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ACUSAÇÃO PARTICULAR
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Sumário
«Não é manifestamente infundada, nos termos do artº 311º, nº 3, al. a) do CPP, a acusação onde o arguido esteja identificado pelo seu nome e, por remissão para o auto de denúncia, pela sua residência».
Texto Integral
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES QUE COMPÕEM A 2ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I. No processo que, com o nº 69/10.0GBVVC corre termos no Tribunal da comarca de Viça Viçosa, JM constituiu-se assistente e, no termo do inquérito, deduziu acusação particular, acompanhada pelo Ministério Público.
O Mº juiz, contudo, rejeitou a acusação particular, entendendo que a mesma é completamente omissa quanto à identificação do arguido.
Inconformado, o assistente recorreu pedindo a revogação dessa decisão e extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):
«1. Considerou o Mº juiz que a acusação apresentada pelo assistente é completamente omissa quanto à identificação do arguido.
2. A identificação do arguido surge desde logo, não no cabeçalho da peça, mas sim na parte da peça em que é individualizado o tipo legal de crime “Difamação” de que o arguido é acusado.
3. O arguido JG está devidamente identificado contemplando-se apenas e tão-somente o arguido JG, uma vez que foi este e só este que foi constituído arguido nos autos de que ora se recorre.
4. O Assistente, na sua peça processual de acusação particular identificou o referido arguido JG como arguido e destinatário da acusação.
5. O Ministério Público recebeu e acompanhou a acusação do Assistente.
6. Não se conforma o assistente com o douto despacho que vem rejeitar a acusação particular uma vez que só por mero lapso poderá o juiz do tribunal a quo considerar a acusação particular manifestamente infundada.
7. O meritíssimo juiz a quo ao rejeitar a acusação particular por considerá-la, por força da alínea a) do nº 3 do artº 311º do CPP, manifestamente infundada, não interpreta correctamente o espírito e a letra da mesma norma.
8. De facto, a interpretação que tem sido seguida pela jurisprudência vai no sentido de apenas se rejeitar a acusação quando não há arguido, ou seja, a omissão completa da identificação do arguido, o que não sucede no caso em apreço.
9. O juiz do tribunal a quo ao proferir o despacho com base no art. 311°, deveria oficiosamente colmatar a deficiência, convidando o assistente a completar a identificação, ou remetia o processo para julgamento.
10. Pugna o assistente pela revogação do despacho recorrido e pela substituição do mesmo por outro despacho que ordene o recebimento da acusação,
11. Ou por um despacho que venha convidar o assistente a suprir a suposta deficiência».
Respondeu o Ministério Público, pugnando pela procedência do recurso e extraindo da sua resposta as seguintes conclusões (igualmente transcritas):
«1. Nos presentes autos, por despacho datado de 25-03-2011, o Meritíssimo Juiz do tribunal a "quo" considerou que a acusação apresentada pelo assistente é completamente omissa quanto à identificação do arguido.
2. Acontece que analisada a acusação oferecida pelo assistente, constata-se que o nome do arguido, JG, surge na parte da referida peça processual, em que é especificado o tipo legal de crime "Difamação" de que o arguido é acusado.
3. Nos termos do artigo 283.°, n.º 3, al. a) ex vi artigo 285.°, n.º 3 C.P.P., aplicável à acusação particular, a acusação deve conter “as indicações tendentes à identificação do arguido”.
4. Não impondo a lei que o arguido seja nomeado, ou seja, que seja identificado por elementos específicos, será suficiente a indicação feita in casu.
5. As indicações tendentes à identificação do arguido visam evitar que haja dúvidas sobre quem é a pessoa acusada e vai ser submetida a julgamento, é um problema de identidade da pessoa a julgar, mas também da pessoa que se vai defender, por lhe ser imputada uma acção delituosa, e visa exactamente possibilitar a essa pessoa - a acusada - de se defender - incluindo não ser ela a autora dos factos, pondo desde logo em causa a sua qualidade material de arguida.
6. Entende o Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III vol., Verbo, 3° ed. 2009, pág. 205 que: "O artigo 311.º parece ter querido transformar a nulidade sanável do art.º 283.º, n.º 3 al. a) em nulidade de conhecimento oficioso. Parece-nos porém, que se deve entender ser apenas caso de acusação manifestamente infundada a falta de arguido e não apenas a deficiência da sua identificação na acusação, quando suprível com outros elementos constantes do processo, salvo se arguida a nulidade."
7. Diversamente do que ocorre com a acusação que se refere aos “elementos tendentes à identificação do arguido”, o artigo 311.°, n.º 3, al. a) do C.P.P. é mais preciso “não contenha a identificação do arguido”.
8. Tem se admitido que basta para preencher esse conceito normativo de identificação do arguido, não apenas a identificação completa do arguido, mas também a indicação do seu nome e remetendo a restante identificação para documentos dos autos, ou referenciando algum documento oficial, e que a acusação apenas deverá ser submetida à sanção da rejeição quando essa (é) totalmente omissa quanto à identificação do arguido.
9. Como se pode comprovar pela decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/9/2001: “O art.º 311.º n.º 3, al. a) CPP deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que só a total omissão da identificação do arguido é causa de rejeição da acusação (…) bastará a indicação do nome, seguida de remissão para o local dos autos onde essa identificação esteja completa" não sendo causa de rejeição da acusação a não indicação nesta dos elementos de identificação previstos nos artigos 141.º n.º 3 ou 342.º CPP”.
10. A Jurisprudência tem assumido que "a acusação não pode ser rejeitada com o fundamento de que não contém a identificação do arguido, se nela se indica o nome", in Ac. R.P. de 15.10.2007; “a identificação da arguida pelo seu nome e complementada pelos «sinais dos autos» que essencialmente vêm referidos na acusação do MP, permite considerar minimamente satisfeita a exigência constante da al. a) do n.º 3 do art. 2830 do CPP, não devendo por isso ser rejeitada a acusação particular”, in Acórdão da Relação do Porto, de 02.04.2008; “é lícita a identificação do arguido na acusação, por remissão para auto constante do processo. Só a total omissão da identificação do arguido é causa de rejeição da acusação”, in Acórdão da Relação de Lisboa, de 07.03.2001.
11. É constante e claro o entendimento jurisprudencial e doutrinário sobre esta questão e que nos presentes autos a acusação particular e o documento em que a mesma se insere não são omissos totalmente na indicação de qualquer elemento relativo à identificação do arguido.
12. Não se verificando a omissão total de qualquer elemento de identificação do arguido na acusação, não deve a mesma ser rejeitada por manifestamente infundada».
Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, aderindo à posição expressa pelo MºPº em 1ª instância. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve resposta.
II. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.
Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se a simples menção, na acusação, do nome do arguido equivale à sua não identificação e à consideração daquela peça como manifestamente infundada.
Assim decidiu a Mª juíza a quo no despacho recorrido:
«Autue como processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular.
O Tribunal é competente.
Dispõe o artigo 311.º do Código de Processo Penal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
Considera-se manifestamente infundada a acusação quando esta não contenha a identificação do arguido; a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou se os factos não constituem crime (n.º 3 da aludida disposição legal).
Dispõe o artigo 283.º. n.º 3, do Código de Processo Penal que a acusação contém, sob pena de nulidade, "a) as indicações tendentes à identificação do arguido. b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada".
No caso sub judice, e compulsada a acusação particular, de fls. 71 a 74, deduzida pelo assistente JM, acompanhada pelo Ministério Publico (cfr. fls. 75), constata-se que não consta a identificação do arguido, existindo uma omissão completa da sua identificação.
O que a lei pretende é uma identificação que permita ter por garantido que a pessoa é acusada precisamente aquela que o devia ser e não uma qualquer outra (neste sentido, entre muitos outros, Acórdãos do TRL, de 16/3/2006, de 10/11/2005, e de 20/12/2001, do TRC, de 3/12/2003, do TRP de 8/6/2005, todos in www.dgsi.pt).
Pelo que, a acusação particular de fls. 71 a 74, ao ser completamente omissa quanto à identificação do arguido, não pode ser recebida, por ser manifestamente infundada.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 311º. nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, rejeito a acusação deduzida pelo assistente JM, a fls. 71 a 74, por a mesma ser manifestamente infundada.
Custas a cargo do assistente, fixando a taxa de justiça em 1 UC (…)».
III. Apreciando:
Nos termos do disposto no artº 283º, nº 3 do CPP (aplicável à acusação particular deduzida pelo assistente, por força do estatuído no artº 284º, nº 2 do mesmo diploma legal), a acusação contém, entre o mais e sob pena de nulidade, (a)) as indicações tendentes à identificação do arguido, (b)) a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena, (c)) a indicação das disposições legais aplicáveis, (d)) o rol de testemunhas.
A boa técnica mandaria que tais indicações constassem pela ordem por que vêm descritas no preceito legal referido. Assim e desde logo, a identificação do arguido deveria ser o primeiro elemento constante da acusação.
Assim não sucede na acusação particular dos autos: o assistente deduziu acusação particular, “o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes”, descrevendo de imediato os factos pretensamente justificativos da aplicação de uma pena. Formula, de seguida, as suas conclusões de direito (indicando as normas legais aplicáveis) e termina desta forma: “Nestes termos e nos mais de direito acusa-se o arguido: JG, profissão desconhecida, residência desconhecida. 1. Como autor material na forma consumada, pela prática do crime de Difamação p.p. nos termos do artº 180º, nº 1”. Por fim, indica a prova testemunhal.
Na descrição da factualidade apontada ao arguido, o assistente refere-se-lhe sempre como “o denunciado”. No auto de denúncia dos autos (fls. 4) o denunciado é identificado como “JG, residente em Terreiro do Paço, Vila Viçosa”.
Posto isto:
Deve ser rejeitada a acusação manifestamente infundada, considerando-se como tal “quando não contenha a identificação do arguido” – artº 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. a) do CPP.
Uma interpretação sistemática do preceito, efectuada na devida conjugação com a estatuição decorrente do artº 283º, nº 3, al. a) do CPP, impõe que se conclua que a acusação que não contém a identificação do arguido é aquela que não contém as indicações tendentes à sua identificação.
No caso dos autos, o arguido está identificado pelo seu nome e, por remissão para o auto de denúncia, pela sua residência.
Assim, dizer (como o faz a Mª juíza a quo) que a acusação dos autos é “completamente omissa quanto à identificação do arguido” só pode derivar de mero lapso.
Da acusação particular consta expressamente o nome do arguido. Pela remissão para o auto de denúncia, retira-se a sua residência. Não constituindo, naturalmente, a identificação completa do arguido (que prestou TIR nos autos – fls. 48 – e se mostra completamente identificado no auto do seu interrogatório – fls. 50), os elementos fornecidos traduzem-se em indicações suficientes, tendentes à sua identificação, sem margem para dúvidas. Não existe, assim, fundamento para a rejeição da acusação, porquanto a mesma se não mostra manifestamente infundada.
A questão ora em apreço foi já objecto de intensa abordagem jurisprudencial, num sentido que nos parece unívoco e coincidente com o aqui defendido. É que, como se afirma no Ac. RP de 20/12/2006 (rel. Joaquim Gomes), www.dgsi.pt., “- a razão de ser da exigência legal sobre a identificação o mais completa possível do arguido, prende-se com as garantias constitucionais dos seus direitos de defesa, de modo a não deixar dúvidas sobre a pessoa concreta que está a ser acusada e poderá vir ser sujeita a julgamento;
- a indicação apenas do seu nome corresponde a uma mera irregularidade, que deve considerar-se sanada se não for invocada por quem tem legitimidade para isso e no momento próprio, nos termos previstos no art. 123.º;
- a acusação só será manifestamente infundada, para efeitos de rejeição, por omissão total da identificação do arguido, ou seja, quando nem sequer o seu nome é mencionado, gerando a nulidade do respectivo libelo;
- a rejeição nos casos em que falta a identificação completa do arguido, mas onde consta o seu nome, criaria um desproporcionado obstáculo ao direito de acesso ao direito, contemplado no art. 20.º, n.º 1 da C. Rep.”; no mesmo sentido, cfr. entre outros e a título meramente exemplificativo os Acs. RP de 29/11/2006 (rel. Guerra Banha), 15/10/2007 (rel. Élia São Pedro) e 23/3/2001 (rel. José Carreto), da RC de 3/12/2003 (rel. Jorge Dias) e 14/6/2006 (rel. Luís Ramos) e da RL de 27/5/2009 (rel. Pedro Mourão), todos in www.dgsi.pt..
IV. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e ordenando a sua substituição por outra, que, caso não exista nenhum outro motivo, receba a acusação particular deduzida pela assistente e o acompanhamento daquela pelo M. P.
Não é devida tributação.
Évora, 11 de Outubro de 2011 (processado e revisto pelo relato
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Sénio Manuel dos Reis Alves
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Fernando Ribeiro Cardoso