. II, Verbo, 1993, pág. 219 -, em obediência ao seu carácter eminentemente subsidiário.
Apenas quando essa condição cautelar de inadequação de outras medidas se verifique e algum, ou alguns, dos fundamentos previstos naquele art. 204.º se deparar - verificada a sua possibilidade de aplicação perante o disposto no n.º 1 e diversas alíneas do art. 202.º -, deverá ser aplicada a prisão preventiva, tendo esta sempre um carácter excepcional, de acordo com o art. 28.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Na verdade, implicando uma restrição e em medida elevada, além do mais, do direito fundamental à liberdade – v. art. 27.º da CRP -, deve ser a sua aplicação limitada ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, nos termos do art. 18.º, n.º 2, da mesma Lei Fundamental, o que genericamente se pode designar como contendo em si mesma o pressuposto material do princípio da proporcionalidade, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra, 2007, a pág. 392.
Segundo os mesmos Autores, O princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas, desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos.
Não contende, porém, sem mais, com a presunção da inocência consagrada no n.º 2 do art. 32.º da CRP, atendendo a que diferentes são os pressupostos em que assentam as duas realidades: a prisão preventiva, em exigências processuais de natureza cautelar, enquanto que essa presunção funciona até que se prove a efectiva culpabilidade do arguido e está intimamente associada ao princípio “nulla poena sine culpa”.
De qualquer modo, sendo a presunção da inocência um princípio estruturante do processo criminal, não poderá, é certo, a aplicação da prisão preventiva servir como antecipação de verdadeira pena a título de medida cautelar e uma forma de antecipação da responsabilização e punição penal e, só se justifica, como as demais, medidas coactivas, como meio de tutela de necessidades de natureza cautelar, ínsitas às finalidades últimas do processo penal, a realização da justiça, através da descoberta da verdade material, de um modo processualmente válido, e o restabelecimento da paz jurídica (cfr. Figueiredo Dias, com a colaboração de Maria João Antunes, in “Direito Processual Penal, FDUC, 1988/9, a págs. 20 e segs.), além de que a limitação ou privação da liberdade do arguido está vinculada à exigência de que só sejam aplicadas àquele as medidas que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente (cfr. Figueiredo Dias, “Sobre os Sujeitos Processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal”, Almedina, 1988, a pág. 27).
Tal como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/90, de 07.06, acessível in www.dgsi.pt:
(…) Não se ignora que «o princípio da presunção de inocência, na sua desimplicação histórica, assume uma pluralidade de sentidos que exigem a sua concretização e o seu detalhamento progressivos perante as diversas situações processuais penais que para ele apelam; mas sentidos, também, que não podem ser arbitrária ou desrazoavelmente multiplicados ou estendidos, atento o perigo de que, assim, possam vir a entrar em contradição com a razão de ser do princípio como um dos fundamentos do processo penal do Estado de direito democrático» (cfr. Acórdão n.º 168, da Comissão Constitucional, Apêndice ao Diário da República, de 3 de Julho de 1980, e ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., pp. 215 e segs., e Pinheiro Farinha, Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pp. 29 e segs.).
Assim sendo, há-de dizer-se que o princípio não proíbe a antecipação de certas medidas cautelares e de investigação (de outro modo concluir-se-ia no sentido da inconstitucionalização da instrução criminal em si mesma)
(…)
O recorrente coloca a sua perspectiva na ausência de fundamentos para que lhe tivesse sido aplicada a prisão preventiva, após leitura do acórdão que o condenou na pena de sete anos de prisão.
Encontrava-se, então, em liberdade e mediante as obrigações atinentes ao termo de identidade e residência, vindo a ser detido, em execução dos mandados emitidos, em 24.08.2010, conforme fls. 11.
O despacho recorrido foi proferido, pois, ao abrigo do art. 375.º, n.º 4, do CPP - Sempre que necessário, o tribunal procede ao reexame da situação do arguido, sujeitando-o às medidas de coacção admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requer -, o que, propriamente, o recorrente não contesta, no tocante à possibilidade em o ter feito, ainda que o tenha também referenciado como tendo sido erradamente interpretado pelo tribunal, mas, indubitavelmente, na vertente da alegada ausência de motivos para tanto.
Tal disposição não é mais do que aforamento de dispositivos gerais e não constituiu, aquando da sua criação, qualquer inovação ao regime da modificação de medidas de coacção (cfr. Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 12ª. edição, 2001, a pág. 718).
Aliás, desde que devidamente fundamentada a sua aplicação, salvaguardado fica o respeito pela presunção da inocência, embora esta não deva nunca ser posta de parte e como limite atendível à necessidade da sua aplicação.
Há-se de ser a estrita necessidade das medidas de coacção que legitimará em cada caso a vulneração do princípio da presunção da inocência, como assinala Germano Marques da Silva, ob. cit., vol. II, a pág. 206.
Já no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 729/97, de 23.12, no proc. n.º 390/97, in BMJ n.º 472, pág. 102, se entendia inexistir impedimento constitucional a que pudesse haver revisão da aplicação das medidas de coacção durante o processo.
Ainda, de acordo com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII (seu ponto 22), que antecedeu a alteração legislativa pela Lei n.º 59/98, de 25.08, que introduziu aquele n.º 4 ao art. 375º, estabeleceu-se o dever de reexame da situação do arguido quando proferida decisão condenatória, de modo a adoptarem-se medidas adequadas à execução da decisão, pelo que não sofre dúvida esse poder-dever que ao tribunal se impunha, se o julgasse necessário, independentemente da existência de violação de obrigação anterior (art. 203.º do CPP).
A decisão sob censura, no essencial, fundamentou a sujeição do recorrente à medida de prisão preventiva, na alteração das razões que haviam antes justificado a sua liberdade, pelo reforço da indiciação da prática dos factos, mediante a prolação do acórdão, condenando-o por crime de tráfico de estupefacientes, na referida pena de prisão, e pela existência de perigo de fuga, a que alude a alínea a) do mencionado art. 204.º.
Não decorre, da mesma, que o aqui recorrente tenha incumprido as obrigações anteriormente impostas, o que, no entanto, não constitui obstáculo algum a que fosse alterada a sua situação e ao abrigo daquele art. 375.º, n.º.4.
No regime legal da aplicação das medidas coactivas, reside, como sua peculiar característica, a sua natureza “rebus sic stantibus”, isto é, poderem ser alteradas e revistas sempre que se justifique, seja em razão de apreciação de pressupostos de legalidade formal, seja devido à reponderação de fundamentos que as determinaram.
A lei processual penal não consagra, aliás, qualquer impossibilidade de substituição de uma medida de coacção aplicada por outra mais gravosa, mesmo que aquela não tenha sido violada (art. 212.º, n.º 2, do CPP), bem como prevê as suas causas de revogação e a aplicação de medida coactiva menos gravosa, ou de execução menos gravosa, quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares (mesmo art. 212.º, seus n.ºs 1 e 3).
Igualmente, ao proceder ao reexame previsto no art. 375º, n.º 4, o tribunal, sem perder de vista o elenco das situações que determinam a alteração de medidas a que se reportam as alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 212.º, que têm então, pelo menos em parte, de verificar-se, dispõe da panóplia de elementos que resultou da audiência de julgamento, podendo aquilatar do juízo de culpa formado em resultado da prova produzida e da discussão que a mesma proporcionou, na qual o arguido exerceu o seu direito de defesa, mormente através do contraditório à mesma inerente, sendo que a alteração da situação do recorrente poderia, para si (assistido por defensor), constituir consequência que não pudesse e/ou devesse perspectivar.
A alteração da dimensão indiciária após julgamento, sufragada pelo tribunal recorrido, não merece contestação, nem mesmo o recorrente logra pô-la em crise, na medida em que, como é sabido, após a produção da prova em audiência e a subsequente valoração que mereça, o respectivo juízo de convicção é mais sustentado.
Na realidade, para a aplicação da prisão preventiva, exige-se que os indícios sejam fortes, o que inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura, e que essa suspeita assente em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, o que não invalida o entendimento de que a expressão utilizada pelo legislador porventura não constituirá mais do que uma injunção psicológica ao juiz, no sentido de uma maior exigência na ponderação dos dados probatórios recolhidos acerca do crime assacado ao arguido - v. “Código de Processo Penal Anotado”, de Simas Santos e Leal-Henriques, 2ª.edição, Rei dos Livros, 1999, a págs. 996 e seg..
Ou como pode ler-se em Germano Marques da Silva, ob. cit, vol. II, a págs. 209 e seg., A exigência de “fumus comissi delicti”(…) É sempre necessário que seja possível formular um juízo de indiciação da prática de certo crime (…) Nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior (…).
Conceitualmente, os indícios constituem o conjunto de elementos, cuja legalidade não seja posta em causa, que suscita a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, considerada essa convicção como assente em probabilidade séria dessa possibilidade, não como juízo de certeza, mas sim como probabilidade segura, o que haverá, com a devida adaptação, de ser aferido para a aplicação da medida coactiva.
Nesta vertente, ainda que o despacho recorrido omita a concretização desses indícios, é inegável que ficaram reforçados com a prolação do acórdão condenatório, por crime reconhecidamente grave, incluído na denominada criminalidade altamente organizada (art. 1.º, alínea m), do CPP).
Já se vê, pois, que, à luz do referido art. 212.º, seu n.º 1, alíneas a) e b), a medida aplicada tem, nesse aspecto, cobertura legal.
Haverá, então, que analisá-la, no sentido de saber se o perigo de fuga que a justificou se mostra preenchido.
O recorrente entende que não.
Sustenta que sempre compareceu em audiência, que na data da leitura do acórdão isso não aconteceu, apenas, devido a encontrar-se de baixa médica, na sequência de acidente de viação de que foi vítima, que a situação de doença foi então comunicada ao tribunal pela sua defensora, que apresentou, no dia seguinte, documentação justificativa da falta e que, sendo português, tem família constituída e a cargo e sempre trabalhou.
Invoca, em resumo, que o receio de fuga não se verifica em concreto e que a decisão recorrida se limitou a presumi-lo.
Ora, concorda-se que o perigo em causa tem de ser real e não presumido, não se bastando com a existência de condenação numa pena de prisão, mesmo que pesada, pois só desse modo se salvaguardarão as garantias de defesa e, mormente, a excepcionalidade da prisão preventiva na sua compatibilização com a presunção da inocência, ainda que, segundo o disposto naquele art.193.º, seu n.º. 1, a gravidade do crime e a previsibilidade da sanção sejam factores atendíveis.
Porém, não se concluirá que a eminência de privação da liberdade não crie, em si mesma, um normal receio de que o arguido pretenda subtrair-se à acção da Justiça, segundo as regras da experiência e o senso comum, se outros elementos existirem, sobretudo ao nível da sua personalidade e postura anterior e ao longo do processo, que indiciem a probabilidade dessa situação.
O despacho recorrido assentou, efectivamente, a verificação do perigo de fuga do ora recorrente na circunstância de não ter comparecido à leitura do acórdão, considerando que não justificou essa ausência.
É verdade, porém, que a ilustre defensora prestou ao tribunal informação acerca das razões da ausência, sem que, contudo, isso constitua, em concreto, justificação legal da falta, atendendo a que, nos termos do disposto no art. 117.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, o recorrente poderia ter, à luz do que alegou – ter sido vítima de acidente de viação e encontrar-se com baixa médica desde 30.06.2010 –, previamente ter comunicado a impossibilidade de comparecimento, caso se verificasse, além de que, de acordo com a documentação que veio a apresentar no dia seguinte à leitura do acórdão (fls. 13), o motivo da ausência só teria alguma relevância se o período em que esteve no referido centro de saúde (durante a manhã) coincidisse com a hora em que a mesma teve lugar (16 horas) ou tornasse especialmente difícil a sua deslocação na circunstância, o que não se indicia.
Por seu lado, ainda admitindo que a baixa médica se prolongasse até 07.07.2010 (dia seguinte à leitura), também não resulta, no entanto, que estivesse impossibilitado de comparecer.
Mesmo que a pretendida justificação tivesse sido feita nessa data, a falta do aqui recorrente não poderia, naturalmente, ter sido considerada admissível à data da prolação do despacho (nem este teria de aguardar a respectiva prolação por esse motivo), nem forçosamente essa conclusão resultaria da apresentação da documentação visando tal efeito.
Independentemente desta realidade, afigura-se, todavia, que o despacho recorrido atribuiu, segundo a respectiva fundamentação, um relevo exclusivo a essa falta para a conclusão que extraiu, o que se reputa como insuficiente para justificar a imposição da medida de prisão preventiva.
Embora não perdendo de vista a gravidade do crime e a pena aplicada, cumpriria, no despacho, explicitar minimamente o substrato do perigo de fuga, por apelo a circunstâncias que, em audiência, tivessem resultado, designadamente, por referência a alguns factos objectivos, à importância destes, ao grau de intervenção do recorrente, às condições de vida deste.
Tendo-se limitado a sustentar o peso da pena aplicada, ainda que conjugando-o com a circunstância do recorrente ter faltado injustificadamente à leitura do acórdão, o despacho recorrido operou interpretação sem atender a que, em qualquer circunstância, a aplicação de medida coactiva tem de fundamentar-se, minimamente, numa análise concreta, mesmo que sucinta.
Tal exigência, por maioria de razão, assume maior acuidade tratando-se da aplicação da prisão preventiva, como decorre, ainda, do referido art. 193.º, seu n.º 2.
Não significa que o tribunal não devesse ter alterado a situação coactiva do recorrente após a leitura do acórdão.
Mas, se assim deveria ser, isso não equivaleria a que pudesse fundamentá-lo da forma como o fez, já que o perigo de fuga, que julgou indiciado, não se apresenta, desse modo, de molde a ultrapassar a análise simplista da gravidade do ilícito e da pena, o que não pode deixar de ser criticável.
Afigura-se, pois, que os elementos carreados ao despacho não permitem, de forma suficiente, sustentar a verificação do perigo de fuga, com a relevância necessária e proporcional para determinar a medida imposta.
Havendo, as restrições aos direitos, liberdades e garantias, de restringir-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – art. 18.º, n.º 2, da CRP - , em razão do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP), para que seja garantido o equilíbrio possível entre a medida dessas restrições e o pendor marcadamente humanista de que se nutre o Estado de Direito e, em especial, que caracteriza o Processo Penal Português (v.”A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coacção”, de Frederico Isasca, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, coordenadas por Maria Fernanda Palma, Almedina, a págs. 100 a 103), a medida de prisão preventiva aplicada não se mostra devidamente justificada.
Entende-se que a interpretação que o despacho recorrido efectuou não respeitou, adequadamente (não o fundamentando), os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, em concreto, da medida de prisão preventiva.
Destarte, fundamento existe para alterar o decidido, revogando-o.
3. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se:
- conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido FM e, em conformidade,
- revogar a decisão recorrida que determinou a sua prisão preventiva.
Sem custas.
Emitam-se mandados para libertação imediata do recorrente.
Elaborado informaticamente e integralmente revisto pelo Relator.
9 de Dezembro de 2010
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(Carlos Jorge Viana Berguete Coelho)
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(João Henrique Pinto Gomes de Sousa)