SERVIDÃO PREDIAL
SERVIDÃO DE ÁGUAS IMPURAS OU DE CLOACA OU DE LATRINA
Sumário


1- O artº 1569º do CC não prevê a extinção das servidões por outras causas que não as aí enumeradas, contexto em que não é defensável que as mesmas se extingam por força da lei, designadamente, do art 9º, nºs 1 e 2 do Dec-Lei nº 207/94, de 6 de Agosto, em conjugação com o do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (Dec.Lei nº 555/99. de 16 de Dez., com as alterações da Lei nº 60/2007).
2- Nos termos do artº 1544º do CC, podem ser objecto de servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas, por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor, assim apontando para a realidade de que não vigora, quanto às servidões, o princípio da tipicidade.
3- As servidões não podem constituir-se em violação de normas e princípios de ordem pública.
4- Uma servidão que se concretize na emissão para o logradouro de um prédio de habitação de águas residuais e de esgotos da casa de banho a partir de um prédio vizinho põe necessariamente em causa o direito a todos reconhecido pelo artº 65º nº 1 da Constituição da República a uma habitação em condições de higiene e de conforto.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:
L… propôs acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra M…, ambos melhor identificados nos autos, pedindo:
1- Que se declare que no prédio do R e a favor do prédio da A. se encontram constituídas duas servidões de aqueduto constituídas por destinação do pai de família.
2- Que se declare que o prédio do R. fica em nível inferior ao da A., sendo contíguo ao desta, e, por isso, tem que receber as águas que naturalmente escorrem daquele.
3- Que se declare que o R. não pode efectuar obras no seu prédio que estorvem ou possam estorvar as ditas servidões e aquele escoamento.
4- Que se declare que o R. deve eliminar, ou suportar os custos dessa eliminação, todas as obras que possa ter efectuado ou venha a efectuar e que possam por em causa o exercício pleno daquelas servidões e escoamento.
5- Que se condene o R. a pagar à A. uma indemnização mensal de €150,00 por cada mês que vier a decorrer entre o corte das servidões ocorrido na última semana de Agosto de 2008 e a sua reposição, indemnização essa destinada a compensar a A. pelo incómodos resultantes da sua privação.
Alega, resumidamente, que é dona do prédio urbano sito na Rua… que fora desanexado de um outro cuja parte subsistente veio a ser adquirida pelo Réu constituindo agora o prédio urbano sito na Rua…, que confina com o da A. pelo lado Poente, sendo que, por este ser inclinado no sentido nascente, por ele se têm de escoar as águas de lavagem, e pluviais e os esgotos, através de tubagem instalada no mesmo sentido, instalada há mais de 30 anos pelo antigo proprietário do prédio que deu origem aos agora da A e do R., tendo o R., na noite de de 26 para 27 de Agosto de 2008 cortado o tubo de saída das águas de lavagem da cozinha e dos esgotos da casa de banho e construído uma parede encostada à casa da A., vedando os referidos tubos, impedindo que ela e o seu companheiro utilizem a cozinha e a casa de banho quando certo é que a instalação exista à vista de todas pessoas que lá passaram, sem oposição de quem quer que fosse, de forma continua, sempre a A. tendo utilizado os escoamentos na convicção de que exercia um direito estando a sua falta a causar-lhe e ao seu companheiro aborrecimentos, arrelias e incómodos que prejudicam a sua saúde.
O R. contestou alegando resumidamente que as águas e esgotos do prédio da A. podem escoar noutro sentido que não seja o de nascente para poente, que o desnível entre os prédios é artificial e que com a sua criação mediante a colocação de cimento, existia um tubo que passava no logradouro do seu prédio e que se encontrava degradado e roto exalando maus cheiros e dejectos líquidos e sólidos, desconhecendo o tempo, características e condições em que foi instalado.
Concluiu pela improcedência da acção e deduziu reconvenção pedindo se decrete a extinção de eventuais servidões por incompatibilidade das mesmas com o disposto no RGEU, no regulamento de Águas Residuais e no C.Civil, bem como a ilegalidade do pedido de demolição das obras efectuadas pelo R.
A A. respondeu à matéria da reconvenção, concluindo pela respectiva improcedência.
Convidada a A. ao aperfeiçoamento da p.i. quanto aos invocados prejuízos e junto o respectivo articulado, foi proferido despacho saneador seguido da selecção da matéria de facto assente e controvertida com organização, quanto esta, da base instrutória.
Decorrida a fase de instrução, teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida a decisão de fls. 325-328 sobre a matéria de facto.
Por fim foi proferida a sentença julgando a acção improcedente e e absolvendo o R. de tudo o peticionado.
Inconformada, interpôs a presente recurso em cuja alegação formula as seguintes conclusões:
1ª – O escoamento de um para outro prédio de águas pluviais, das águas de lavagem da cozinha e dos esgotos da casa de banho, efectuado há mais de 30 anos, à vista e com conhecimento de todas as pessoas que lá passaram e viveram, sem oposição de quem quer que fosse, de forma contínua e na convicção do exercício de um direito, revela a existência de servidões.
2ª – Essas servidões, atendendo que os prédios foram anteriormente, do mesmo dono, que há sinais visíveis e permanentes em ambos os prédios que revelam serventia de um para o outro, que os prédios pertencem actualmente a diferentes donos e dos documentos de separação nada consta quanto a esses sinais, são servidões constituídas por destinação do pai de família.
3ª – O DL nº 207/94, de 5 de Agosto, o regime da Urbanização e Edificação e os Regulamentos Concelhios de Águas Residuais não contêm quaisquer disposições que obriguem à alteração dos sistemas prediais de drenagem das águas residuais que tornem ilegais aquelas servidões, referidas nas conclusões anteriores.
4º A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 2547º, nº 1, 1566º e 1569º do C. Civil.
O Réu contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Na decisão recorrida considerou-se assente a seguinte factualidade:
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Abrantes, sob o nº…, pela inscrição G1 – Ap. 25 de 23 de Agosto de 1994, a favor da A. L…, o prédio urbano sito na Rua…, composto de casa de rés-do-chão, destinada a habitação, com duas divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho, despensa e quintal, inscrito na respectiva matriz predial sob o artº…
2. No dia 25 de Maio de 1979, no Cartório Notarial de Abrantes, J… e mulher M… declararam vender à A. e marido A…, e estes declararam comprar, o prédio indicado em 1.
3. Tal prédio foi adjudicado à A. por escritura pública celebrada no dia 18 de Julho de 1994, no 11º Cartório Notarial de Lisboa.
4. No dia 21 de Maio de 2002, no Cartório Notarial de Constância, M… e mulher N…, R… e mulher L…, F… e marido J… e M…, esta com autorização do marido A…, declararam vender ao Réu M… e a A…, e estes declararam comprar, o prédio urbano sito na Rua…, composto de casa de rés-do-chão para habitação;
5. No dia 22 de Setembro de 2006, no Cartório Notarial de Constância, O Réu M… declarou comprar a A… e esta declarou vender, a metade indivisa pertencente à segunda no prédio indicado em 4.
6. O prédio identificado em 1 confina pelo lado poente com o prédio referido em 4.
7. O Réu cortou o tubo de saída das águas de lavagem da cozinha da A. e dos esgotos da casa de banho desta e construiu uma parede encostada à parede da casa da A.
8. O prédio é inclinado no sentido Nordeste –Sudoeste.
9. O prédio da A. possui casa de banho cozinha e quintal.
10. A tubagem de escoamento das águas e esgotos da casa da A. está instalada no sentido Nordeste Sudoeste há mais de 30 anos.
11. Tal tubagem foi colocada por J… quando era dono dos prédios indicados em 1 e 4.
12. J… colocou um tubo que recebia as águas do quintal, passava por baixo da cozinha e saia na parede do lado poente, onde hoje é o logradouro do prédio indicado em 4.
13. Aí essas águas pluviais escoavam-se e juntavam-se às águas pluviais do prédio indicado em 4 e escoavam para o prédio confinante do lado norte através de um buraco que ainda hoje existe na parede divisória.
14. J… abriu uma caixa, na sua casa, à saída da casa de banho, que recebia esgotos desta e as águas de lavagem da cozinha, os quais escoavam por um tubo que atravessava a parede de sua casa do lado poente, prosseguia pelo logradouro da casa que hoje é do Réu M…, saía na parede que o delimitava e derivava para a esquerda até à rua, para escoar na rede pública de esgotos.
15. As águas domésticas e os esgotos que saíam da casa indicada em 1 juntavam-se aos da casa que hoje é do Réu, numa caixa aberta no logradouro desta.
16. O tubo de saída da casa indicada em 1 desaguava na caixa e prosseguia pelo logradouro da casa referida em 4.
17. Estava colocado numa vala cimentada e era coberto com terra.
18. O corte do tubo referido em 7 ocorreu em finais de Agosto de 2008.
19. A parede referida em 7 vedou o tubo de saída das águas pluviais colocado por baixo da cozinha da casa da A.
20. E vedou o tubo de saída das águas de lavagem da cozinha e dos esgotos da casa de banho.
21. Tal impede que a A. utilize a cozinha e a casa de banho.
22. E pode provocar inundação da casa da A. se vier uma chuvada intensa.
23. Os escoamento referidos em 10, 12 a 17 estiveram sempre instalados à vista e com conhecimento de todas as pessoas que lá passaram ou viveram.
24. Sem oposição de quem quer que fosse.
25. De forma contínua.
26. A A. sempre utilizou esses escoamentos na convicção de que exercia um direito.
27. Devido ao referido em 21, a A. não pode tomar banho em casa, não pode usar a sanita e não pode confeccionar as suas refeições.
28. Necessita, por isso, de fazer as refeições fora de casa e de recorrer a casas de familiares para fazer a sua higiene e necessidades fisiológicas.
29. O referido em 28 tem causado aborrecimentos e arrelias à A., já que precisa de utilizar a casa de banho durante a noite.
30. A casa da A. confina com um beco adjacente à Rua da M…, o que possibilita ligação à Rua L….
31. Relativamente às águas domésticas, a A. pode estabelecer uma ligação à Rua L…, pelo lado nascente, através da aplicação de uma estação de elevação de águas sanitárias.
32. O tubo referido em 7 encontrava-se roto.
Vejamos então.
Perante a factualidade alegada e que foi dada como provada, logo evidente se tornava que não se estaria perante servidões de aqueduto, por isso que, nos termos do artº 1561º do Código Civil, estas se concretizam em o proprietário do prédio dominante, em proveio da agricultura ou industria, ou para gastos domésticos, poder encanar, subterraneamente ou a descoberto, as águas particulares a que tenha direito, através de prédios rústicos alheios, não sendo quintais, jardins, ou terrenos contíguos a casas de habitação, quando certo é que, no caso, do que se tratava não era de acesso de águas ao prédio dos AA., mas de expedição de águas residuais e de esgotos para o prédio, aliás, urbano e não rústico, do R.
E também se não estaria perante servidões de escoamento, no âmbito do artº 1563º nº 1 do mesmo diploma, na medida em que estas se referem a águas que, por obra do homem e para fins agrícolas ou industriais nasçam no prédio dominante ou para ele sejam conduzidas de outro prédio, a águas que seguiam o seu curso natural e a que se pretenda dar direcção definida, a águas provenientes de gaivagem, canos falsos, valas, guarda-matos, alcorcas ou qualquer outro modo de enxugo dos prédios ou às sobejas de águas públicas objecto de concessão.
Perante esta realidade, entendeu a douta sentença que se estaria perante duas servidões de águas impuras ou de cloaca ou latrina que saem do prédio da A. e passam pelo prédio do R. através de tubagem de escoamento, constituídas por destinação do pai de família, na medida em que se verificariam os requisitos exigidos pelo artº 1549º, quais sejam o terem os dois prédio pertencido ao mesmo dono, existirem sinais visíveis e permanentes inequivocamente reveladores de uma relação ou situação estável de serventia e separação dos dois prédios quanto ao seu domínio sem documento contendo declaração oposta à constituição do encargo.
Simplesmente, segundo a sentença, as mesmas não se poderiam manter atento, designadamente, o disposto, no art 9º, nºs 1 e 2 do Dec-Lei nº 207/94, de 6 de Agosto, em conjugação com o do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (Dec.Lei nº 555/99. de 16 de Dez , com as alterações da Lei nº 60/2007) e o Regulamento das Águas Residuais aprovado para o Município de Abrantes, na medida em que, nos termos daquele preceito, passou a ser obrigatório instalar em todos os prédios a construir, remodelar ou ampliar sistemas prediais de abastecimento de água e de drenagem de águas residuais, de acordo com as disposições do diploma, obrigatoriedade extensível aos prédios já existentes à data da instalação dos sistemas públicos, pese embora poderem ser aceites, em casos especiais, soluções simplificadas, sem prejuízo das condições mínimas de salubridade. Portanto, na perspectiva da sentença, as servidões ter-se ia extinto por força dos dispositivos constantes dos referidos diplomas.
Concordando-se que face ás prementes exigências de higiene e salubridade dos edifícios e de elevados parâmetros de qualidade ambiental se não concebe que tenha um o logradouro de um prédio destinado a habitação, como é o do R. que receber, ainda que através de canalização, as águas residuais e os esgotos, respectivamente da cozinhas e da casa da banho do prédio da A., também destinado ao mesmo fim, e de se sujeitar às consequências de eventuais rupturas, designadamente contaminação do solo, maus cheiros, etc. (recorde-se que, no caso em apreço, se deu como provado que o tubo de saída da das águas de lavagem da cozinha da A. e dos esgotos da casa de banho que o R. cortou na altura em que construiu a parede encostada á parede da casa da A., estava roto), entende-se que tal não resulta de se deverem considerar extintas servidões com base nas quais o proprietário do prédio alegadamente dominante se arroga o direito de exigir que nenhuns obstáculos se oponham á expedição dos efluentes para o prédio alegadamente serviente, mas, verdadeiramente, de nenhuma servidão se ter constituído.
Com efeito, a terem-se constituído, o artº 1569º não prevê a extinção das servidões por outras causas que não as aí enumeradas, contexto em que não é defensável que as mesmas se extingam por força da lei.
Mas já defensável se mostra que, apesar de, nos termos do artº 1544º, poderem ser objecto de servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas, por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor, assim apontando para a realidade de que não vigora, quanto às servidões, o princípio da tipicidade, não podem as mesmas constituir-se em violação de normas e princípios de ordem pública.
Na verdade, uma servidão que se concretize na emissão para o logradouro de um prédio de habitação de águas residuais e de esgotos da casa de banho a partir de um prédio vizinho põe necessariamente em causa o direito a todos reconhecido pelo artº 65º nº 1 da Constituição da República a uma habitação em condições de higiene e de conforto, o que é tanto mais injustificável quanto está demonstrado que, no presente caso, a A., embora através da aplicação de uma estação de elevação de águas sanitárias, pode usufruir de idêntico direito estabelecendo uma ligação à Rua L...
Aliás, já muito antes dos diplomas legais e regulamentares citados na douta sentença, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo decreto Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, impunha que a construção ou reconstrução de qualquer edifício se executasse por forma a ficarem assegurados o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada à acção directa dos raios solares e bem assim o seu abastecimento de água potável e a evacuação inofensiva de esgotos (artº 58º), a tomada de todas as disposições necessárias para rigorosa defesa da habitação contra emanação de esgotos susceptíveis de prejudicar a saúde e a comodidade dos ocupantes (artº 92º), e a ligação de toda a edificação existente ou a construir à rede pública de esgotos por um ou mais ramais, em regra privativos da edificação, que sirvam para evacuação dos seus esgotos (artº 94º, § único). Por fim admitindo o corpo do artº 95º que nos locais ainda não servidos de colector público acessível a esgotos sejam dirigidos para instalação cujos efluentes sejam suficientemente depurados, logo adverte no seu § único que tais instalações não poderão continuar a ser utilizadas logo que aos prédios respectivos for assegurado esgoto para o colector público.
Tudo, portanto, normas inderrogáveis pelos proprietários dos edifícios, por isso que protectoras de interesses de ordem pública que ao estado cumpre assegurar e defender, o que é de todo incompatível com a constituição de servidões cujo exercício as afastasse.
É o que também a propósito de situação similar, mas em que o título de constituição da servidão invocado era a usucapião, se extrai da seguinte passagem do Acórdão da Relação de Coimbra de 14.11.2006, in CJ, Ano XXXI, tomo V, pag. 18-21: “Se determinadas proibições legais em matéria de relações de vizinhança podem ser prescindidas pelos particulares, a pontos de se poderem converter, por usucapião, numa servidão em benefício do fruidor da utilidade consentida, tal não é o caso das proibições que contendem com um interesse considerado público, e com normas básicas do ordenamento jurídico”.
Por todo o exposto, sem necessidade de mais considerandos e embora por fundamentos não totalmente coincidentes, julgam a apelação improcedente e confirmam a decisão recorrida absolvendo o Réu de tudo o peticionado.
Custas pela Autora.
Évora 24.03.2011
João Gonçalves Marques
Eduardo José Caetano Tenazinha
António Manuel Ribeiro Cardoso