A possibilidade de recurso de facto não está limitada às hipóteses de invocação dos vícios contidos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Serão todos os casos de erro, não notório, na apreciação da prova de que o tribunal de recurso se aperceba na reanálise dos pontos de facto apreciados e permitidos pelo recurso em matéria de facto. Entram neste campo os error in judicando (erros de julgamento), nos quais se incluem os erros na apreciação das declarações orais prestadas em audiência e devidamente documentadas e a não ponderação ou errada ponderação de qualquer prova que, não sendo notórios, impõem uma diversa ponderação. Assim como o uso inadequado de presunções naturais, conhecimentos científicos, regras de experiência comum ou simples lógica.
Mas ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:
a) - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
b) - A indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
c)- A indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal).
E, além disso, o legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto e não, apenas, as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. [1] - Este acórdão foi sumariado pelo relator.]
Acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal da Relação de Évora:
A – Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Silves correu termos o processo comum singular supra numerado, no qual o arguido JH, casado, operário, reformado, foi condenado, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292°/1 e 690/1 al. a), ambos do C Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia total de € 420,00 (quatrocentos e vinte euros) e na sanção acessória de 4 (quatro) meses de proibição de conduzir veículos a motor.
A final recorreu o arguido da sentença proferida, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
A) Salvo o devido respeito, entende o ora Recorrente que a Meritíssima Juiz "a quo" não fez uma correcta aplicação do Direito aos factos, nomeadamente quanto à condenação do Arguido.
B) O Arguido encontrava-se na casa de um amigo, quando foi informado que o seu veículo automóvel estaria a dificultar a saída de um veículo que se encontrava também estacionado.
C) No entanto, já tinham sido chamados ao local a GNR, estes limitaram-se a efectuar a fiscalização dos documentos do veículo e do condutor,
D) Sem nunca terem referido ou solicitado ao Arguido que este efectuasse o exame de pesquisa de álcool.
E) Porque não encontrava o documento em que comprovava a existência de seguro automóvel, os elementos da GNR informaram-no que passa-se pelo Posto da GNR de S. Bartolomeu de Messines mais tarde. para exibir tal documento.
F) Como já era de noite e estava a chuviscar o Arguido após encontrar o documento regressou novamente para a casa do amigo e aí esteve cerca de 1 (uma) hora, tendo ingerido nesse período bebidas alcoólicas.
G) Posteriormente, o Arguido deslocou-se a pé ao posto da GNR (que dista a cerca de 3 minutos) para exibir o documento conforme solicitado,
H) Sendo que depois lhe solicitaram para fazer o teste de pesquisa de álcool o que acedeu, sem nunca perceber o porquê de tal teste.
1) Nesse sentido quando surgiu o resultado de uma taxa de álcool superior a 1,20g/1, o Arguido retorquiu dizendo que não conduziu tanto mais que até se tinha deslocado ao posto a pé e que tinha ingerido bebidas alcoólicas após a presença da GNR no local.
J) Assim, não cometeu nenhum crime de condução veículo automóvel em estado de embriaguez.
K) Os elementos da GNR foram unânimes em afirmar que não podiam precisar quanto tempo mediou entre a presença do Arguido no local até á sua deslocação ao posto.
L) Por tudo o provado na Audiência de Julgamento não pode o Arguido ser condenado pelo crime de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez.
M) Ao não entender assim, a douta Sentença recorrida violou o disposto nos artigos 50°, 69 e 292° do Código Penal.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Silves respondeu às alegações do recorrente, pugnando pela manutenção do decidido.
A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste tribunal emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal.
B - Fundamentação
B.1 - Resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 06.01.2010, cerca das 20:00, o arguido JH accionou e manobrou o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula PF-xx-xx na R. do Terreiro, em S. Bartolomeu de Messines.
2. O que fez para permitir a circulação de outro veículo automóvel.
3. O arguido foi fiscalizado nesse local pelos militares da GNR de S. Bartolomeu de Messines T J V e C C, entretanto chamados ao local.
4. O arguido havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade e género não concretamente apurados.
5. Logo após os factos descritos em 1., o arguido deslocou-se ao posto da G. N. R. de S. Bartolomeu de Messines onde foi submetido, pelas 20:41 e 20:58, ao exame de pesquisa de álcool no sangue, vindo a acusar inicialmente uma taxa de 1,54 e na contra-prova uma taxa de 1,42 gramas de álcool por litro no sangue, de acordo com o registo resultante dos testes quantitativos de pesquisa de álcool efectuados através do aparelho Draqer, modelo 7110 MKIIIP, nº de Série ARAA-0005.
6. O arguido foi notificado nos termos do art. 153° do C. Estrada pelas 21:20.
7. O arguido quis manobrar o veículo automóvel referido em 1. depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, bem sabendo que a condução de veículos possuindo uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/I lhe era proibida e punida por lei criminal, situação com a qual se conformou.
8. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua descrita conduta proibida e punida por lei.
9. O arguido encontra-se reformado, auferindo uma reforma mensal no montante de € 250,00.
10. Efectua biscates como pedreiro, auferindo pelo menos € 100,00 mensais do exercício de tal actividade profissional.
11. Reside em casa própria, com a companheira, também desempregada.
12. Tem uma filha menor, a quem entrega cerca de € 150,00 mensais.
13. Tem o 6° ano de escolaridade.
14. Não tem antecedentes criminais.
Não se provaram quaisquer outros factos, sendo certo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria.
Designadamente, não se provou que:
15. Quando manobrou o seu veículo automóvel o arguido não havia ingerido quaisquer bebidas alcoólicas;
16. O arguido deslocou-se ao posto da GNR de S. Bartolomeu de Messines algumas horas após os factos descritos em 1.;
17. No período compreendido entre a condução do seu veículo e a deslocação ao posto da GNR, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas.
E adiantou, o tribunal recorrido, os seguintes considerandos como motivação factual:
O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade.
O Tribunal atendeu, desde logo, às declarações prestadas pelo arguido J H que confirmou ter manobrado o seu veículo automóvel no local referido nos autos, por forma a permitir a passagem de outro veículo, o que sucedeu por volta das 20:00. Referiu que os proprietários de tal veículo apresentaram queixa na GNR, no seu entender sem qualquer fundamento, na medida em que o seu veículo de mercadorias não estava a bloquear a saída daquele.
Adiantou ter sido abordado por militares da GNR, aos quais facultou os respectivos documentos de identificação e do seu veículo automóvel.
Na medida em que não encontrava o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, ficou de o entregar, posteriormente e quando entendesse, no posto da GNR, após o que os militares abandonaram o local, decorridos cerca de 10 a 15 minutos.
Afirmou ter-se deslocado, então, à residência de um familiar, onde ingeriu diversas bebidas alcoólicas, aí permanecendo cerca de 1 hora.
Depois deslocou-se ao posto da GNR para apresentar o documento em falta, altura em que lhe foi exigido que realizasse o exame de pesquisa de álcool no sangue, o que aceitou, vindo a acusar uma taxa de álcool acima de 1,2 g/1.
Assegurou, ainda, que antes de manobrar o seu veículo não havia ingerido bebidas alcoólicas de qualquer género.
Foram, igualmente considerados os depoimentos das testemunhas T V, C C, militares da GNR que abordaram e fiscalizaram o arguido e A Z, seu amigo.
A testemunha T esclareceu o Tribunal relativamente ao circunstancialismo espácio-temporal dos factos e à forma como os mesmos se verificaram, afirmando ter sido chamado a uma ocorrência no Terreiro, com a militar C, pelo facto de alegadamente um veículo se encontrar a bloquear a saída de outro. Aí chegados, a pé por se situar bastante próximo do posto de S. Bartolomeu de Messines, presenciaram as manobras efectuadas pelo arguido no seu veículo.
Foi este abordado e fiscalizado, não sendo possuidor de um dos documentos necessários.
Por não estarem acompanhados do aparelho de pesquisa de álcool no sangue, solicitaram ao arguido que se deslocasse ao posto a fim de se submeter a tal exame, ao que acedeu, permanecendo no local a tentar encontrar o documento em falta, enquanto a testemunha e C C se ausentaram, novamente a pé, para o Posto.
Escassos minutos depois - cerca de 5 ou 10 minutos -, o arguido compareceu no posto, tendo sido submetido ao referido exame e acusando uma taxa de 1,42 g/1.
Referiu que o arguido se mostrou sempre colaborante e aceitou de imediato efectuar o exame.
Instado sobre a possibilidade de o arguido aí se ter deslocado algumas horas depois, negou-o de forma segura.
Com efeito, embora não tenha revelado recordação do tempo decorrido e do modo de transporte do arguido até ao posto, assegurou que se deslocou ao posto pouco tempo após a mencionada ocorrência, não sendo, por conseguinte, viável a versão dos factos por aquele apresentada.
A testemunha C depôs de forma bastante insegura, hesitante e entrando em diversas contradições, não demonstrando recordação exacta dos factos, pelo que o Tribunal não valorou o respectivo depoimento.
Por último, a testemunha A Z, amigo do arguido afirmou ter presenciado a situação desencadeada pelo estacionamento do carro deste. Referiu que o arguido se deslocou posteriormente à sua residência, onde ingeriram bebidas alcoólicas. Adiantou que o arguido se ausentou pelas 21:30 ou 22:00, alegando que se deslocaria para a sua residência.
As versões apresentadas pelo arguido e pelo militar T são claramente contraditórias no que concerne ao momento em que o exame de pesquisa de álcool no sangue foi realizado.
A isenção revelada pelo referido militar, a referência temporal em que os factos ocorreram e em que o arguido foi submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue - após as 20:00 e 2041 e 20:58, respectivamente -, as incongruências detectadas nas declarações do arguido e no depoimento da testemunha A. - não poderia o arguido ter abandonado a sua residência pelas 21:30/22:00, já que entre as 20:41 e pelo menos as 21:30 esteve no posto a realizar os exames de pesquisa de álcool no sangue e as posteriores notificações -, o facto de não ser plausível ou coerente que os militares tivessem autorizado que o arguido apenas se deslocasse ao posto quando entendesse, para entregar o documento em falta e apenas nessa altura tenham decidido sujeitá-lo ao exame e a circunstância de o arguido ter inicialmente aceite a sujeição a processo sumaríssimo, tudo associado às regras da experiência comum e a juízos de normalidade levam o Tribunal a crer que o arguido realizo, efectivamente, o exame de pesquisa de álcool no sangue escassos minutos após ter conduzido o seu veículo automóvel, pretendendo, agora eximir-se às consequências jurídico-legais da sua conduta.
Também o facto de ter aceite realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue não se coaduna com a versão dos factos agora apresentada e sustentada pelo arguido, já que, como referido pela testemunha T., se mostrou sempre colaborante.
O Tribunal considerou, bem assim, a prova documental junta aos autos a fls. 3 a 4, 5, 7 a 8 e 18, que constituem, respectivamente, o auto de notícia, os resultados dos exames de pesquisa de álcool no sangue, a notificação do arguido e o seu certificado de registo criminal.
A situação sócio-económica do arguido teve por base as suas declarações.
Cumpre conhecer.
B.2 - A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
Mas não está o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito.
Não se verifica qualquer das circunstâncias a que se refere o artigo 410º do Código Penal, nem a inobservância de requisito conducente a nulidade.
Tendo em mente as conclusões do recurso interposto, o objecto do recurso processo está limitado à pretensão do recorrente de recorrer de facto, a que acresce a necessidade de apurar, oficiosamente, se ocorreu erro notório na apreciação da prova.
B.3.1 - A primeira questão a abordar na presente decisão é a pretensão do recorrente a ver alterada a matéria de facto dada como provada e não provada pelo tribunal recorrido.
O recurso sobre matéria de facto está estabelecido na lei de forma irrestrita quanto ao seu objecto potencial, quer para apreciação dos vícios indicados nos nºs. 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal, quer para a apreciação de outros vícios de facto da decisão, desde que possam ser apreciados numa base puramente racional (erros de apreciação, erros de raciocínio, contradições, insuficiências) ou que assentem numa base factual ou probatória existente nos autos (lógica factual, prova documental ou por referência a declarações orais documentadas).
Tais considerandos e opções legislativas estão intimamente ligados à existência efectiva de um recurso em matéria de facto, no assegurar de um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, inclusive sob a cominação de omissão de pronúncia se a Relação – Tribunal superior com competência ampla na matéria, desde que cumpridos certos requisitos de impugnação – não conhecer de facto onde devia conhecer.
Essa possibilidade de recurso não está, por outro lado, limitada às hipóteses de invocação dos vícios contidos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.
Esses os pontos de facto que fundamentam a existência de um recurso de revista alargada e balizam a sua possibilidade de conhecimento ou o seu objecto.
Nestes, o recorrente não tem mais que indicar a sua existência impondo-se ao tribunal – por mero dever de ofício – deles conhecer, desde que o vício seja patente e resulte da simples leitura da decisão recorrida.
Mas se o recorrente pretende invocar tais vícios para além da simples narrativa judicial e fazer apelo a outros elementos de prova, aí já terá que cumprir o seu ónus de impugnação especificada.
Mas, além disso, pode o recorrente invocar vícios que não sejam “notórios”, que saiam fora da previsão balizadora de segurança judicial pretendidos com o recurso de revista alargada (artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal).
Ou seja, aquém daqueles vícios de conhecimento oficioso há todo um campo de possibilidade de recurso em matéria de facto que se não limita aos vícios do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Serão todos os casos de erro, não notório, na apreciação da prova de que o tribunal de recurso se aperceba na reanálise dos pontos de facto apreciados e permitidos pelo recurso em matéria de facto. Entram neste campo os error in judicando (erros de julgamento), nos quais se incluem os erros na apreciação das declarações orais prestadas em audiência e devidamente documentadas e a não ponderação ou errada ponderação de qualquer prova que, não sendo notórios, impõem uma diversa ponderação. Assim como o uso inadequado de presunções naturais, conhecimentos científicos, regras de experiência comum ou simples lógica.
Serão os casos que Pinto de Albuquerque qualifica como “delimitação negativa do erro notório na apreciação da prova”[[] - in “Comentário do Código de Processo Penal “, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pags. 1100-1101.] e que se não reconduzam a meras irregularidades ou nulidades, que essas cabem no âmbito de aplicação do nº 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Estamos, pois, a falar do âmbito de aplicação geral contido no nº 1 do artigo 410º do Código de Processo Penal (“Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”).
Não deixam de ser fundamentos de recurso em matéria de facto e, como tal, sujeitos à disciplina espartana do artigo 412º do Código de Processo Penal, mas onde recai sobre o recorrente o ónus de indicar prova que “imponha” diversa decisão.
Temos, assim, que o recurso de facto nos apresenta duas vias de invocação: (1) invocação dos vícios da revista alargada (410º, nº 2 do Código de Processo Penal) por simples referência ao texto da decisão recorrida; (2) alegação de erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação.
Se no primeiro caso ao recorrente se pede, apenas, a sua alegação, aliás, não essencial, já que de conhecimento oficioso (pois que são os vícios extremos, em absoluto não tolerados pela ordem jurídica), já no segundo caso se impõe ao recorrente o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
E não se espante essa disciplina recursal, esse “especial ónus de alegação”, pois que contrapartida da possibilidade de amplo recurso em matéria de facto.
Também nas alterações ao Código de Processo Penal onde, desde 1998 (Lei nº 59/98, de 25-08) e, com mais acutilância na Lei n.º 48/2007, de 29/08, essa necessidade de equilíbrio entre o amplo recurso em matéria de facto e o ónus de impugnação especificada mais se notam (v. g. a expressão “devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” do nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal).
E é assim que se vem firmando jurisprudência exigente quanto à necessidade de estrita observância desse ónus como ocorreu com o acórdão do STJ de 9 de Março de 2006 “(1) – Se o recorrente se dirige à Relação limitando-se a indicar alguma prova, com referência a suportes técnicos, mas na totalidade desses depoimentos e não qualquer segmento dos mesmos, não indica as provas que impõem uma decisão diversa quanto à questão de facto, pois o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.
Por isso que o artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” (de referir, apenas, que o conceito de “acta” abrange os registos magnetofónicos ou digitais).
Assim, sistematizando, ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:
a) - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
b) - A indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
c) - A indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal).
Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto?
Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto.
A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.
E a justificação surge cristalina. A apreciação da prova no julgamento realizado em 1ª instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe: a imediação e a oralidade. E constitui uma manifesta impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro, ao tribunal recorrido, através de um novo julgamento.
Daí a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão.
Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”.
Impõe-se-lhe que “imponha” uma outra convicção. É imperativo que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais.
Não apenas o relativo do “possível”, sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.
Não se pode afirmar, portanto, que ocorre violação do princípio da livre apreciação da prova, por o recorrente entender que tal acontece por ter ocorrido uma errada (na sua versão) apreciação e valoração da prova produzida, pretendendo adoptada outra versão (a sua).
Ora, o recorrente denota a pretensão à impugnação da matéria de facto.
Mas é uma evidência que não impugna de forma especificada a matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Não há dúvida que a recorrente refere os pontos de facto que pretende ver analisados, apesar de os não indicar de forma precisa.
No entanto não cumpre o seu ónus de impugnação especificada nos termos supra ditos.
Limita-se a negar a matéria de facto dado como provada e a afirmar que os depoimentos de certas testemunhas permitiriam outra apreciação.
Por outro lado, o tribunal recorrido indica prova testemunhal e por declarações e por presunções para fundar a sua convicção. O recorrente não pode ignorar essa fundamentação e haveria que reconduzir, ao menos como ponto norteador, a sua impugnação especificada em função dessa fundamentação.
É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ou menos certo ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.
O tribunal recorrido chegou a uma convicção após análise da prova, atribuindo um carácter de verdade provisória (tendo em vista a presunção de inocência até ao trânsito em julgado) a um conjunto de factos que eram controvertidos.
Incumbia ao recorrente indicar, de forma precisa, os elementos de prova que entende serem-lhe favoráveis e que inquinam aquela verdade provisória e assim criar um espaço de dúvida pelo regresso ao estado anterior à certeza judicial daquela convicção, tendo em vista criar nova convicção.
É que, convém recordar, as exigências do artigo 412º do Código de Processo Penal têm como pressuposto a existência de prévia convicção, de existência de uma decisão judicial, válida enquanto não revogada.
E se, como afirma H. Lévy-Bruhl, [[] - “La preuve judiciaire, étude de sociologie juridique”, M. Riviere, Paris, 1963, pág. 8, apud GIL, Fernando, “Provas”, INCM, Estudos Gerais, Série Universitária, 1979, pág. 36.] a prova é a alma da decisão, a recorrente tem que percorrer o caminho para a alma dessa decisão. E o tribunal de recurso tem que saber qual o caminho que o recorrente pretende percorrer. Não o fez.
Se o recurso é um remédio jurídico, aquilo que o recorrente pretende se faça é, não uma cura para uma doença, sim o puro e simples assassínio do “doente” (no seu entendimento), um “apagar” do que já ocorreu, porque desfavorável, com um reinício do julgamento, agora numa nova 1ª instância.
Em boa verdade, a posição do recorrente consubstancia-se na pretensão de ignorar o seu ónus de impugnação especificada, transformando-o num ónus, para o tribunal de recurso, de fazer um novo julgamento com apreciação da totalidade da prova produzida em 1ª instância.
Assim, nesta parte o recurso é manifestamente improcedente.
B.3.2 - Resulta do disposto no art. 431º, b), do Código de Processo Penal, que havendo documentação da prova, como no caso se verifica, a decisão do Tribunal de 1ª instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o que não ocorre na totalidade do caso em apreço.
Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 259/2002, de 18/6/2002, publicado no D.R. II Série, de 13/12/2002, «quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 4l2º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.»
A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.
Seguindo esta orientação, que se perfilha, o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 140/2004, de 10/3/2004, publicado no D. R. II Série, n.º 91 de 17/4/2004, veio uma vez mais proclamar que não é inconstitucional a norma do art. 412°, n.º 3, al. b) e n.º 4, do CPP quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
Não há, desta forma, que pensar em despacho de aperfeiçoamento nos termos do decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 140/2004, de 10/3/2004, publicado no D. R. II Série, n.º 91 de 17/4/2004.
Assim sendo, estando esta Relação impossibilitada de modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto nesses pontos, cumpre tão só aferir, nesta sede, da existência dos vícios das alíneas do n.º 2, do art. 410º, do CPP pois, a existirem podem determinar o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art. 426º, n.º 1, do citado diploma legal.
B.4 - Mas, em boa verdade, a explícita e clara fundamentação factual do tribunal recorrido não contém qualquer dos vícios a que se refere o artigo 410º do Código de Processo Penal.
Não é patente a existência de contradição entre factos ou entre estes e a decisão, nem a insuficiência da matéria de facto para a decisão.
E quanto ao conceito de “erro notório na apreciação da prova” (a implícita alegação do recorrente) como vício relevante em processo penal, é segundo a doutrina e jurisprudência mais generalizadas, o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.
O erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa.» (Ac. de 12.11.98, no BMJ 481-325).
«Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.» (Ac. STJ, de 9.12.98, BMJ 482 - 68).
Ora, o recorrente, sobre esta matéria apenas se insurge contra a apreciação que o tribunal recorrido fez das declarações das testemunhas arroladas.
Ora, estas razões revelam-se manifestamente insuficientes para inquinar a convicção do tribunal recorrido e afirmar a existência de erro notório na apreciação da prova.
A sentença recorrida, ao expressar a análise crítica da prova, contém suficiente fundamentação e não padece de qualquer erro notório na sua apreciação.
Porque, de facto, não há nada de ilógico, irracional, na apreciação feita pelo tribunal recorrido. Aquilo que desta ressalta é que o tribunal recorrido opta, de forma clara e expressa, por uma das duas possíveis posições a tomar na análise dos factos; dúvida ou não dúvida sobre a imputação dos fatos ao arguido, eis a questão.
Deles ressalta que ao tribunal recorrido se apresentaram duas versões opostas e contraditórias, cada uma delas ancorada em diversos meios probatórios de carácter subjectivante (declarações e depoimentos), impondo-se uma opção judicial em função da livre apreciação desses meios probatórios, com recurso à lógica e às regras de experiência comum.
Essa convicção judicial não é, no caso concreto, criticável em sede de erro de apreciação factual.
C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.C..
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
Évora, 13 de Janeiro de 2011
João Gomes de Sousa
António Alves Duarte
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[1] - Este acórdão foi sumariado pelo relator.
[2] - in “Comentário do Código de Processo Penal “, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pags. 1100-1101.
[3]-“La preuve judiciaire, étude de sociologie juridique”, M. Riviere, Paris, 1963, pág. 8, apud GIL, Fernando, “Provas”, INCM, Estudos Gerais, Série Universitária, 1979, pág. 36.