DIFAMAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Sumário

1 - É tarefa do tribunal assegurar que a liberdade de expressão é garantida através de um justo equilíbrio entre a liberdade de expressão consagrada como princípio no artigo 10.º e a reputação da pessoa em causa, enquanto direito decorrente da protecção da vida privada consagrado no artigo 8.º da Convenção.

2 - No seu número 2 o referido artigo 10.º da Convenção prevê, no entanto, condições, restrições ou sanções ou, genericamente, ingerências no direito de liberdade de expressão.

3 - Estas devem, no entanto, estar previstas na lei e mostrar-se necessárias numa sociedade democrática, entendidas estas como uma ingerência por necessidade social imperiosa, para, por referência ao caso concreto, a protecção da honra e dos direitos de outrem.

4 - Quando o dissídio entre o assistente e os arguidos se situa em questões de interesse geral da vida do município – questão de interesse geral no âmbito territorial daquele município – e com laivos de se inserir certamente na vida política do mesmo município, “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”, conforme resulta do acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Wingrove c. Reino Unido, §58.

5 - A mera manifestação de intenção de exercício de um direito, ou o seu exercício, através das autoridades judiciárias não constitui a imputação de um facto ofensivo da honra do visado e, aqui, a existência do crime de denúncia caluniosa terá que funcionar como delimitação esclarecedora entre o exercício dos direitos em confronto, de um lado o direito à tutela jurisdicional efectiva e de liberdade de expressão, de outro, o direito à dignidade pessoal do assistente.

6 - A simples intenção de exercer à tutela jurisdicional efectiva, mesmo que suponha afirmação da prática de actos ilícitos criminais indeterminados, não constitui uma ofensa à honra, sob pena de se inviabilizar o direito à tutela jurisdicional efectiva

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nestes autos de Inquérito que corre termos nos serviços do Ministério Público da Golegã, por despacho lavrado em 09 de Março de 2011, a Mmª. Juíza do Tribunal Judicial da Golegã lavrou despacho a rejeitar a acusação particular deduzida pelo assistente LO relativamente a um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1 e 183º, nº 1, als. a) e b) do Código Penal contra os arguidos JM, RD, AD e AC.

Inconformado com aquela decisão da Mª Juíza dela interpôs o assistente o presente recurso, pedindo a sua procedência pela revogação do despacho recorrido, substituindo-o por outro que pronuncie os arguidos, com as seguintes conclusões:

1. O Recorrente conforma-se com o decidido no Douto Despacho recorrido quanto aos crimes de coação e de abuso de poderes, pelo que limita o presente recurso à parte da decisão que decide rejeitar a acusação particular deduzida quanto ao crime de difamação, nos termos do n. 1 do artigo 403.° do CPP.

2. O Tribunal a quo que a expressão "O Executivo Municipal legitima-se para junto das entidades judiciárias desencadear os procedimentos necessários ao apuramento da verdade e à responsabilização do referido munícipe pelos factos ilícitos e criminais que tem vindo reiteradamente a praticar" proferida pelo Presidente da Câmara Municipal da... JM, se deveram a um entendimento divergente entre o assistente o Presidente da Câmara Municipal da... e restantes arguidos, sobre o dever do munícipe LO, concretizar a sua denúncia sobre ligações de esgotos na Azinhaga, prestando os esclarecimentos solicitados, indicando os proprietários e os locais onde ocorreram as situações denunciadas se situa no âmbito da crítica objectiva, e que, ao proferir tais expressões o Arguido apenas procurou manifestar que, no seu entender, o facto do assistente denunciar a existência de ligações de esgotos (domésticos aos fluviais) na Azinhaga e depois não esclarecer quais os proprietários e os locais onde ocorreram as situações denunciadas, implicava a prática de factos ilícitos e criminais, mas tais expressões não se bastam na simples crítica objectiva ou numa manifestação de determinada opinião.

3. Tais expressões encerram em sí mesmas um juízo de valoração acerca do Recorrente, procurando atingi-lo na sua honra e reputação, com reflexos externos, tendo em conta o contexto em que foram produzidas.

4. Ao imputar ao Recorrente a prática de actos ilícitos e criminais, o Arguido procurou afectar a honra e consideração do Recorrente, independentemente dos factos que lhe estavam subjacentes;

5. A intenção do Arguido não foi uma intenção neutra e desinteressada de fazer um determinado juízo sobre determinado sujeito, ou sobre determinada conduta, mas de denegrir a honra e consideração do Recorrente na opinião pública;

6. Quer do teor do considerando em causa, quer dos factos alegados pelo Recorrente na sua Acusação Particular, não resulta que os factos computados como criminosos pelo Arguido fossem, ou se bastassem, na correspondência trocada entre este e a Câmara Municipal.

7. A tipicidade do facto reside na intenção de ofender a honra e o bom nome de outrem;

8. A liberdade de expressão deve obedecer a certos limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, cuja infracção pode conduzir a infracção criminal ou administrativa.

9. Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos de tal modo importantes que gozam de protecção, inclusive, penal, e entre eles estarão designadamente os direitos dos cidadãos à sua integridade moral, ao bom nome e reputação.

10. A dicotomia entre liberdade de expressão e o direito ao bom nome e reputação, no caso em apreço, nem se coloca, uma vez que, a única intenção do Arguido foi a de rebaixar e humilhar o Recorrente;

11. A acusação particular deduzida pelo Recorrente não é manifestamente infundada;

12. Só é manifestamente infundada a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência de indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, indiscutível, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal;

13. As expressões proferidas pelo Arguido não o foram no contexto de um debate político, uma vez que, não só o Recorrente não estava presente, como, não era à data dos factos titular de qualquer cargo político;

14. Tais expressões não lhe foram dirigidas enquanto político, mas sim enquanto munícipe, não se aceitando neste caso a amplitude dada aos casos de debate político.

Pelo exposto,

Devem V. Exas. conceder provimento ao presente recurso, e consequentemente determinar a substituição do despacho recorrido por outro que recebendo a acusação designe dia para a realização de audiência de julgamento.
*
O Digno Procurador-Adjunto do Tribunal da Golegã apresentou resposta defendendo o decidido.
De igual forma os arguidos apresentaram resposta pugnando pelo decidido.

Nesta Relação o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da sua ilegitimidade para se pronunciar em virtude de estar em causa um crime particular.

Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
*****
B - Fundamentação:

B.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, o teor do despacho judicial e os factos que dele constam:

É o seguinte o teor do despacho judicial de 12-04-2010:

II – Uma vez que este é o momento próprio para proceder ao saneamento do processo, nos termos e para os efeitos previstos no art. 311º do CPP, importa proceder à análise da acusação particular deduzida pelo assistente (cfr. fls. 183 a 192), à luz de tal disposição legal.

2.1 – Quanto aos crimes de coacção:
O assistente LO não tem legitimidade para o exercício da acção penal relativamente aos crimes de coacção, na forma tentada, p. e p. pelo art. 154º, nos 1 e 2 do Código Penal, contra JM, RD, AD e AC, por se tratar de um crime público (art. 48º do CPP). Assim, por falta deste pressuposto processual não aceito a acusação particular do assistente nesta parte.

2.2 – Quanto aos crimes de abuso de poderes:

O assistente LO não tem legitimidade para o exercício da acção penal relativamente aos crimes de abuso de poderes, p. e p. pelo art. 26º da Lei nº 34/87, de 16/07, contra JM, RD, AD e AC, por se tratar de um crime público (art. 48º do CPP). Assim, por falta deste pressuposto processual não aceito a acusação particular do assistente nesta parte.

2.3 – Quanto aos crimes de difamação:

O assistente LO tem legitimidade para o exercício da acção penal relativamente ao crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º, nº 1 e 183º, nº 1, als. a) e b), ambos do Código Penal, contra JM, e aos crimes de difamação, p. e p. pelo art. 180º, nº 1, 182º, in fine e 183º, nº 1, als. a) e b), todos do Código Penal, contra RD, AD e AC, por se tratarem de crimes particulares (art. 188º, nº 1 do Código Penal e art. 50º do CPP).

No entanto, cumpre, hic et nunc, atentar no teor da acusação particular deduzida pelo assistente.

Segundo o artigo 283º, nº 3, al. b), do CPP, a acusação contém, sob pena de nulidade, entre outros requisitos, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática e o grau de participação que o agente neles teve.

Ou seja, a acusação, sendo uma condição indispensável do julgamento, por ser pela acusação que se fixa o objecto do processo, há-de conter os factos que são imputados ao arguido e esses factos hão-de integrar a prática, pelo arguido, do ilícito penal pelo qual é requerido o seu julgamento.

Não havendo lugar à fase da instrução, a legalidade da acusação está sujeita a fiscalização judicial por via do despacho a que se refere o artigo 311º do CPP, no âmbito do qual se terá de aferir da ocorrência dos pressupostos legais para que a acusação possa ser admitida (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Editorial Verbo, 2000, p. 126 e 127).

O artigo 311º, nº 2, al. a), dispõe, com efeito, que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.

O nº 3 do art. 311º dispõe o que deve entender-se por acusação manifestamente infundada:

a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) se os factos não constituírem crime.

Já foi notado, e com razão, que os vícios elencados no nº 3 do art. 311º se sobrepõem às nulidades sanáveis do artigo 283º, nº 3, als. a), b) e c), pelo que as ditas nulidades se convertem em matéria de conhecimento oficioso do tribunal (Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 207 e 208).

Com efeito, os factos narrados na acusação hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena e só a podem fundamentar se constituírem crime.

Sendo, na acusação, imputados aos arguidos crimes de difamação, mostra-se necessário proceder, preliminarmente, à definição do bem jurídico tutelado pelo tipo de ilícito, em causa, e dos respectivos elementos típicos, no plano objectivo e subjectivo.

Só depois dessa prévia definição é que sustentadamente se pode tomar posição sobre se os factos narrados na acusação particular são, ou não, ofensivos da honra e consideração do assistente.

In casu, no que se refere aos aludidos crimes de difamação, consta da acusação particular deduzida pelo assistente, os seguintes factos:

“1.
No dia 17 de Abril de 2008, na Câmara Municipal da..., pelas 15h30 decorreu a reunião pública do Executivo Municipal, na qual estiveram presentes, entre outros, membros do executivo autárquico, chefes dos serviços municipais e jornalistas.
2.
No decurso da discussão respeitante ao ponto 10.1 da Ordem de Trabalhos que visava apreciar da “denúncia do Munícipe LO na Assembleia Municipal – Ligações de esgotos na Azinhaga e sobre os termos da resposta ao Ofício da Câmara Municipal – DOUA”, o Presidente da Câmara Municipal... e aqui arguido, JM, no uso da palavra, em voz alta e à frente de todos os presentes, referindo-se à pessoa do assistente proferiu a seguinte expressão: “o executivo municipal legitima-se para junto das entidades judiciárias desencadear os procedimentos necessários ao apuramento da verdade e à responsabilização do referido munícipe pelos actos ilícitos e criminais que tem vindo reiteradamente a praticar”.
3.
Ao proferir tais palavras, em público e à frente de jornalistas que ali se encontravam no exercício das suas funções o arguido pretendeu lançar sobre o assistente a suspeita de este praticar reiteradamente factos ilícitos e criminosos bem sabendo que tais expressões, proferidas naquelas circunstâncias de tempo e lugar, iriam ser reproduzidas em acta e que eram susceptíveis de virem a ser noticiadas nos jornais locais e regionais, e dessa forma ofender a sua honra e consideração, o que logrou.
4.
Com o mesmo propósito agiram os arguidos RD, AD e AC, vereadores da Câmara Municipal..., que aprovaram todo o considerando que fundamentou a deliberação de “Remeter ao Ministério Público toda a correspondência trocada entre a Câmara Municipal... e o Munícipe em questão, para que se inicie a abertura do respectivo processo judicial, caso o Sr. LO não preste os esclarecimentos solicitados, indicando os proprietários e os locais onde ocorreram as situações denunciadas”.
5.
Os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as estas condutas, praticadas através de meios e em circunstâncias aptos a facilitar a sua divulgação, eram susceptíveis ofender gravemente o bom nome e reputação do assistente, o que quiseram e conseguiram. (…)”
*
Nos termos do art. 180º, nº 1 do Código Penal, comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo (…)”.

O art. 182º do Código Penal refere que “à difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”.

No art. 183° do mesmo Código Penal prevê-se uma agravação da moldura penal se a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação ou, tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia já a falsidade da imputação.

Daqui resulta que o crime de difamação pode ser cometido por imputação a outrem de um facto ofensivo (ainda que meramente suspeito); pela formulação de juízo de desvalor; ou pela reprodução de uma imputação ou de um juízo (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, “Código Penal Anotado”, 2º Vol., Editora Rei do Livros, p. 317).

Protege-se, neste crime, a honra e consideração dos cidadãos.

Importa, portanto, definir o que é a honra e consideração, sendo certo que existem vários critérios ou concepções, para esse efeito, pois a honra é considerada um bem jurídico complexo que abrange quer o valor pessoal ou interior da pessoa, quer a sua reputação ou consideração exterior.

Seguindo de perto o Prof. José de Faria Costa (in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 603 e segs), que distingue o conceito de honra nas vertentes fáctica, normativa, normativo-social e normativa-pessoal, para, depois, acolher uma concepção (dominante) que tempera a concepção normativa com uma dimensão fáctica (concepção dual).

A respeito da concepção fáctica, o Prof. José de Faria Costa conclui pela necessidade de se estabelecer um equilíbrio entre a concepção objectiva ou exterior (equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa: o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente) e a concepção subjectiva ou interior (que consistiria no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesmo (no fim de contas estaremos, aqui, mergulhados no domínio do “apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral”).

Considera o mesmo autor, ser de afastar um conceito meramente fáctico da honra. Depois, aprecia as várias implicações do conceito de honra nas vertentes normativa (só pelo facto de se ser pessoa se tem uma merecida pretensão de respeito), normativa-social (a honra é vista numa dimensão comunitária ou social) e normativo-pessoal (a honra é um aspecto da personalidade de cada pessoa, é a dignidade pessoal, igual para todas as pessoas, o que não permite identificar as diferentes densidades normativas que sempre urge detectar em qualquer bem jurídico). E conclui adoptando a concepção dual (supra referida) em que a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.

Definido o conceito de honra e sabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra e reconhece no seu art. 26°, o direito ao bom nome e reputação, como um dos direitos de personalidade que emana de outro valor fundamental que é a dignidade da pessoa humana, há que ter em atenção que nos termos do artigo 37º, nº 1 da CRP “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.

Daqui se vê que os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados.

A propósito da eventual colisão da honra e da liberdade de expressão, refere Costa Andrade (in “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal – Uma perspectiva Jurídico-Criminal, Coimbra Editora, 1996): “(...) Como limite da moldura da ponderação está sempre a crítica caluniosa: por força dela hão-de valorar-se como ilícitas as ofensas exclusivamente motivadas pelo propósito de caluniar, rebaixar e humilhar o ofendido (…)”. “A Lei Fundamental reserva um significado prevalecente à garantia jurídica da liberdade de expressão da opinião, o que tem subjacente a representação de que o cidadão adulto e chamado a tomar posição no debate de ideias numa democracia livre é, ele próprio, capaz de reconhecer o que é de reter de uma crítica que renuncia à fundamentação e se limita a tocar a opinião contrária de chocarreira ou irónica maliciosa. Face a esta ousadia da liberdade compreende-se que o direito não assegure ao ofendido a protecção contra todas as opiniões desmesuradamente agrestes. Não será assim arriscado concluir que, postas entre parênteses as hipóteses de crítica caluniosa, dificilmente se excogitarão constelações típicas de formulações críticas cuja ilicitude possa escapar à eficácia dirimente do exercício de um direito (...)".
*
Dito isto, importa agora saber se as expressões imputadas ao arguido JM (“o executivo municipal legitima-se para junto das entidades judiciárias desencadear os procedimentos necessários ao apuramento da verdade e à responsabilização do referido munícipe pelos actos ilícitos e criminais que tem vindo reiteradamente a praticar”), e se o comportamento imputado aos arguidos RD, AD e AC na acusação particular (terem aprovado todo o considerando que fundamentou a deliberação de remeter ao Ministério Público toda a correspondência trocada entre a Câmara Municipal... e o assistente, “para que se inicie a abertura do respectivo processo judicial, caso o Sr. LO não preste os esclarecimentos solicitados, indicando os proprietários e os locais onde ocorreram as situações denunciadas”), são, ou não, ofensivos da honra ou consideração devida ao assistente.

Para responder a esta questão, nesta fase processual, há que considerar apenas a acusação, mas tendo em conta o circunstancialismo ou contexto em que os comportamentos dos arguidos tiveram lugar.

Não se pode apreciar apenas certas expressões ou comportamentos por si sós, descontextualizados, desinseridos do restante. Só contextualizado se pode apreender o circunstancialismo em que as expressões supra transcritas foram proferidas e em que os comportamentos dos restantes arguidos tiveram lugar, a quem foram dirigidos e qual a intenção dos seus autores.

Por isso, em bom rigor, da acusação particular deveria constar o teor integral da denúncia do assistente sobre as ligações de esgotos na Azinhaga e os termos da resposta ao “Ofício da Câmara Municipal” e não apenas as expressões proferidas pelo Presidente da Câmara... e o comportamento dos restantes arguidos.

Há, pois, que analisar as expressões e comportamentos em causa, integrando-os ou inserindo-os no contexto em que os mesmos foram produzidos.

Assim, de acordo com a acusação particular deduzida pelo assistente, no decurso da reunião pública do Executivo Municipal que teve lugar em 17/04/2008, aquando da discussão respeitante ao ponto 10.1 da Ordem de Trabalhos que visava apreciar da “denúncia do Munícipe LO na Assembleia Municipal – Ligações de esgotos na Azinhaga e sobre os termos da resposta ao Ofício da Câmara Municipal – DOUA”, o Presidente da Câmara Municipal ..., JM, no uso da palavra, em voz alta e à frente de todos os presentes, referindo-se à pessoa do assistente, proferiu a seguinte expressão: “o executivo municipal legitima-se para junto das entidades judiciárias desencadear os procedimentos necessários ao apuramento da verdade e à responsabilização do referido munícipe pelos actos ilícitos e criminais que tem vindo reiteradamente a praticar”.

É também referido na acusação particular deduzida pelo assistente que os arguidos RD, AD e AC, vereadores da Câmara Municipal..., aprovaram todo o considerando que fundamentou a deliberação de remeter ao Ministério Público toda a correspondência trocada entre a Câmara Municipal... e o assistente, para que se inicie a abertura do respectivo processo judicial, caso o mesmo “não preste os esclarecimentos solicitados, indicando os proprietários e os locais onde ocorreram as situações denunciadas”.

O assistente considera estas expressões e comportamentos ofensivos da sua honra e consideração.

Da análise da acusação – considerada por si só – resulta claro que tais afirmações e comportamentos tiveram lugar mercê do entendimento divergente entre o assistente e o Presidente da Câmara Municipal... e restantes arguidos, sobre o dever do munícipe LO, ora assistente, concretizar a sua denúncia sobre ligações de esgotos na Azinhaga, prestando os esclarecimentos solicitados, indicando os proprietários e os locais onde ocorreram as situações denunciadas.

O arguido JM, ao proferir as expressões supra referidas, manifestou que, no seu entender, o facto de o assistente denunciar a existência de ligações de esgotos (domésticos aos fluviais) na Azinhaga e depois não esclarecer quais os proprietários e os locais onde ocorreram as situações denunciadas, implicava a prática de factos ilícitos e criminais.

Por outro lado, os restantes arguidos aprovaram a deliberação segundo a qual, caso o assistente não prestasse tais esclarecimentos, seria remetido ao Ministério Público a correspondência trocada entre a Câmara Municipal... e o assistente para que tivesse lugar a abertura do respectivo processo judicial.

As expressões em causa proferidas pelo arguido JM, tratam-se, desde logo, de afirmações genéricas e abstractas. Não se tratam nem contêm uma imputação concreta ao assistente da prática de factos criminosos que possa fundamentar um juízo negativo ou difamatório. Tal juízo poderia resultar da imputação de factos concretos, mas não decorre daquelas simples expressões.

Do mesmo modo, o comportamento imputado aos arguidos RD, AD e AC, de aprovar a remessa de correspondência trocada entre a Câmara Municipal... e o assistente ao Ministério Público, também não comporta a imputação de um qualquer facto concreto nem a formulação de qualquer juízo desonroso ao assistente, que possa fundamentar o referido juízo negativo ou difamatório.

Contextualizadas as referidas expressões, logo se vê que as mesmas se constituem no anúncio do exercício de um direito legítimo, que é dar conhecimento às entidades judiciárias de factos que poderiam eventualmente ter natureza criminal. Por outro lado, os comportamentos dos demais arguidos traduzem-se na adopção dos procedimentos necessários (remessa da correspondência ao Ministério Público) para que tivesse lugar a abertura do respectivo processo judicial.

A manifestação de que se vai apresentar queixa ou propor acções em tribunal é tão só um aviso ou anúncio do exercício de um direito, o que, obviamente, não constitui qualquer ilícito.

Não se vê, nas expressões supra transcritas proferidas pelo arguido JM e, bem assim, nos comportamentos dos restantes arguidos constantes da acusação particular que exista imputação de factos, nem formulação de um juízo, em relação ao assistente que devam considerar-se ofensivos da (sua) honra e consideração – no sentido atrás considerado (a não ser na dimensão meramente subjectiva e extrema de protecção de um excessivo sentimento de auto-estima que não pode acolher-se).

Por outro lado, a conduta dos arguidos constitui a manifestação do entendimento dos mesmos sobre a actuação e omissão do assistente, não revelam qualquer intenção de o humilhar ou rebaixar ou mesmo de o desconsiderar pessoalmente.

Daqui resulta que, a nosso ver, as expressões e comportamentos supra referidos não podem ser entendidos, quer objectivamente, quer subjectivamente, como a imputação de factos concretos, ou formulação de juízos, ofensivos da honra e consideração do assistente, pois das expressões proferidas pelo arguido JM e do comportamento dos restantes arguidos resulta somente que os arguidos pretendem recorrer às entidades judiciárias com vista a fazer prevalecer o seu entendimento.

Do que se trata, portanto, é de um juízo de apreciação e valoração crítica vertido sobre uma concreta actuação/omissão do assistente que não ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, pois se atém a determinada actuação/omissão.

Ora, segundo o entendimento hoje dominante, os juízos de apreciação e valoração vertidos sobre realizações ou sobre prestações, na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objectiva, caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação (Vide Manuel da Costa Andrade, “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra Editora, 1996, p. 232 a 240). E, no sentido da atipicidade da crítica objectiva afastam-se, hoje, as exigências de proporcionalidade e da necessidade objectiva, do bem-fundado ou da “verdade”, bem como o pressuposto do meio menos gravoso. Ou seja, a tese da atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas.

Por outro lado, o direito de crítica com este sentido não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas (vide, neste sentido, Ac do STJ de 17/11/2010, Proc. nº 51/10.7YFLSB.S1, in www.dgsi.pt, que seguimos de perto).

São ainda de levar à conta da atipicidade os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou prestação em exame. Nesta linha, o crítico que estigmatizar uma acusação como “persecutória” ou “iníqua” pode igualmente assumir que o seu agente teve, naquele processo, uma conduta “persecutória” ou “iníqua” ou que ele foi, em concreto, “persecutório” ou “iníquo”. Aqui, está já presente uma irredutível afronta à exigência de consideração e respeito da pessoa, mas trata-se de sacrifício ainda coberto pela liberdade de crítica objectiva, não devendo ser levado á conta de lesão típica.

Já o mesmo não se poderá sustentar para os juízos que atingem a honra e consideração pessoal perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva.

No entanto, as expressões proferidas pelo arguido JM e o comportamento dos demais arguidos podem e devem considerar-se a coberto da livre expressão de pensamento e dentro dos limites toleráveis do direito de crítica sobre a actuação de outrem, constituindo condutas atípicas (no dizer da doutrina mais recente, designadamente, Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, p. 232 e segs) e, por isso, “inidóneas para integrarem a área da tutela penal”.

Não cabem na crítica caluniosa.

Há que ter ainda em conta que o assistente está ligado à vida política da região, já foi membro da Assembleia Municipal ... e da Assembleia de Freguesia da Azinhaga (cfr. fls. 29) e o comportamento dos arguidos teve lugar no âmbito do debate público de situações concernentes à região.

Na esteira do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos – Caso Oberschlick vs. Áustria (1): 23/05/1991 – (in “A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”, de João Ramos de Sousa e Cristina Henriques, in Sub Judice – Index 28, p. 113 ss), entendemos que os limites da crítica admissível são mais amplos relativamente a um político, do que relativamente a um simples particular.

Estamos perante uma crítica objectiva a certa actuação/omissão do assistente, no exercício legítimo de um direito democrático e que não visou ofender – nem ofende – a honra e consideração do assistente.

Em face do exposto, conclui-se que os factos imputados aos arguidos na acusação particular – mesmo a provarem-se – não integram a prática dos crimes de difamação, ali referidos.

Em suma, quanto aos crimes de difamação, a acusação particular não contém factos que permitam a responsabilização penal dos arguidos.

Por isso, a acusação particular deduzida pelo assistente, quanto aos crimes de difamação imputados aos arguidos, é manifestamente infundada, pois os factos aí articulados não constituem ilícito jurídico-penal.

Atentos os fundamentos expostos e ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 1, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do CPP, rejeito a acusação particular deduzida pelo assistente, quanto aos crimes de difamação, contra os arguidos JM, RD, AD e AC, por manifestamente infundada.

Na sequência da decisão que antecede, por força do princípio de adesão consagrado no art. 71º do CPP, fica prejudicada a admissibilidade do pedido de indemnização civil constante de fls. 186 a 192, por o mesmo não se fundar na prática de crime, persistindo, contudo, a possibilidade de sua dedução em separado, perante o tribunal cível, nos termos previstos no art. 72º, nº 1, al. b) in fine, do Código de Processo Penal”.
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B.2 - O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

A questão abordada no recurso reconduz-se a apurar, unicamente, se deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por despacho que receba a acusação deduzida pelo assistente.

***
B.3 – A apreciação a fazer nestes autos deve incidir sobre a concreta apreciação dos factos, tal como eles resultam do processo, não sem que antes se enquadre de forma genérica o ordenamento jurídico aplicável.
Encontramo-nos no âmbito de relações entre particulares e o dissídio centra-se no direito à liberdade de expressão.

Tal direito tem dignidade constitucional – consagrada no artigo 37º da CRP - e, no âmbito do direito infra-constitucional, encontra-se salvaguardado e regulado pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem no seu artigo 10º. [1]

Este normativo convencional estipula, como obrigação directamente decorrente da sua letra e do seu espírito, a obrigação de o Estado português assegurar a plena vigência daquele princípio de liberdade de expressão, exigindo-se mesmo a implementação de medidas positivas de protecção, seja de facto, seja de direito – acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Manole e outros c. Moldávia.

Logo, é tarefa do tribunal assegurar que a liberdade de expressão é garantida através de um justo equilíbrio entre a liberdade de expressão consagrada como princípio no artigo 10º e a reputação da pessoa em causa, enquanto direito decorrente da protecção da vida privada consagrado no artigo 8º da Convenção – acórdão Cumpana e Mazare c. Roménia (processo nº no 33348/96 de 17-12-2004), § 91. [2]

Assumindo que não há democracia sem pluralismo e que a democracia se alimenta da liberdade de expressão (a liberdade de expressão é um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática), o acórdão Manole e outros c. Moldávia, de 17 de Setembro de 2009, discreteia:

95. Pour déterminer si l'article 10 a été respecté en l'espèce, la Cour doit tenir compte des principes suivants. Elle prend pour point de départ cette vérité fondamentale qu'il n'est pas de démocratie sans pluralisme. L'une des principales caractéristiques de la démocratie réside dans la possibilité qu'elle offre de résoudre par le dialogue et sans recours à la violence les problèmes que rencontre un pays, et cela même quand ils dérangent. La démocratie se nourrit de la liberté d'expression….

96. La liberté d'expression, consacrée par le paragraphe 1 de l'article 10, constitue l'un des fondements essentiels d'une société démocratique, l'une des conditions primordiales de son progrès (Lingens c. Autriche, 8 juillet 1986, § 41, série A no 103)….

99. L'exercice réel et effectif de la liberté d'expression ne dépend pas simplement du devoir de l'Etat de s'abstenir de toute ingérence, mais peut exiger qu'il prenne, en droit ou en pratique, des mesures positives de protection (voir par exemple Özgür Gündem c. Turquie, no 23144/93, §§ 42-46, CEDH 2000-III, Fuentes Bobo c. Espagne, no 39293/98, § 38, 29 février 2000, et Appleby et autres c. Royaume-Uni, no 44306/98, §§ 39-40, CEDH 2003-VI). Compte tenu de l'importance des enjeux dans le cadre de l'article 10, l'Etat doit être l'ultime garant du pluralisme …..

Daqui decorre, com naturalidade, o maior peso reconhecido pela convenção e pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem à liberdade de expressão.

No seu número 2 o referido artigo 10º da Convenção prevê, no entanto, condições, restrições ou sanções ou, genericamente, ingerências no direito de liberdade de expressão.

Estas devem, no entanto, estar previstas na lei e mostrar-se necessárias numa sociedade democrática, entendidas estas como uma ingerência por necessidade social imperiosa, para, por referência ao caso concreto, a protecção da honra e dos direitos de outrem.[3]

Indubitavelmente o ordenamento jurídico português prevê no Código Penal um tipo penal de protecção da honra do assistente, o crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1 e 183º, nº 1, als. a) e b) do Código Penal, no que ao caso concreto diz respeito.

Estão, pois, verificadas as condições para que operem as restrições contidas no número dois do preceito.

Resta saber se há ofensa à honra e, em caso afirmativo, qual dos valores deve prevalecer, a liberdade de expressão dos arguidos ou a honra do assistente.

A argumentação do assistente – e a sede de imputação penal – assenta numa expressão e no envio de correspondência que continha expressão apenas equivalente às autoridades judiciais, como segue:

No decurso da discussão respeitante ao ponto 10.1 da Ordem de Trabalhos que visava apreciar da “denúncia do Munícipe LO na Assembleia Municipal – Ligações de esgotos na Azinhaga e sobre os termos da resposta ao Ofício da Câmara Municipal – DOUA”, o Presidente da Câmara Municipal..., e aqui arguido, JM, no uso da palavra, em voz alta e à frente de todos os presentes, referindo-se à pessoa do assistente proferiu a seguinte expressão: “o executivo municipal legitima-se para junto das entidades judiciárias desencadear os procedimentos necessários ao apuramento da verdade e à responsabilização do referido munícipe pelos actos ilícitos e criminais que tem vindo reiteradamente a praticar”.

Com o mesmo propósito agiram os arguidos RD, AD e AC, vereadores da Câmara Municipal..., que aprovaram todo o considerando que fundamentou a deliberação de “Remeter ao Ministério Público toda a correspondência trocada entre a Câmara Municipal... e o Munícipe em questão, para que se inicie a abertura do respectivo processo judicial, caso o Sr. LO não preste os esclarecimentos solicitados, indicando os proprietários e os locais onde ocorreram as situações denunciadas”.

Destes factos e da circunstância de os mesmos se terem iniciado com uma conduta do assistente de denunciar actos supostamente ilícitos praticados pela Câmara Municipal e por alguém supostamente a ela pertencente, decorrem as seguintes ideias.

Que o dissídio entre o assistente e os arguidos se situa em questões de interesse geral da vida do município – questão de interesse geral no âmbito territorial daquele município – e com laivos de se inserir certamente na vida política do mesmo município, conforme decorre da actuação anterior do assistente.

Nesta sede, questões de interesse geral e luta política, “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”, [4] conforme resulta dos acórdãos Wingrove c. Reino Unido, §58. [5]

Que os arguidos RD, AD e AC, vereadores da Câmara Municipal..., se limitaram a assinar correspondência a exercer um direito a ver esclarecidas as imputações feitas pelo assistente e sem que essa correspondência contenha qualquer ofensa à honra deste, seja pela imputação de factos, seja pela emissão de juízos de valor.

É por demais evidente que se não mostra preenchido qualquer dos elementos do tipo penal imputado a estes arguidos.

Relativamente ao arguido JM, este afirma pretender “junto das entidades judiciárias desencadear os procedimentos necessários ao apuramento da verdade e à responsabilização do referido munícipe pelos actos ilícitos e criminais que tem vindo reiteradamente a praticar
.
Ora, não obstante se imputar ao assistente a prática de ilícitos criminais indeterminados na expressão, mas decorrentes das afirmações do assistente, o arguido M está a exercer um direito que tem idêntica dignidade constitucional, o vulgarmente designado direito ao juiz, o direito de tutela jurisdicional efectiva constante do artigo 20º da CRP.

Assim, a simples intenção de exercer este direito, mesmo que suponha afirmação da prática de actos ilícitos criminais indeterminados, não constitui uma ofensa à honra, sob pena de se inviabilizar o direito à tutela jurisdicional efectiva.

Para além disso, não há imputação de factos, nem formulação de juízos de valor, objectivamente ofensivos da honra e consideração pessoal do assistente, como bem analisado pelo tribunal recorrido.

A mera manifestação de intenção de exercício de um direito, ou o seu exercício, através das autoridades judiciárias não constitui, portanto, a imputação de um facto ofensivo da honra do visado e, aqui, a existência do crime de denúncia caluniosa terá que funcionar como delimitação esclarecedora entre o exercício dos direitos em confronto, de um lado o direito à tutela jurisdicional efectiva e de liberdade de expressão, de outro, o direito à dignidade pessoal do assistente.

Assim, não se mostram verificados os elementos objectivos e subjectivo do imputado crime, pelo que se não verifica preenchido o tipo penal imputado.

Não há, portanto, ofensa à honra do assistente.

Bem exercitado foi, portanto, o poder-dever do tribunal recorrido previsto no artigo 311º do Código de Processo Penal.

Não se verifica, com os factos que constam dos autos, a existência de um crime de denúncia caluniosa, nem este seria o momento adequado a concluir tal.

Por isso o recurso deve improceder.
*
C - Dispositivo:
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto e em confirmar o douto despacho recorrido.

Notifique.
Custas pelo assistente com 3 (três) Ucs. de taxa de justiça.

Évora, 13 de Dezembro de 2011

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

Ana Bacelar
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[1] - As referências sobre jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem podem ser consultadas, com proveito, em “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada” de Irineu Cabral Barreto, Coimbra Editora, 4ª Edição, 2010.

[2] - § 91. «La Cour doit par ailleurs vérifier si les autorités internes ont ménagé un juste équilibre entre, d’une part, la protection de la liberté d’expression, consacrée par l’article 10, et, d’autre part, celle du droit à la réputation des personnes mises en cause, qui, en tant qu’élément de la vie privée, se trouve protégé par l’article 8 de la Convention (Chauvy et autres précité, § 70 in fine)».

[3] - Acórdão Cumpana e Mazare c. Roménia, § 88 «La condition de « nécessité dans une société démocratique » commande à la Cour de déterminer si l’ingérence incriminée correspondait à un « besoin social impérieux ». Les Etats contractants jouissent d’une certaine marge d’appréciation pour juger de l’existence d’un tel besoin, mais cette marge va de pair avec un contrôle européen portant à la fois sur la loi et sur les décisions qui l’appliquent, même quand elles émanent d’une juridiction indépendante. La Cour a donc compétence pour statuer en dernier lieu sur le point de savoir si une « restriction » se concilie avec la liberté d’expression sauvegardée par l’article 10 (voir, parmi beaucoup d’autres, les arrêts Perna, précité, § 39, et Association Ekin c. France, no 39288/98, § 56, CEDH 2001-VIII)».

[4] - “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada” de Irineu Cabral Barreto, pag. 283.

[5] - § 58. «Assurément, l’article 10 par. 2 de la Convention (art. 10-2) ne laisse guère de place pour des restrictions à la liberté d’expression dans le domaine du discours politique ou de questions d’intérêt général (voir, mutatis mutandis, parmi beaucoup d’autres, les arrêts Lingens c. Autriche du 8 juillet 1986, série A no 103, p. 26, par. 42, Castells c. Espagne du 23 avril 1992, série A no 236, p. 23, par. 43, et Thorgeir Thorgeirson c. Islande du 25 juin 1992, série A no 239, p. 27, par. 63). Cependant, une plus grande marge d’appréciation est généralement laissée aux Etats contractants lorsqu’ils réglementent la liberté d’expression sur des questions susceptibles d’offenser des convictions intimes, dans le domaine de la morale et, spécialement, de la religion».