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ENFITEUSE
FORO
CONTRATO VERBAL
USUCAPIÃO
Sumário
O Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de Março aboliu a enfiteuse, reunindo no enfiteuta ambos os domínios, o útil e o directo, ou seja, a propriedade plena. Para a aquisição da propriedade por força da entrada em vigor daquele Decreto-Lei, é necessário que exista uma relação de enfiteuse, sendo o adquirente o titular do domínio útil
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
Proc. N.º 129/07.4TBSTC
Apelação 1ª Espécie
Tribunal Judicial de Santiago do Cacém (extinto 1º Juízo)
Recorrente: (…)
Recorrida: “(…) – Investimento Imobiliário, Lda.”
R80.2011
I. (…) intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra “(…) – Investimentos Imobiliários, Lda.”, pedindo:
a) que se julgue constituída a favor da Autora, por usucapião do seu domínio útil, a enfiteuse sob a parcela de terreno situada no (…), (…), com a área de 957 metros quadrados, confrontando a Norte e Sul com (…), Nascente com Estrada camarária e Poente com (…), a desanexar do prédio misto denominado “(…)”, sito no (…), (…), inscrito na matriz predial da freguesia do (…), concelho de (…), sob o artigo 36, secção S, descrito na Conservatória do registo Predial deste concelho sob o nº. (…);
b) que se reconheça que a Autora é proprietária da referida parcela de terreno, por força da entrada em vigor do Dec.Lei 195-A/76, de 16 de Março, condenando-se a Ré a reconhecer tal aquisição.
Alegou para o efeito, em síntese, que desde 1951 (…) tomou de aforamento aos proprietários do (…), prédio que actualmente é propriedade da Ré, a referida parcela de terreno, passando a explorá-la como único titular do seu domínio útil, cultivando-a e dela retirando os respectivos frutos, o que fez ininterruptamente, sem oposição e à vista de toda a gente até à data da sua morte.
Mais alega que na referida parcela (…) edificou uma habitação, sendo que as benfeitorias por aquele introduzidas na parcela implicam um aumento de valor de pelo menos cinquenta vezes superior ao seu valor no estado de inculta.
(…) sempre pagou o foro aos anteriores proprietários do (…), que sempre o reconheceram como enfiteuta, sendo que os sucessivos proprietários do (…) até à Ré nunca praticaram qualquer acto susceptível de por em causa posse daquele.
(…) faleceu em 07 de Junho de 2006, instituindo a Autora como única e universal herdeira.
A Ré contestou, impugnando no essencial os factos alegados pela Autora.
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, em que se decidiu:
“Nestes termos, julgo improcedente por não provada a presente acção intentada por (…) e, em consequência, absolvo a Ré ‘(…) – Investimento Imobiliário, Lda.’ do pedido.”
Inconformada, veio a A. interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
“I - O presente recurso de apelação é interposto da sentença do Juízo de Grande Instância Cível (Juiz 1) do Tribunal da Comarca do Alentejo Litoral, nos termos da qual a acção intentada pela ora recorrente foi julgada totalmente improcedente, pois as matérias de facto e de Direito não foram correctamente julgadas, quer em face da prova produzida e gravada em sede de audiência de discussão e julgamento, quer em face dos documentos juntos aos autos e dos factos confessados pela recorrida;
II – Assim e no que à matéria de facto respeita, o presente recurso tem como objecto, designadamente, a reapreciação da prova gravada;
III - A ora recorrente peticiona, em suma, que se julgue constituída a seu favor, na qualidade de única e universal herdeira de (…) e por usucapião do domínio útil, a enfiteuse sobre a parcela de terreno com a área de 957 m2 situada em (…), (…), concelho de (…), melhor identificada nos autos, peticionando em consequência que se reconheça que é a proprietária de tal parcela de terreno por força da entrada em vigor do Decreto-Lei 195-A/76 de 16 de Março e que a recorrida seja condenada a reconhecer tal aquisição;
IV - O Tribunal a quo foi, erradamente, muito além daquilo que as próprias partes alegaram, pois ambas reconheceram expressamente a existência de uma relação jurídica de enfiteuse, discutindo qual a extensão do respectivo objecto – se a parcela de terreno com a área de 957 m2 ou a casa e pequeno logradouro daquela integrante – sendo que o Tribunal recorrido deu como não demonstrada a existência da própria relação jurídica de enfiteuse, contrariamente ao alegado pelas partes;
V - A enfiteuse era definida pelo artigo 1491.º, n.º 1 do Código Civil como «o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil.», podendo constituir-se por contrato, testamento ou usucapião – cfr. artigo 1497.º do Código Civil então em vigor;
VI - O Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de Março aboliu a enfiteuse, reunindo no enfiteuta ambos os domínios, o útil e o directo, ou seja, a propriedade plena; Para a aquisição da propriedade por força da entrada em vigor do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de Março, é necessário que exista uma relação de enfiteuse, sendo o adquirente o titular do domínio útil;
VII - De acordo com o estabelecido no n.º 5, do artigo 1.º, do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de Março, após as alterações introduzidas pela Lei 22/87, de 24 de Junho e pela Lei 108/97, de 16 de Setembro, «considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se:
a) desde, pelo menos, 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio;
b) tiverem sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores no prédio ou sua parcela benfeitorias, mesmo que depois de 16 de Março de 1976, de valor igual ou superior a, pelo menos, metade do valor do prédio ou da parcela, considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para urbanização ou outros fins não agrícolas.»;
VIII - O que está em causa nos presentes autos é saber se existiu uma relação jurídica de enfiteuse, sendo que, em caso positivo, a aquisição da propriedade sobre o prédio rústico objecto dos autos dá-se ope legis, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de Março;
IX – Os factos constantes de 1º da base instrutória (correspondente ao acima indicado em F)), 3º da base instrutória (correspondente ao acima indicado em H)) e 13º da base instrutória (correspondente ao acima indicado em O)) foram incorrectamente julgados, em face da prova testemunhal e documental produzida nos autos;
X – Constando da base instrutória dois factos – o 1º e o 18º, que se dão por reproduzidos - alegados pela recorrente e pela recorrida, respectivamente, o objecto da prova em sede de audiência de discussão e julgamento é saber se o aforamento tomado por (…) aos antecessores de (…) tinha como objecto a parcela de terreno com a área de 957 metros quadrados, caso em que confrontaria do Nascente com a Estrada Camarária, ou se, pelo contrário e na tese da Ré, tal aforamento tomado por (…) aos antecessores de (…) tinha como objecto apenas uma casa e pequeno logradouro;
XI - A existência de um aforamento não é matéria controvertida nos presentes autos, pois foi matéria aceite por ambas as partes, pelo que não pode o Tribunal recorrido desconsiderar tal facto e julgá-lo como não provado;
XII - Toda a prova produzida nos autos evidencia que existia uma relação jurídica de enfiteuse verdadeira e própria;
XIII – Ao contrário do constante da decisão recorrida, a palavra “foro” não foi utilizada pelas testemunhas como sinónimo de parcela de terreno;
XIV – Resulta dos depoimentos das diversas testemunhas que todas elas sabiam que a relação jurídica existente configurava uma enfiteuse e foi tal facto que transmitiram ao Tribunal; a própria testemunha (…), que já foi proprietária do prédio rústico de onde é a desanexar a parcela da recorrente, reconheceu tratar-se de uma relação jurídica de enfiteuse;
XV – Para além da prova testemunhal, o julgamento do Tribunal recorrido não teve em conta documentos constantes dos autos e que provam cabalmente a existência de uma relação jurídica de enfiteuse, em especial os recibos de foro juntos;
XVI – De tais recibos decorre igualmente que a palavra “foro” não é sinónimo de “pedaço de terra”, como pretende a sentença recorrida que seja interpretada;
XVII - Em face do exposto, mesmo que se entendesse não dever considerar-se admitida por acordo a existência de uma relação jurídica de enfiteuse, toda a prova produzida nos autos foi nesse sentido, pelo que o facto 1º foi incorrectamente julgado, devendo a decisão da matéria de facto ser alterada, em conformidade, ou seja, julgando-se o facto 1º da base instrutória como provado nos seguintes termos: “Desde pelo menos 1951 (…) tomou de aforamento aos antecessores de (…) uma parcela de terreno com a área de 957 metros quadrados, integrada no prédio denominado “(…)”, confrontando a nascente com Estrada Camarária.”;
XVIII – Pelos mesmos motivos e em consequência do que se vem dizendo, o facto constante de 3º da base instrutória foi incorrectamente julgado, porquanto é evidente e está demonstrado que a exploração que (…) passou a fazer da parcela de terreno em causa aconteceu na qualidade de titular do domínio útil, atenda a relação jurídica de enfiteuse existente;
XIX - Optando pela junção dos quesitos 3º e 4º da base instrutória como o fez o Tribunal recorrido, deve ser considerado como provado que “Desde pelo menos 1951, (…) passou a explorar a referida parcela de terreno como titular do seu domínio útil, com exclusão de outrem, cultivando-a e dela retirando os respectivos frutos e utilidades.”;
XX - Sendo característica da enfiteuse a existência do domínio directo e do domínio útil em pessoas diferentes e sendo a contraprestação do domínio útil o pagamento do foro, encontrando-se demonstrado que (…) pagava o referido foro está demonstrado que este era, na relação enfitêutica em causa, o titular do domínio útil;
XXI – O facto 13º da base instrutória foi também incorrectamente julgado, em consequência, pelo que deverá julgar-se como provado que “Os anteriores proprietários do (…) – (…), (…) e mulher (…) – sempre reconheceram o (…) como enfiteuta da dita parcela de terreno”;
XXII – Nos presentes autos em nada releva a presunção registral de propriedade resultante do artigo 7.º do Código do Registo Predial, pois a aquisição da propriedade por parte do enfiteuta opera ope legis;
XXIII - Tal matéria poderia ter relevância se o que estivesse em causa fosse a aquisição da propriedade por usucapião, o que não acontece, sendo que mesmo nesta hipótese o registo a favor da Ré em nada em nada altera o direito da Autora, pois a presunção registral não existe quanto à área do prédio e respectivas confrontações, mas tão só quanto à titularidade do mesmo; acresce que o prédio rústico da Ré, por virtude da procedência da presente acção, em nada se modifica quanto à titularidade, sendo que a desanexação da parcela da Autora não implica alteração à inscrição a favor da Ré, pelo que novamente não é aplicável a presunção derivada do registo;
XXIV – A recorrente não carece de alegar a perpetuidade como característica da enfiteuse, ao contrário do entendimento vertido na decisão recorrida, pois ao alegar que (…) tomou de aforamento a parcela de terreno objecto dos autos, está obviamente a referir-se ao estabelecimento de uma relação jurídica de enfiteuse, com todas as características desta;
XXV - A recorrente apenas teria que alegar a perpetuidade tendencial do aforamento caso a Ré tivesse vindo a colocar em crise tal perpetuidade, o que não aconteceu;
XXVI - O Decreto-Lei 195-A/76 de 16 de Março refere-se única e explicitamente à extinção da enfiteuse, sendo que o legislador não pretendeu extinguir quaisquer outras relações jurídicas, designadamente os arrendamentos sobre pequenas propriedades!!! Tal não consta de qualquer preâmbulo ou letra da lei, muito mesmo do respectivo espírito.
XXVII – Uma vez que nos presentes autos existe uma relação jurídica de enfiteuse, confessada aliás pela própria Ré, ope legis a recorrente tem direito a ver reconhecido o seu direito de propriedade, como peticionou;
XXVIII - Mesmo que assim não se considerasse, a recorrente invocou a aquisição da sua qualidade de enfiteuta (titular do domínio útil) por usucapião, logo, ou a recorrente preenche os requisitos para beneficiar da presunção de usucapião do domínio útil, ou terá que provar a enfiteuse e a posse na qualidade de enfiteuta, nos termos normais da usucapião;
XXIX – A sentença recorrida, pelo contrário, misturou os conceitos e não distinguiu o instituto da enfiteuse da presunção de usucapião do domínio útil, erradamente;
XXX - Os requisitos previstos no nº 5, alíneas a) e b) do art. 1º da Lei 108/97 de 16/09 não são requisitos para o reconhecimento do domínio útil por usucapião, mas sim para que o titular do domínio útil beneficie de uma presunção de tal titularidade por usucapião;
XXXI – Inexistindo os indícios que importam a presunção de usucapião, tal não exclui que se possa invocar a usucapião do domínio útil nos termos normais, como fez a recorrente;
XXXII - A ora recorrente demonstrou todos os factos necessários a que seja reconhecida a existência do domínio útil por usucapião, retrotraindo-se os efeitos da aquisição do domínio útil por usucapião a 1951, o que está provado;
XXXIII - A matéria de Direito, à semelhança dos pontos referidos da matéria de facto, foi incorrectamente julgada, pois a Autora demonstrou a existência de uma relação jurídica de enfiteuse, provou ainda todos os factos necessários à aquisição da titularidade do domínio útil por usucapião, pelo que ope legis, por força da entrada em vigor do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de Março, deve ser julgada proprietária da parcela de terreno objecto dos autos;
XXXIV - Deve ser revogada a sentença recorrida, substituindo-se por outra que, reconhecendo razão à recorrente no acima exposto, decida conforme peticionado por esta, pois, ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou, designadamente, o disposto no Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de Março, após as alterações introduzidas pela Lei 22/87, de 24 de Junho e pela Lei 108/97, de 16 de Setembro.
Nestes termos e pelo mais que for suprido por Vossas Excelências,
Deve dar-se provimento ao presente recurso de apelação e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida proferida, a qual deve ser substituída por outra que julgue o pedido da Autora procedente, por provado, seguindo-se os demais termos até final. …”
Cumpre decidir.
***
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
- Que vinha considerada assente:
A) A Ré é a titular inscrita do prédio misto denominado “(…)”, sito no (…), (…), inscrito na matriz predial rústica da freguesia do (…), concelho de (…), sob o artigo 36, secção S e descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) sob o nº. (…) da mesma freguesia.
B) O imóvel em causa foi adquirido pela Ré à “(…), Lda.”, a qual o havia adquirido a (…) e mulher, (…).
C) A referida parcela de terreno é parte integrante do prédio identificado em A).
D) Em 03/02/2002, (…) fez testamento público, lavrado no Cartório Notarial de (…), exarado a fls. 35vº e seguintes do livro de notas para testamentos públicos nº. 78, pelo qual instituiu sua única e universal herdeira (…).
E) Por escritura pública outorgada em 25/06/2007, no Cartório Notarial de (…), exarada de fls. 55 a fls. 55vº do livro de notas para escrituras diversas nº.16, (…) foi habilitada como única e universal herdeira de (…), falecido em 07/06/2006, com última residência habitual no (…), (…), no estado de viúvo de (…).
- Que resultaram da resposta à Base Instrutória:
F) Desde 1951, (…), por acordo com os antecessores de (…), passou a explorar uma parcela de terreno com a área de € 957 m2, integrada no prédio denominado “(…)”, confrontando a nascente com Estrada Camarária, que denominavam de “foro”.
G) Mediante o pagamento anual de 30 litros de trigo, passando aqueles o respectivo recibo em 15 de Agosto de cada ano.
H) Desde 1951, (…) passou a explorar, com exclusão de outrem, a referida parcela de terreno, cultivando-a e dela retirando os respectivos frutos e utilidades.
I) Na convicção de para si ter sido transferido o direito a explorar a referida parcela.
J) Tudo fazendo sem interrupção.
K) Na presença de toda a gente.
L) Sem qualquer oposição.
M) No convencimento de não ofender direitos de terceiros, mas de exercer um direito próprio.
N) Plantou na parcela de terreno diversas culturas.
O) Os anteriores proprietários do “(…)” – (…), (…) e mulher (…) – sempre reconheceram o direito de (…) a explorar a referida parcela com exclusão de outrem.
P) A “(…), Lda.” nunca praticou qualquer acto susceptível de pôr em causa a ocupação e actuação de (…) relativas à parcela de terreno.
Q) O qual continuou a ocupar e a explorar a parcela de terreno, como sempre o fez desde 1951, até ao seu falecimento.
R) A letra e assinatura constantes do documento de fls. 9, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, são de (…).
S) Actualmente não existe na parcela qualquer cultura, existindo apenas uma árvore de fruto.
T) A letra e assinatura constantes do documento de fls. 38, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, são de (…).
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III. Nos termos do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660º do mesmo Código.
As questões a decidir resumem-se, pois, a saber:
a) Se a matéria de facto deve ser alterada em conformidade com a pretensão da Apelante;
b) Se, em face da matéria de facto assente, se pode retirar que sobre o prédio em apreço foi constituída uma enfiteuse a favor (…);
c) Qual a solução a dar ao pleito.
Pretende a Apelante que se altere a matéria de facto, no que respeita às respostas aos quesitos 1º, 3º e 13º.
Perguntava-se no quesito 1º se “Desde 1951, (…) tomou de aforamento aos antecessores de (…) uma parcela de terreno com a área de 957 metros quadrados, confrontando a Norte e Sul com (…), Nascente com Estrada Camarária e Poente com (…)?”
Ao que o Tribunal “a quo” respondeu “Desde 1951, (…), por acordo com os antecessores de (…), passou a explorar uma parcela de terreno com a área de € 957 m2, integrada no prédio denominado “(…)”, confrontando a nascente com Estrada Camarária, que denominavam de “foro”.
Invocando a prova testemunhal produzida e os recibos juntos autos, pretende a A. que dê como provado que ““Desde pelo menos 1951 (…) tomou de aforamento aos antecessores de (…) uma parcela de terreno com a área de 957 metros quadrados, integrada no prédio denominado “(…)”, confrontando a nascente com Estrada Camarária.”
Perguntava-se no quesito 3º se “Desde 1951, (…) passou a explorar, a referida parcela de terreno como único titular do seu domínio útil, cultivando-a e dela retirando os respectivos frutos” e no quesito 4º “Desta parcela de terreno passou (…) a retirar as respectiva utilidades.
Respondeu o Tribunal “a quo” conjuntamente aos quesitos 3º e 4º, nos seguintes termos: Desde 1951, (…) passou a explorar, com exclusão de outrem, a referida parcela de terreno, cultivando-a e dela retirando os respectivos frutos e utilidades.
Pretende a A., com base na mesma prova, que se dê como provado que “Desde pelo menos 1951, (…) passou a explorar a referida parcela de terreno como titular do seu domínio útil, com exclusão de outrem, cultivando-a e dela retirando os respectivos frutos e utilidades.”
Perguntava-se no quesito 13º se “Os anteriores proprietários do “(…)” – (…), (…) e mulher (…) – sempre reconheceram o (…) como enfiteuta da dita parcela de terreno”.
Ao que o Tribunal “a quo” respondeu: Os anteriores proprietários do “(…)” – (…), (…) e mulher (…) – sempre reconheceram o direito de (…) a explorar a referida parcela com exclusão de outrem.
Pretende a A., com base na mesma prova, que se dê como provado o quesito.
Das respostas aos quesitos, verifica-se que o Sr. Juiz “a quo” tentou eliminar as expressões que por si definem o direito em causa, reduzindo-as aos factos que entendeu dar como provados.
Convenhamos que o Instituto da Enfiteuse, pelas suas especiais peculiaridades, torna a elaboração dos quesitos, e resposta aos mesmos, de particular dificuldade, se se quiser ser rigoroso e não incluir nos mesmos matéria de direito.
No entanto, quando as expressões jurídicas são usadas na linguagem comum, definindo uma determinada situação de facto, afigura-se-nos que podem ser usadas no questionário, embora com particular cuidado e sempre dentro de um contexto fáctico.
Entre elas, estão as palavras foreiro e foro, que são usadas comummente, a primeira para designar aquele que paga uma determinada quantia ao senhorio pelo domínio útil, a segunda a pensão paga em dinheiro ou géneros por tal domínio.
Dito isto, apreciemos da bondade da pretensão da A..
No que respeita ao quesito 1º, como se pode ver da prova testemunhal produzida, que em parte está vertida nas alegações de recurso da Apelante, as testemunhas associaram a palavra foro, não à pensão paga, mas ao domínio útil sobre o prédio, (mesmo a testemunha …, que mostra saber a distinção entre as figuras, acabou por dizer que o Sr. … tomou como foro) o que não é de estranhar, pois uma das denominações da enfiteuse é aforamento e depressa se chega, na linguagem popular de “dar de aforamento” a “aforar” e desta a “foro”.
Aliás a linguagem popular não faz mais do que jus à expressão “o foro he da substancia, e essencia do Emphyteuze” (Manoel de Almeida Sousa (Lobão), Tractado Pratico, e Critico de todo o Direito Emphyteutico, Lisboa, 1814,, pág. 74).
Daí que se nos afigure que, evitando as expressões que definem o direito, o Sr. Juiz “a quo” verteu na resposta ao quesito a expressão popular que denominava o terreno, enquanto materialização de um direito de domínio útil.
Mantém-se assim a resposta ao quesito 1º.
No que respeita aos quesitos 3º e 13º, atento o princípio que nas respostas aos quesitos não se devem conter termos de direito, em particular se são atinentes à relação jurídica em apreciação, concordamos com as respostas a estes quesitos, porque expurgaram a resposta da matéria de direito contida nos quesitos.
Fixada a matéria de facto, cumpre agora subsumir os factos ao direito, definindo se sobre o prédio em apreço foi constituída uma enfiteuse a favor (…).
O Instituto da enfiteuse, foi criado pelo direito romano e acolhido nas diversas legislações que tiveram por fonte tal direito, mormente na legislação portuguesa.
Desde os primórdios da Nação aquele Instituto veio a ser consagrado na legislação portuguesa, através da criação dos Prazos (vide sobre a origem do Direito Enfitêutico em Portugal, Manoel de Almeida Sousa (Lobão), Tractado Pratico, e Critico de todo o Direito Emphyteutico, Lisboa, 1814, no Cap. I, da Parte I).
Mantendo ao longo dos tempos a sua essência, na possibilidade do proprietário pleno do prédio, poder dispor dele e, “em consequência pode dividir este domínio, ficando com uma parte, e a mais plena, dimittindo a Terceiro a menos plena: Aqui tem fundamento o Direito Emphyteutico, em que o Senhorio de hum predio, ficando com o domínio mais pleno, chamado vulgarmente direito, cede ao Emphyteuta o domínio menos pleno, chamado util, impondo-lhe o onus da pensão” (Lobão, obra cit. pág. 4).
Pensão essa que “pode consistir ou I,. em dinheiro; ou 2. em quotas de todos os fructos que as terras produzirem, em geral, ou só em quotas de certas espécies delles; ou 3., em certa quantidade de trigo, centeyo, cevada, milho, linho, etc.; ou 4., em aves, caças, geiras, etc .” (Lobão, obra cit. pág. 44).
Sendo que no Instituto da Enfiteuse tal Pensão se denomina foro e “he da substancia, e essencia do Emphyteuze” (Lobão, obra cit. pág. 74).
Podendo-se constituir e enfiteuse, por contrato, testamento e por prescrição (Lobão, obra cit. pág. 9, 41 e 88).
No seguimento da tradição desse Instituto no direito português, veio o Código Civil de 1867, a consagrar o contrato de emprazamento, de aforamento ou enfiteuse, na secção I, do Capítulo XIII, definindo-o como o contrato em que “o proprietário de qualquer prédio transfere o seu domínio útil para outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe anualmente certa pensão determinada, a que se chama foro ou canon.” (art.º 1653º).
Devendo ser celebrado por escritura pública, só produzindo efeitos em relação a terceiro, sendo devidamente registado (art.º 1655º do Cód. Civ. de 1867), e sendo de natureza perpétua (art.º 1654º do Cód. Civ. de 1867).
Sendo permitida a transmissão do prazo aos herdeiros (art.º 1663º do Cód. Civ. de 1867) e a sua aquisição por prescrição (art.º 1686º do Cód. Civ. de 1867).
O Código Civil de 1966, na senda do que atrás dissemos, veio também a consagrar a figura da enfiteuse no seu Título IV.
Aprimorando as definições e os conceitos, veio o Cód. Civil de 1966, aderindo à tese clássica dos dois domínios, a consagrar que sendo a enfiteuse um direito real, por via da sua constituição o direito de propriedade sobre o prédio sujeito a enfiteuse (que se passa a denominar então de prazo) é desmembrado em dois domínios, um directo que fica pertença do senhorio e outro útil o do enfiteuta ou foreiro (art.º 1491º).
Mantendo a perpetuidade tendencial da enfiteuse (art.º 1492º), ficaram expressas no art.º 1497º as formas da sua constituição (contrato, testamento ou usucapião), mantendo a pensão devida ao senhorio a denominação de foro (art.ºs 1501º e 1502º).
No calor da mudança de regime, veio o legislador, entendendo que a enfiteuse consagrava sequelas do modo de produção feudal, a abolir a enfiteuse, por via do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, decretando, ope legis, a transferência do domínio directo dos prazos para o enfiteuta, o mesmo é dizer, atribuindo-lhe o direito de propriedade plena sobre o prédio.
Mas para que o prédio passasse para a esfera jurídica de quem invocasse a condição de foreiro, seria necessário, na falta de acordo, que ele provasse que tinha o domínio útil do prédio, que poderia ter adquirido por contrato, testamento ou usucapião.
Com o decorrer dos tempos, e tendo em vista a agilização da prova da condição de foreiro, veio o legislador a alterar o Decreto-Lei n.º 195-A/76, por via das Leis n.ºs 22/87, de 24/06 e 108/97, de 16/09.
Nos termos da primeira alteração, “Ao artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, são aditados novos números, com a seguinte redacção:
4 - No caso de não haver registo anterior nem contrato escrito, o registo de enfiteuse poderá fazer-se com base em usucapião reconhecida mediante justificação notarial ou judicial.
5 - Considera-se que a enfiteuse se constitui por usucapião se quem alegar a titularidade do domínio útil provar por qualquer modo:
a) Que em 16 de Março de 1976 tinham decorrido os prazos de usucapião previstos na lei civil;
b) Que pagava uma prestação anual ao senhorio;
c) Que as benfeitorias realizadas pelo interessado, contitular ou seus antecessores na posse do prédio ou parcela foram feitas na convicção de exercer direito próprio como enfiteuta;
d) Que as benfeitorias, à data da interposição da acção, têm um valor de, pelo menos, metade do valor da terra no estado de inculta, sem atender à sua virtual aptidão para a urbanização ou outros fins não agrícolas.
E na segunda, “O n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, passa a ter a seguinte redacção:
«5 - Considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se:
a) Desde, pelo menos, 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio;
b) Tiverem sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores no prédio ou sua parcela benfeitorias, mesmo que depois de 16 de Março de 1976, de valor igual ou superior a, pelo menos, metade do valor do prédio ou da parcela, considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para urbanização ou outros fins não agrícolas.”
No dizer do Prof. Menezes Cordeiro (Da Enfiteuse: extinção e sobrevivência” in Revista “O Direito”, Ano 140, 2008, II, a págs. 313), a Lei 22/87 veio estabelecer uma presunção de usucapião sobre o domínio útil, em quatro indícios, a provar pelo interessado em ver reconhecido o seu direito de foreiro.
O que veio a ser facilitado pela Lei 108/97, uma vez que esta veio equiparar os arrendamentos de muita longa duração à enfiteuse, veio dispensar a inversão do título e o animus emphytheutae, e a acessão ou concessão da posse boa para usucapião foram facilitadas pelo facto das transmissões para o efeito adequadas operarem mesmo quando formalmente inválidas.
Do que se retira que as Leis 22/87 e 108/97, apenas vieram estabelecer uma presunção de aquisição por usucapião do domínio útil dos prazos, preenchidos os requisitos que as mesmas estabeleceram, sem prejuízo dos alegados foreiros, fazerem prova da aquisição do domínio útil do prazo, por via da invocação da usucapião em termos normais (vide mesmo autor e publicação).
Dito isto vejamos a situação dos autos.
Desde logo importa dizer que, ao contrário do alegado pela A., a matéria vertida no quesito 18º, não reproduz exactamente o que a Ré alegou nos art.ºs 3º e 4º da sua contestação, uma vez que o que a Ré aí afirma é que, eventualmente, o (…) poderá ter tomado de aforamento aos antecessores de (…) uma benfeitoria implantada no referido prédio misto, porquanto tem conhecimento da posse do mesmo sobre tal benfeitoria, ainda que desconhecendo a que título.
O que quer dizer que A e Ré, ao contrário do que a A afirma, não estão de acordo de que existe um aforamento divergindo apenas no seu âmbito.
De qualquer forma, resulta da matéria provada que desde 1951, (…), por acordo com os antecessores de (…), passou a explorar a parcela de terreno descrita na p.i., mediante o pagamento anual de 30 litros de trigo, passando àqueles o recibo em 15 de Agosto de cada ano, o que fez até à data do seu falecimento, com exclusão de outrem, aí cultivando e dela retirando os respectivos frutos e utilidades, na convicção de para si ter sido transferido o direito a explorar a referida parcela, tudo sem interrupção, na presença de toda a gente, sem qualquer oposição e no convencimento de não ofender direitos de terceiros, mas de exercer um direito próprio.
O que é bastante, para se considerar estarmos perante um contrato verbal de enfiteuse sobre a parcela de terreno em apreço.
No entanto, tal contrato não obedeceu à exigência legal, de estar vertido em escritura pública (art.º 1655º do Cód. Civ. de 1867), pelo que é nulo.
Tal nulidade não obsta a que a enfiteuse se tenha constituído por usucapião, nos termos do art.º 1498º do Cód. Civ..
Basta para tal que o foreiro, enquanto possuidor do domínio útil, tenha perdurado essa sua posse pelo prazo de 15 anos, uma vez que era manifesta a sua boa fé (art.º 1296º, n.º1, do Cód. Civ.).
O que a A. alegou e provou, como resulta da matéria provada.
Consequentemente, deve ser reconhecida à A. enquanto sucessora do foreiro (…), a aquisição, por usucapião, do domínio útil sobre a parcela de terreno em apreço e, consequentemente, por força do disposto no art.º 1º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, ope legis, a propriedade plena sobre a dita parcela de terreno.
Procede assim o presente recurso e a acção.
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IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se pela procedência do recurso, revogando-se a sentença recorrida e em consequência:
a) Declara-se constituída a favor da Autora (…), enquanto herdeira de (…), por usucapião do seu domínio útil, a enfiteuse sob a parcela de terreno situada no (…), (…), com a área de 957 metros quadrados, confrontando a Norte e Sul com (…), Nascente com Estrada camarária e Poente com (…), supra melhor identificada;
b) Reconhece-se, por força do disposto no art.º 1º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, que a Autora é proprietária plena da referida parcela de terreno, condenando-se a Ré a reconhecer tal aquisição.
Custas pela Ré.
Registe e notifique.
Évora, 13 de Dezembro de 2011
Silva Rato
Abrantes Mendes
Mata Ribeiro