CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
DESOBEDIÊNCIA
Sumário

I – O condutor autuado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, que volta a conduzir no espaço das 12 horas seguintes a que se refere o artigo 154º, nº 1, do Código da Estrada, comete de novo outro crime de condução de veículo em estado de embriaguez, para além do de desobediência qualificada, p. e p. pelos artigos 154º, nº 2, do Código da Estrada e 348º, nº 2, do Código Penal.
II – É que determinante de quantos crimes comete o condutor que se encontra em estado de embriaguez e procede à condução de veículo na via pública, no espaço das 12 horas seguintes a que se refere o mencionado artigo 154º, nº 1, do Código da Estrada, é, não «a génese do crime ser a mesma ingestão de bebidas alcoólicas em excesso», como referido pelo Tribunal a quo, mas, outrossim, o número de resoluções ou decisões de delinquir.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 237/09.7 GBPSR, do Tribunal Judicial de Ponte Sôr, mediante acusação do Ministério Público e sem apresentação de contestação por banda do arguido, foi submetido a julgamento o arguido NG, e por sentença proferida e depositada em 01.10.2010 foi decidido:---

“(…)

1) Condenar NG, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 600,00 (seiscentos euros).

2) Condenar NG, pela prática de um crime de desobediência qualificada (ARTIGO), na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 720,00 (setecentos e vinte euros).

3) Absolver o arguido NG da prática do (segundo) crime de condução de veículo em estado de embriaguez que lhe foi nestes autos imputado.

4) Efectuado o cúmulo jurídico das penas aplicadas condenar o arguido na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de 6 (seis) euros, o que perfaz € 1080,00 (mil e oitenta euros), subsidiariamente 120 (cento e vinte) dias de prisão.

5) Condenar NG na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 7 (sete) meses, nos termos do artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal.

6) Condenar o arguido nas custas do processo (art. 513.º do C.P.P. e art. 8.º, n.º5 e Tabela III anexo ao Regulamento das Custas Processuais) em taxa de justiça que se fixa em 2 (duas) U.C., reduzida a metade atenta a confissão integral e sem reservas (cfr. artigos 344º, n.º2, al.c) e 513º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal), bem como nos encargos do processo (artigo 514.º do CPP e 16.º do Regulamento das Custas Processuais).

(…)”.---

Inconformado com a decisão, dela recorreu o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões (que se farão constar por cópia porque não foi remetido o respectivo suporte em “CD-ROM” e não se logrou, com êxito, proceder ao respectivo “scanner”):---

Notificado, o arguido, na pessoa do seu Defensor, respondeu ao recurso interposto, concluindo nos termos seguintes:---

“A douta Sentença recorrida fez uma correcta aplicação da Lei, não sendo passível qualquer censura, devendo, por conseguinte, ser integralmente confirmada.

Se assim mui doutamente, se dicidir será feita

JUSTIÇA”.---

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer (que se fará constar por cópia) nos seguintes termos:---

“Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido usado o direito de resposta.---

Foram colhidos os vistos legais.---

Foi realizada a conferência.---

Cumpre apreciar e decidir.---

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82). ---

Vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que a única questão suscitada se resume à seguinte:---

- Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na matéria de direito ao ter absolvido o arguido da prática de (mais) um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, com fundamento no facto de que um condutor que, no espaço de doze horas, conduza várias vezes e que, em cada momento, apresente uma taxa de álcool superior ou igual a 1,2 g/l, apenas poderá ser condenado por um único crime de condução de veículo em estado de embriaguez, restando a punição pelo crime de desobediência qualificada, nos termos do disposto nos artigos 348º, nºs 1 e 2, do Código Penal, 153º, nºs 1 e 2 e 154º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada, tendo por conseguinte procedido a uma errada interpretação das aludidas normas legais, violando o preceituado no artigo 30º, nº 1, do Código Penal.---

III

Com vista à apreciação da indicada questão, importa ter em consideração o teor da sentença recorrida, que se encontra fundamentada nos seguintes termos (transcrição):---

“(…)

II - Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 7 de Agosto de 2009, cerca das 00h11, na Rua da Capela de São Lourenço, freguesia de São Vicente, Abrantes, o arguido conduziu o veículo automóvel de marca Ford e modelo Transit com a matrícula (…) após ter ingerido bebidas alcoólicas e apresentando taxa de álcool no sangue de 1,38g/l.

2. Nessa ocasião e local, foi o arguido abordado pelo Agente da PSP PR, que ali se encontrava em missão de fiscalização do trânsito.

3. Foi o arguido então submetido ao teste de despistagem da presença de álcool no sangue, revelando a referida taxa.

4. Perante tal resultado, que lhe foi dado a conhecer, foi o arguido notificado de que ficava impedido de conduzir pelo período de doze horas, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada, do que o mesmo ficou bem ciente.

5. Pouco tempo depois, pelas 02h20, o arguido conduziu o mesmo veículo junto às bombas de combustível da BP, sitas na Avenida da Liberdade, Ponte de Sôr e apresentando taxa de álcool no sangue de 1,40 g/l.

6. O arguido sabia que havia ingerido bebidas alcoólicas e que o seu estado não lhe permitia efectuar uma condução cuidada e prudente e lhe diminuía a capacidade de atenção, reacção e destreza, mas, ainda assim, quis conduzir o veículo automóvel, o que efectivamente fez.

7. O arguido sabia que havia sido notificado de que não poderia conduzir pelo período de 12 horas, mas ainda assim, quis conduzir o veículo automóvel durante esse período, o que efectivamente fez.

8. O arguido agiu de forma consciente, livre e voluntária, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

9. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos constantes de 1. a 9.

10. O arguido encontra-se a trabalhar na construção civil auferindo cerca de €1000 (mil euros). Paga as quantias de €250 (duzentos e cinquenta euros) e €144 (cento e quarenta e quatro euros) mensais, a título de empréstimos para aquisição de viaturas automóveis. Vive na casa da mãe, que é doméstica, e ajuda nas despesas de casa.

11. Por sentença datada de 17.07.2006, já transitada em julgado, proferida no âmbito do processo sumário n.º 169/06.0GDLRA, do Tribunal Judicial de Leiria, foi o arguido condenado pela prática, em 15.07.2006, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de multa. Esta pena foi já declarada extinta por cumprimento (pagamento) ocorrido em 28.02.2007.

12. Por acórdão datado de 14.03.2008, já transitado em julgado, proferido no âmbito do processo comum colectivo n.º 266/07.5JAAVR, do Tribunal Judicial de Ílhavo, foi o arguido condenado pela prática, em 15.08.2007, de dois crimes de roubo, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

13. Por sentença datada de 10.10.2008, já transitada em julgado, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 331/06.6GDLRA, do Tribunal Judicial de Leiria, foi o arguido condenado pela prática, em 21.12.2006, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, em pena de multa. Esta pena foi já declarada extinta por cumprimento em 29.06.2009.

III - Factos não provados

Inexistem factos não provados para apuramento da responsabilidade criminal do arguido.

IV - Motivação da decisão de facto

O Tribunal fundou a sua convicção na confissão integral e sem reservas dos factos por parte do arguido, que assumiu toda a sua conduta em audiência de julgamento.

Concomitantemente com as declarações confessórias do arguido foi ponderado os talões de fls. 9 (do apenso) e 10.

No que respeita aos antecedentes criminais o tribunal considerou o certificado de registo criminal de fls. 86 a 89.

Quanto à situação social e familiar do arguido o tribunal atendeu às próprias declarações do arguido e na atitude por ele assumida na audiência de julgamento.

V - Enquadramento jurídico - penal

Vem o arguido acusado de praticar dois crimes de condução em estado de embriaguez, previsto pelo artigo 292º, n.º 1 do Código Penal e punido com pena de prisão entre 1 mês e 1 ano ou a de multa entre 10 e 120 dias (v. os artigos 292º, n.º 1, 41º, n.º 1 e 47º, n.º 1, todos do Código Penal).

Comete o crime em apreciação “Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l (…).”

Conforme resulta do texto da norma e da sua integração na lógica sistemática do Código Penal, o bem jurídico tutelado pela incriminação sob análise é a segurança da circulação rodoviária, a qual é pressuposto, além do mais, da segurança da integridade física e da própria vida das pessoas - cfr. Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, pág. 1093 e 1094.

Estamos perante um crime de perigo abstracto, não pressupondo a demonstração da existência de um perigo concreto para os bens jurídicos protegidos, antes existindo uma presunção legal por parte do legislador de que a situação é perigosa em si mesma (cfr. idem, ibidem).

Tratando-se de um crime de mão própria, pode ser sujeito activo do crime de condução em estado de embriaguez todo aquele que conduza um veículo nas condições descritas no dito artigo 292º do Código Penal, ou seja, todo aquele que:

a) conduza um veículo, com ou sem motor;

b) em via pública ou equiparada;

c) com taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

Debrucemo-nos, então, sobre a análise dos vários elementos integrantes do tipo objectivo de ilícito do crime de condução em estado de embriaguez.

É suposta neste crime, em primeiro lugar, a condução de um veículo, com ou sem motor. Supõe-se aqui, de acordo com Paula Ribeiro de Faria, apenas processos de movimento no trânsito, não sendo abrangidos fenómenos de condução indirecta, nem de curta permanência ao volante de um veículo, sem início da marcha.

Tais veículos podem ser de qualquer tipo, uma vez que tanto estão abrangidos os motorizados, como aqueles que não dispõem de motor.

A referida condução de veículo deve ter lugar em via pública ou equiparada, o que apela às definições dadas pelo artigo 1º, alíneas a) e b) do Código da Estrada, segundo as quais, respectivamente, por via pública deve entender-se via de comunicação terrestre afecta ao trânsito público e por via equiparada a pública deve entender-se via de comunicação terrestre do domínio privado aberta ao trânsito público.

Finalmente, deve o agente do crime conduzir o veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

No que respeita ao tipo subjectivo, basta-se este crime com uma actuação negligente por parte do condutor.

Assim sendo, sempre que o agente coloca a hipótese de ter atingido valores de alcoolemia suficientemente elevados para ultrapassar os valores proibidos por lei para a condução e, mesmo não se conformando com tal possibilidade, assume a condução de um veículo, estará a cometer um crime de condução em estado de embriaguez.

Fá-lo-á ainda sempre que, mesmo sem representar na sua consciência tal possibilidade, o agente assuma a condução de um veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

In casu, provou-se que no dia 7 de Agosto de 2009, cerca das 00h11, na Rua da Capela de São Lourenço, freguesia de São Vicente, Abrantes, o arguido conduziu o veículo automóvel de marca Ford e modelo Transit com a matrícula (…) após ter ingerido bebidas alcoólicas e apresentando taxa de álcool no sangue de 1,38g/l.

Mais se provou que pouco tempo depois, pelas 02h20, o arguido conduziu o mesmo veículo junto às bombas de combustível da BP, sitas na Avenida da Liberdade, Ponte de Sôr e apresentando taxa de álcool no sangue de 1,40 g/l.

Provou-se ainda que o arguido sabia que havia ingerido bebidas alcoólicas e que o seu estado não lhe permitia efectuar uma condução cuidada e prudente e lhe diminuía a capacidade de atenção, reacção e destreza, mas, ainda assim, quis conduzir o veículo automóvel, o que efectivamente fez.

Por fim, resultou provado arguido que o arguido agiu de forma consciente, livre e voluntária, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Face a esta factualidade e inexistindo causas que excluam a culpa ou a ilicitude, facilmente se conclui que relativamente à primeira conduta do arguido – quando apresentou uma taxa de álcool no sangue de 1,38g/l se verificam os elementos quer objectivos, quer subjectivos constitutivos do tipo legal em apreço, pelo que o arguido não pode deixar de ser condenado.

E no que respeita à condução posterior, durante o período de doze horas seguintes ao resultado positivo no exame de pesquisa de álcool no sangue (primeiramente efectuado)?

Estando cientificamente comprovado que a ingestão de bebidas alcoólicas produz, no organismo humano, determinados efeitos e alterações que se prolongam no tempo e interferem com o acto da condução, estabeleceu o legislador, no art. 154º n.º 1, do Cód. Estrada, o impedimento de conduzir pelo período de doze horas após a obtenção de resultado positivo no exame de pesquisa de álcool no ar expirado, cominando a violação de tal comando com o crime de desobediência qualificada, no n.º 2 do citado normativo.

E bem se compreende que assim seja, atento o princípio consagrado no art. 29º n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

É que, o acto que constitui a génese do crime detectado – ingestão de bebidas alcoólicas em excesso –, é único. Todavia, os seus efeitos prolongam-se no tempo, pelo que, sendo o arguido encontrado a conduzir, por diversas vezes, durante tal período e sujeito a testes de alcoolemia positivos, seria autuado e submetido a julgamento, mais do que uma vez, com base na mesma fonte geradora de responsabilidade criminal.

Assim, crê-se que detectada a condução de veículo automóvel com TAS superior a 1,20 g/l, esgota-se a possibilidade de imputação de novo crime punível pelo art. 292º, do Cód. Penal, até completa eliminação pelo organismo dos efeitos do álcool, convencionada pelo legislador em 12 horas, restando a imputação do crime de desobediência se o arguido for encontrado a conduzir durante tal período (que in casu se verifica) – neste sentido pode ver-se o Acórdão da Relação do Porto de 11.11.2009, proc. n.º 516/09.3PTPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.

Pelo que vai dito, e sem necessidade de mais considerações, impõe-se a absolvição do arguido no que respeita ao segundo crime (referente à factualidade vertida em 5.) de condução em estado de embriaguez imputado.

Quanto ao crime de desobediência qualificada:

Preceitua o artigo 154.º do Código da Estrada, no seu n.º 1 que “Quem apresentar resultado positivo no exame previsto no n.º 1 do artigo anterior ou recusar ou não puder submeter-se a tal exame, fica impedido de conduzir pelo período de doze horas, a menos que comprove, antes de decorrido esse período, que não está influenciado pelo álcool, através de exame por si requerido”.

No n.º 2 prevê-se que “Quem conduzir com inobservância do impedimento referido no número anterior é punido por crime de desobediência qualificada”.

Ora, provou-se que, após o referido em 1. e perante tal resultado, que lhe foi dado a conhecer, foi o arguido notificado de que ficava impedido de conduzir pelo período de doze horas, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada, do que o mesmo ficou bem ciente.

Mais se provou que pouco tempo depois, pelas 02h20, o arguido conduziu o mesmo veículo junto às bombas de combustível da BP, sitas na Avenida da Liberdade, Ponte de Sôr

Provou-se também que o arguido sabia que havia sido notificado de que não poderia conduzir pelo período de 12 horas, mas ainda assim, quis conduzir o veículo automóvel durante esse período, o que efectivamente fez, e que agiu de forma consciente, livre e voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Face a esta factualidade e inexistindo causas que excluam a culpa ou a ilicitude, facilmente se conclui já que se verificam os elementos quer objectivos, quer subjectivos constitutivos do tipo legal em apreço, pelo que o arguido terá necessariamente de ser condenado.

(…)”.---

IV

Se, como já se afirmou, o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, tal não prejudica que este Tribunal ad quem proceda à apreciação oficiosa dos vícios da decisão sobre matéria de facto, de harmonia com o estatuído no artigo 410º, nº 2, do Código Processo Penal, desde que resultem do texto da decisão recorrida ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do preceituado no nº 3, do citado artigo.---

Ora, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no mencionado preceito. A matéria de facto dada como provada é bastante para a decisão de direito, inexistem contradições insuperáveis de fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, não se afigurando, por outro lado, que haja situações contrárias à lógica ou à experiência comum, constitutivas de erro patente detectável por qualquer leitor da decisão, com formação cultural média. Também não padece a sentença de qualquer nulidade ou o processo de qualquer nulidade que não deva considerar-se sanada.---

Posto isto, importa apreciar a questão in casu suscitada:---

Como se alcança da factualidade assente na 1ª instância mostra-se provado que “No dia 7 de Agosto de 2009, cerca das 00h11, na Rua da Capela de São Lourenço, freguesia de São Vicente, Abrantes, o arguido conduziu o veículo automóvel de marca Ford e modelo Transit com a matrícula (…) após ter ingerido bebidas alcoólicas e apresentando taxa de álcool no sangue de 1,38g/l.”.---

E que “Pouco tempo depois, pelas 02h20, o arguido conduziu o mesmo veículo junto às bombas de combustível da BP, sitas na Avenida da Liberdade, Ponte de Sôr e apresentando taxa de álcool no sangue de 1,40 g/l.”.---

E bem assim que, “O arguido sabia que havia ingerido bebidas alcoólicas e que o seu estado não lhe permitia efectuar uma condução cuidada e prudente e lhe diminuía a capacidade de atenção, reacção e destreza, mas, ainda assim, quis conduzir o veículo automóvel, o que efectivamente fez.”. Sabia igualmente que “havia sido notificado de que não poderia conduzir pelo período de 12 horas, mas ainda assim, quis conduzir o veículo automóvel durante esse período, o que efectivamente fez. O arguido agiu de forma consciente, livre e voluntária, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”.--

Alega o Digno recorrente que tal factualidade impunha a imputação ao arguido, além de um crime de desobediência qualificada, da prática, em concurso real, de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, tal como se mostrava acusado, porque o mesmo “tomou duas resoluções criminosas inconfundíveis (…).”.---

Sufraga, a este propósito, a decisão revidenda o expendido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.11.2009, proferido no processo nº 516/09.3 PTPRT.P1, disponível in www.dgsi.pt, no qual se expende, em síntese, que “(…) estando cientificamente comprovado que a ingestão de bebidas alcoólicas produz, no organismo humano, determinados efeitos e alterações que se prolongam no tempo e interferem com o acto da condução, estabeleceu o legislador, no art. 154º n.º 1, do Cód. Estrada, o impedimento de conduzir pelo período de 12 horas após a obtenção de resultado positivo no exame de pesquisa de álcool no ar expirado, cominando a violação de tal comando com o crime de desobediência qualificada, no n.º 2 do citado normativo. (…) É que, o acto que constitui a génese do crime detectado – ingestão de bebidas alcoólicas em excesso –, é único. Todavia, os seus efeitos prolongam-se no tempo, pelo que, sendo o arguido encontrado a conduzir, por diversas vezes, durante tal período e sujeito a testes de alcoolemia positivos, seria autuado e submetido a julgamento, mais do que uma vez, com base na mesma fonte geradora de responsabilidade criminal. Assim, crê-se que detectada a condução de veículo automóvel com TAS superior a 1,20 g/l, esgota-se a possibilidade de imputação de novo crime punível pelo art. 292º, do Cód. Penal, até completa eliminação pelo organismo dos efeitos do álcool, convencionada pelo legislador em 12 horas, restando a imputação do crime de desobediência se o arguido for encontrado a conduzir durante tal período.”.---

Ressalvado o muito e devido respeito, não acompanhamos, porém, tal entendimento.---

Outrossim, sufragamos o expendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21.06.2011, proferido no processo nº 441/10.5 GTABF.E1, disponível in www.dgsi.pt que, a propósito de situação fáctica e jurídica semelhante à que ora se aprecia, e sem necessidade de outros considerandos, por manifestamente redundantes, transcrevemos e aderimos.---

Diz-se em tal aresto que “(…) O crime de condução de veículo em estado de embriaguez é um crime de perigo abstracto. Segundo Germano Marques da Silva, “Crimes Rodoviários”, pág.14, no crime de perigo abstracto é a própria acção que é em si mesma considerada perigosa, segundo a experiência comum aceite pelo legislador, não sendo, nestes casos, de exigir a prova da criação de uma concreta situação de perigo para determinados bens jurídicos, bastando fazer prova da acção típica. O bem jurídico protegido é o da segurança rodoviária.

No crime de desobediência, o bem jurídico tutelado é o interesse administrativo do Estado em que as ordens legítimas dos seus agentes sejam obedecidas.

Como se está a ver, cada um dos dois tipos de crime protege interesses diferentes.”.---

E, afastando a eventual consumpção do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, pelo crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 348º, nº 2, do aludido Código e 154º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada, prossegue-se no mencionado aresto desta Relação, dizendo “(…) Segundo Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, 2001, vol. I, pág. 337, verifica-se a relação de consumpção quando o crime previsto por uma norma (consumida) não passa de uma fase de realização do crime previsto por outra (consumptiva) ou é uma forma normal de transição para o último (como é o caso do chamado crime progressivo, que se caracteriza por uma sucessão de agressões de gravidade crescente do mesmo bem jurídico: v. g., o facto de alguém, antes de matar, ferir a vítima). O crime previsto pela norma consumptiva representa a etapa mais avançada, na efectuação do malefício, aplicando-se então o princípio de que major absorbet minorem. Os factos aqui não se acham em relação de species a ge­nus, mas de minus a plus, de parte a todo, de meio a fim. O princípio da consumpção não assenta num critério de relação lógica entre normas, mas num critério de valor. Na perspectiva do princípio da consumpção o facto é idêntico mas naturalisticamente diferenciado, embora seja expressão de um desvalor penal homogé-neo.

Também Eduardo Correia se debruçou sobre o tema (“Direito Criminal”, 1971, vol. II, pág. 205), explanando que entre os valores protegidos pelas normas criminais verificam-se por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa. Daí que, ainda com fundamento na regra ne bis idem, se tenha de concluir que lex consumens derogat legi consumtae. O que, porém, só em concreto se poderá afirmar, através da comparação dos bens jurídicos violados, e não através da diversidade de pontos de vista a partir dos quais a lei concede protecção ao mesmo bem jurídico.

Ora no caso dos autos, inexiste consumpção do crime de condução de veículo em estado de embriaguez pelo de desobediência por os bens jurídicos ofendidos serem, como acima se viu, diferentes.

Por outro lado, ao ter-se condenado (…) por ambos os crimes, não foi violado o princípio ne bis in idem.

O art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República estabelece que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

Este comando dá dignidade constitucional ao clássico princípio ne bis in idem, o qual comporta duas dimensões: a primeira, como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); a segunda, como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.

O que a Constituição proíbe rigorosamente é o duplo julgamento e não a dupla penalização, embora seja óbvio que com a proibição do duplo julgamento se pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada das sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime.

Acontece que isto não tem coisa alguma a ver com a circunstância de a renovação por parte do agente de um determinado comportamento poder levar – e leva geralmente – à condenação por tantos crimes quantas as condutas reiteradamente praticadas.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, a confusão (dizemos nós do Tribunal a quo) assenta na consideração de que a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso é a génese do crime de condução de veículo em estado de embriaguez e como o art.º 154.º, n.º 1, do Código da Estrada, fixa em 12 horas o efeito desta ingestão, sendo o arguido encontrado a conduzir por diversas vezes durante tal período e sujeito a testes de alcoolemia positivos, seria autuado e submetido a julgamento mais do que uma vez com base na mesma fonte geradora de responsabilidade criminal.

Ora – e passando de largo pelas dificuldades de definição em termos de teoria geral do direito criminal do que deve entender-se pelo conceito “génese do crime”, – a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso não é, só por si, a génese de coisa alguma criminalmente tipificada. Milhentos de cidadãos detentores de carro ingerem todos os dias bebidas alcoólicas em excesso sem que cometam qualquer crime de condução de veículo em estado de embriaguez. O crime só se perfectibiliza é quando àquela ingestão de bebidas alcoólicas em excesso se junta o ingrediente da condução automóvel por parte do agente.

Assim e mesmo que se dê de barato que a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso é ainda a mesma e não foi reforçada no entretanto com novos consumos, inevitavelmente o assunto terá de ser abordado no âmbito da problemática do concurso de crimes e de crime continuado ou do crime único, a qual se encontra regulada no art.º 30.º do Código Penal.

No n.º 1 desse preceito estabelecem-se critérios relativos à problemática do concurso de crimes; no n.º 2 prevêem-se critérios reguladores de situações que têm a ver com a pluralidade de crimes, mas que o legislador unifica em um só crime estando-se, neste caso, perante o chamado crime continuado.

No n.º 1 do art.º 30.º, distinguem-se, com nitidez, duas partes. Ambas se referem a situações de pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente. Estatui-se, na primeira parte, que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos pela conduta do agente. Na segunda parte, declara-se que o número de crimes também se determina pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Quer na primeira parte (o chamado concurso heterogéneo), quer na segunda parte do preceito (o denominado concurso homogéneo), o comportamento do agente tanto se pode consubstanciar num só facto ou numa só acção, como em vários factos ou várias acções.

Com efeito, a partir de um só facto ou de uma só acção podem realizar-se diversos crimes por violação (simultânea) de diversas normas incriminadoras bem como o mesmo crime plúrimas vezes, por violação da mesma norma incriminadora, tal como, a partir de vários factos ou de várias acções, pode realizar-se o mesmo crime plúrimas vezes, por violação (repetida) da mesma norma incriminadora bem como diversos crimes por violação de diversas normas incriminadoras (Eduardo Correia, “Unidade e Pluralidade de Infracções”, pág.121 e ss.).

Em qualquer dos casos, estamos perante concurso de crimes uma vez que este ocorre desde que o agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer através de vários factos.

Estabelece, por sua vez, o n.º 2 do citado art.º 30.º que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crimes que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa.

Regulam-se deste modo as diversas situações em que, ocorrendo uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo arguido, quer por violação repetida do mesmo tipo, quer por violação plúrima de vários tipos legais de crimes, o legislador procede a uma unificação jurídica por forma a considerá-las como se um só crime houver ocorrido.

Donde o concurso homogéneo para efeitos do n.º 2 do art.º 30.º compreende não só a plúrima violação da mesma norma incriminadora mas também a violação de diversas normas incriminadoras, desde que sejam da mesma espécie, isto é, protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico (Cavaleiro de Ferreira, “Lições de Direito Penal”, pág. 541 ss.).

Em suma, havendo uma única resolução, há um único delito.

Tendo havido mais do que uma resolução, a regra será o concurso de crimes, constituindo a continuação uma excepção a aceitar quando a culpa se mostre consideravelmente diminuída mercê de factos exógenos que facilitem a recaída ou recaídas.

“Pressuposto da continuação criminosa, será verdadeiramente a existência de uma relação que de fora e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível do agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (Eduardo Correia, “Direito Criminal”, II vol., pág. 209).

No crime continuado, a repetição criminosa deriva não tanto da pessoa ser especialmente persistente ou ter especiais tendências criminosas mas no facto de que, de alguma forma, a prática do primeiro acto favorece a decisão ulterior em relação à continuação porque há um certo circunstancialismo externo que leva a pessoa a cair e, nesse sentido, a conduta do agente é menos censurável.

Por sua vez, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art.º 292.º Código Penal) está inserido num capítulo contra a segurança das comunicações.

É um crime de perigo abstracto, nele se valorando a acção enquanto em si mesma perigosa, segundo a experiência comum aceite pelo legislador, não aparecendo na estrutura do tipo a exigência do perigo como evento da acção.

Além disso, é um crime cometido no exercício da condução, pois crimes cometidos no exercício da condução são todos aqueles em que a acção viola as regras de trânsito rodoviário, sendo elemento da sua estrutura típica, como sucede também com o art.º 291.º Código Penal, ou causa do evento, como acontece em muitos crimes materiais em que a violação das regras de condução é causa do evento típico (Germano Marques da Silva, “Crimes Rodoviários”, pág. 30-31).

Para preenchimento do tipo legal basta, pelo lado objectivo, a condução na via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

Consumando-se o crime quando a conduta do agente acaba de preencher todos os seus elementos típicos, diremos que se o agente já se encontra sob a influência do álcool ao iniciar a condução, o crime consuma-se quando começa a exercê-la.

Pode, também, consumar-se já no decurso da condução, se o agente, ao iniciar a condução, se encontra em estado de sobriedade e, durante a viagem e sem que suspenda aquela condução, for ingerindo bebidas alcoólicas até que a taxa de álcool no sangue atinja o valor de 1,2 g/l. O crime só então se consumará e será cometido estando o agente no exercício da condução.”.---

Como resulta da matéria de facto sedimentada na 1ª instância, o arguido foi, no dia 7 de Agosto de 2009, fiscalizado por duas vezes (e por diferentes órgãos de polícia criminal): a primeira, pelas 00h11m, quando circulava no veículo automóvel, de matrícula (…), na Rua da Capela de São Lourenço, em São Vicente, Abrantes, tendo sido restituído à liberdade, após a realização de exame de pesquisa de álcool no sangue, que revelou ser portador de uma taxa de 1,38 g/l e notificação de que ficava impedido de conduzir pelo período de doze horas, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada; a segunda, pelas 02h20m, quando circulava naquele mesmo veículo, junto às bombas de combustível da BP, sitas na Av. da Liberdade, em Ponte de Sôr, revelando, então, após a realização do competente exame, uma taxa de 1,40 g/l de álcool no sangue.---

Provados estes factos, na senda do que se deixou expendido, importará saber se tais factos integram uma única resolução por banda do arguido e, consequentemente, a mesma infracção – a condução de veículo em estado de embriaguez – ou se, pelo contrário, haverá duas resoluções de delinquir – porque, uma vez mais, com o devido respeito por opinião contrária, é neste ponto que a questão se decide e não na tal de «génese dos crimes ser a mesma ingestão de bebidas alcoólicas em excesso».

Ora, no crime p. e p. pelo artigo 292º Código Penal é consabido, tal como já se referiu, que o facto penalmente proibido consiste em conduzir veículo, em via pública ou equiparada, estando o agente com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.---

A consumação de um primeiro desígnio cessou quando o arguido foi fiscalizado, pela primeira vez, naquele dia 7 de Agosto de 2009, pelas 00h11m, “(…) no âmbito de um procedimento ritualizado que leva o seu tempo a ser celebrado: há que soprar no alcoolímetro, há perguntas a responder, há documentos a apreciar, há papéis a preencher e a assinar, etc., etc.. Não se trata propriamente de um momento agradável para o cidadão fiscalizado e processado por conduzir alcoolizado. Recuperada a liberdade de movimentação, o arguido teve necessariamente, de acordo com a experiência da vida, de formular um novo desígnio criminoso para voltar a conduzir, diferente do primeiro e dele separado por um assinalável lapso de tempo preenchido por acontecimentos especialmente relevantes para um normal cidadão.

Havendo duas decisões de delinquir, ambas consumadas em actos interruptos e independentes, e não se vislumbrando que a prática do primeiro acto haja favorecido a decisão ulterior, há dois delitos.

Esta conclusão vale independentemente de o arguido ter ou não ingerido álcool entre as suas duas resoluções ou seja, independentemente de a «génese dos crimes ser a mesma ingestão de bebidas alcoólicas em excesso».

Em ambos esses momentos estava influenciado pela referida substância; em ambas as ocasiões tinha consciência dessa influência e das duas vezes decidiu guiar sabendo que a lei lho vedava – e guiou.” – cfr. mencionado Acórdão desta Relação.---

E, porque assim, como bem pretende o Digno recorrente, o arguido cometeu, não um, mas dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. respectivamente pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal (porque vinha, aliás, acusado), e ainda um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 348, nº 2, do aludido Código e 154º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada.---

Assente a culpabilidade do arguido pela prática de mais um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, para além daqueles outros por que foi condenado, impõe-se proceder à determinação da espécie e da medida da pena concreta, atentando que tal ilícito é, em abstracto, punível com pena de prisão até um ano ou pena de multa até cento e vinte dias e bem assim com pena acessória de proibição de conduzir, nos termos do prescrito no artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, e de harmonia com o estatuído nos artigos 70º e 71º, do Código Penal.---

Tal ponderação e determinação, porém, deverá ser efectuada pelo Tribunal a quo e não por este Tribunal de recurso, essencialmente por duas ordens de razões.---

Em primeiro lugar, porque afigura-se-nos ser essa a solução imposta pela consagração constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição, acolhido no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra expressamente o direito ao recurso entre as garantias de defesa reconhecidas ao arguido. E, em casos como o presente, caso fosse o Tribunal ad quem a proceder à determinação da espécie e da medida da pena, a decisão deste Tribunal da Relação seria irrecorrível – cfr. artigo 400º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal – e sairia preterido o direito ao duplo grau de jurisdição, pois retirava-se ao arguido a possibilidade de ver apreciada em 2ª instância a decisão proferida em matéria de determinação da sanção, o que, aliás, sucederia igualmente com o Ministério Público.---

Em segundo lugar, por ser essa a solução imposta pelo nosso modelo, processual e substantivo, de determinação da sanção. Por um lado, a relativa autonomização do momento da determinação da sanção (quase cesure), leva a que só depois de decidida positivamente a questão da culpabilidade, o tribunal pondere e decida sobre a necessidade de prova suplementar com vista à determinação da sanção – cfr. artigos 369º, nºs 1 e 2 e 370º, do Código de Processo Penal – e eventual reabertura da audiência para determinação da sanção, nos termos preceituados no artigo 371º, do aludido diploma. Por outro lado, como destaca José Manuel Damião da Cunha, in “O Caso Julgado Parcial-Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção Num Processo de Estrutura Acusatória”, Porto 2002, Publicações Universidade Católica, pág. 410, “(…) os direitos de defesa do arguido, no âmbito da determinação da sanção, (…) [assumem] também uma função positiva, dentro das eventuais possibilidades de sancionamento que estejam dependentes da sua livre «vontade» (…)”, como sucede nos casos em que é suposto o consentimento do condenado (a título de exemplo, a pena de substituição de regime de semidetenção – cfr. artigo 46º, nº 1, do Código Penal –, a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade – cfr. artigo 58º, nº 5, do mencionado diploma, ou a sujeição a tratamento médico ou a cura em instituição adequada no âmbito da pena de suspensão da execução da pena de prisão – cfr. artigo 52º, nº 3, do mesmo Código).---

Flui do exposto que, para além da necessidade de cumprir o princípio do duplo grau de jurisdição, também o cabal cumprimento das normas de direito processual e substantivo relativas à escolha e determinação da pena, implica que deva ser o Tribunal de 1ª instância a proferir a respectiva decisão, depois de ponderar sobre a eventual necessidade de reabrir a audiência e de ordenar ou levar a cabo quaisquer diligências que entenda serem adequadas.---

V

Decisão

Nestes termos acordam em:---

A) – Conceder provimento ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público e, em consequência, decidem:---

i) - Condenar o arguido NG, pela prática, ainda, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal (perpetrado pelas 02h20m, do dia 7 de Agosto de 2009);---

ii) - Determinar que o Tribunal a quo proceda à determinação da espécie e da medida da pena principal e bem assim da medida da pena acessória a aplicar pelo cometimento de tal crime para, posteriormente, proceder a nova operação de cúmulo jurídico e determinação da medida da pena única em que o arguido ficará condenado, com recurso, caso entenda necessário, à reabertura da audiência para eventual produção de prova suplementar, nos termos dos artigos 369º, nºs 1 e 2, 370º e 371º, do Código de Processo Penal, seguida da leitura da respectiva sentença – cfr. 372º, do mencionado diploma.---

B) – Não serem devidas custas.---

(Texto processado e integralmente revisto pela relatora)

Évora, 20-12-2011

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares (relatora) - Alberto João Borges